Grilagem de terras assola os pés do País

A lei existe, a impunidade também. Povo de um lado, proprietários de outro e Deus por todos

Era uma vez um Presidente da República que adotou uma Medida Provisória com força de lei, que dispunha sobre a regularização fundiária das ocupações em áreas da Amazônia Legal. Enquanto isso, dona Maria Elizabete Vilhena de Moraes aguarda há 26 anos o julgamento do processo que sua comunidade iniciou contra grileiros em suas terras, na ilha de Marajó, município de Souri, Pará, na mesma república cujo presidente aprovou aquela medida.

De acordo com o professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira, do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), do conjunto dos crimes cometidos com relação às terras na Amazônia, somente duas dezenas chegaram ao final do seu processo de julgamento. E são mais de três mil crimes.

Na Ilha de Marajó tudo é bonito e a imprensa não se cansa de cortejar as belezas naturais, flertando com os peixes, as praias, as paraenses e as autoridades locais. Autoridade na ilha são os fazendeiros, cujos nomes e sobrenomes não há quem ignore. Até porque, quando se tem a casa cercada para dar mais espaço ao gado do senhor, não é mesmo provável esquecê-lo. "O povo quer plantar, quer trabalhar e não pode porque não tem terra. Tem muita comunidade que já está sendo extinta porque o fazendeiro não deixou mais pegar açaí, cercou a terra, não deixou mais pescar", conta a quilombola Luzia Betânia Alcântara, com raiva das cercas que não pôde derrubar.

Ela diz que, sem alternativa, muitos moradores da região desistem de esperar pelos longos, intermináveis processos, e vão-se embora. "Aí o quilombola fica perdido na cidade, sem saber o que fazer. O governo federal emite o título para essas pessoas", ela aponta para a região do outro lado da cerca, "e nem sequer dá uma satisfação pra gente".

Maria Elizabete mais do que entende. Compreende e compartilha a mesma realidade. "Nós só queremos viver com dignidade, ter nosso pedaço de terra para tirar o sustento de nossas famílias. Só temos protocolos, mas não temos a visita deles. Um pai de família levou um tiro pelas costas quando foi pescar camarão para comer. Nós estamos passando fome, necessidade. Nossa ilha tem tanta terra, por que vamos abrir mão? Família minha já foi morta e arrastada na praia feito boi. Eu queria que o mundo todo soubesse que o nosso povo sofre." Mas não. O mundo não sabe. O mundo sabe que uma ilha é um monte de terra cercado de água por todos os lados.

Escandalizada com a narrativa das brasileiras e dos brasileiros, quando contaram que chegaram mesmo a chamar a proprietária das terras para uma conversa e ela compareceu à reunião com seu segurança particular, policiais, documentos e gritos, Aleida Guevara March protestou: "Espera! Ouvindo vocês parece que estou vivendo numa novela do século XIX, onde fazendeiros podem fechar o caminho da vida de outros seres humanos. Amanhã parto para Cuba, mas quem ficará aqui são vocês. Têm que tomar consciência do poder que têm como povo e usar essa força para mostrar que temos direitos na vida. Nós vamos falar e falar sobre isso, mas vocês têm que mudar essa realidade."

E que culpa têm os proprietários da terra? Um dos guias turístico de Marajó, Dário Pedrosa, explica: "Os caras ocupam e dizem que é deles. Você pode passar horas e horas passando por dentro de uma propriedade. E é improdutiva."

Improdutiva. O professor Ariovaldo Oliveira esclarece que, no Brasil, existe cerca de 120 milhões de hectares de terras de grandes propriedades improdutivas no campo. "É uma farsa dizer que este país está todo ocupado pela agricultura. O Brasil tem de área de lavouras 70 milhões de hectares apenas. Portanto, numa parte expressiva do país a terra não cumpre sua função social." Ainda de acordo com o professor, o direito à privatização da terra abre espaço para o desmatamento da Amazônia, que é uma floresta em idade senil. Isto significa que as áreas desmatadas não vão se refazer. "É o preço que a história vai cobrar das nossas gerações."

Os jovens já sabem disso e os processos, longos que são, atravessam gerações, que seguem brigando as mesmas brigas, lutando as mesmas lutas. O jovem André Soares Barbosa, 23 anos, pensa sobre a sua realidade e observa que o que aprende na escola não é exatamente o que precisa para a sua vida. Ele tem conceitos próprios para quase tudo que o aflige e prefere assim. Afinal, "teoria é fantasia". Na prática o mundo é diferente. E saúde, por exemplo, "é a capacidade de lutar contra tudo aquilo que nos oprime".

Oficialmente conceituado, o grileiro é aquele que se apossa de terras de maneira ilegal, se utilizando de falsa documentação. Esse nome vem do fato de que a técnica utilizada para fazer com que as escrituras pareçam antigas é deixar os papéis guardados junto com grilos, o que os deixa com coloração amarelada e aparência de gastos. A grilagem em regiões de grandes riquezas naturais é comum no País e a Medida Provisória Nº 458, de 10 de Fevereiro de 2009 confere possibilidades a esses que se apossaram ilegalmente para regularizarem sua situação. Salvo, parágrafo II, artigo 4º, entre outros: "tradicionalmente ocupadas por população indígena, comunidades quilombolas e tradicionais".

E você? Já escolheu o seu pedaço de riqueza da União?

Fonte: Esta matéria foi produzida para o curso Repórter do Futuro, promovido pela Oboré - Projetos Especiais em Comunicação Social- Camila Caringe, colaboradora da Vira (25/05/2009).

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