O PROJETO FICHA LIMPA E O "PROJETO LIMPA-FICHA"
Desde que o projeto da ficha limpa emergiu na pauta política nacional, surgiram dúvidas a respeito da judicialização da política, ao depositar nas mãos de um único juiz de primeira instância o poder de decidir quem poderá ou não ser candidato numa eleição. Tal como proposto inicialmente, a avaliação era de que o projeto concederia demasiado poder político a quem não o deve ter - porque juízes não são escolhidos pelo povo - e a Constituição brasileira, em seu primeiro parágrafo, reza que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente".
Acredito nas boas intenções dos cidadãos que assinaram o projeto na primeira hora. Acho que o desejo dos eleitores signatários é saudável, porque busca melhorar o nível da política nacional. Isso é louvável. Ainda assim, delegar a um juiz de primeira instância tanto poder político não era a maneira correta de limpar a lama em que chafurdou a política nacional.
O projeto passou por revisão, com relatoria do deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP). A alteração do texto definiu que em vez de um candidato ser considerado inelegível a partir de uma condenação em primeira instância, a inelegibilidade se daria mediante condenação de um colegiado de juízes.
Agora surgem as dúvidas: será que a lei da ficha limpa escapará a um exame de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal? E ainda: por que a sociedade não se empenha em derrubar o foro privilegiado?
Em agosto de 2008, a Associação dos Magistrados Brasileiros havia proposto uma ação para que juízes eleitorais pudessem negar pedidos de candidatura de pessoas condenadas em primeira instância.
A ação foi indeferida, por unanimidade, pelo STF.
A rejeição iniciou-se com o ministro Celso de Mello, então relator, que invocou o princípio constitucional da presunção de inocência. A princípio tem uma larga tradição no formalismo legalista brasileiro. Segundo o relator, como o princípio vale para todo o direito, nem mesmo uma lei específica poderia impedir uma candidatura de quem não estivesse definitivamente condenado.
Talvez o obstáculo jurídico seja o mais forte impedimento prático do projeto ficha limpa. Pode-se perguntar ate mesmo se não é precisamente nisso que o Congresso Nacional esteja apostando, ao aprovar a lei.
A jogada (se é que ela existe) é interessante: sai-se da berlinda pública com aquele ar de bom moço que todo político adora; mas, no fundo, aposta-se mesmo é na inconstitucionalidade de uma verificação do Supremo - que, diga-se de passagem, já foi apontada anteriormente.
A segunda questão (que, com toda a discussão da ficha limpa, parece ter se tornado um não-assunto) é relativa ao foro privilegiado.
Se há uma forma de um candidato ficha-suja limpar sua ficha é se elegendo para um cargo de deputado federal ou senador. Caso obtenha sucesso nas urnas (o que se pode conseguir de muitas formas pouco republicanas), a regra do foro privilegiado blindará o político, que então só poderá ser processado pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim que estiver eleito, qualquer processo de primeira instância contra ele será transferido para o STF. No mínimo o candidato eleito terá um largo tempo de tramitação de seu processo pela frente. Não custa lembrar que, desde a Constituição de 1988, apenas um parlamentar foi condenado na Suprema Corte. O fato inédito aconteceu na semana passada, com o deputado federal Zé Gerardo (PMDB-CE).
Afora a demora do julgamento, um político ainda pode manobrara a seu favor, como foi o caso de Ronaldo Cunha Lima, acusado de tentativa de homicídio ao meter bala em um seu inimigo político. Às vésperas de seu julgamento no STF, Cunha Lima renunciou ao cargo, alterando a instância jurídica em que seria julgado. Os ministros ainda acusaram Cunha Lima de abusar do direito, mas o fato é que continua impune até hoje.
Esse é apenas um caso emblemático. Para além dele, muitos outros correm risco de prescrição diante de tanta empulhação jurídica. A aposta nas manobras e na prescrição é um eficaz uso das eleições para seu pessoal "projeto limpa-ficha".
Talvez isso tudo fosse evitado se o Brasil abandonasse a torpe herança histórica das Ordenações Filipinas (do século XVII, cuja regra fazia com que grandes fidalgos só pudessem ser presos após mandato direito do Rei), e escancarasse logo a tampa da fossa nauseabunda do foro privilegiado.
A grande empulhação do Congresso é dizer que o privilégio tem como função defender o cargo, e não o seu ocupante. Seguiu a mesma linha argumentativa o novo presidente do STF, Cezar Peluso, ao falar no Senado, na semana passada, afirmando ter receio de que um juiz de primeira instância possa julgar uma autoridade federal. O que o presidente do Supremo fez foi mandar às favas o pilar constitucional da igualdade, valorando a supremacia da autoridade em detrimento do princípio de isonomia.
Com o fim do foro privilegiado, quem estaria ameaçado não seriam os cargos, as funções, mas exatamente seus ocupantes. O cargo estaria bem protegido se em vez de tanta embromação jurídica, seus ocupantes pudessem ser julgados e punidos como qualquer outro cidadão, mediante as mesmas leis e os mesmos juízes.
A extinção do foro privilegiado me parece muito mais eficaz e interessante do que a aprovação do projeto ficha limpa - que ainda corre o risco de não escapar de um exame constitucional do STF. Muito embora cada legislatura pareça mais difícil extinguir o foro privilegiado, não deveríamos deixar essa discussão se tornar um não-assunto.
Sou favorável ao projeto da ficha limpa (com inelegibilidade de condenados por um colegiado de juízes), mas acho difícil o STF aprová-lo.
A publicação das fichas criminais dos candidatos na internet (aprovada recentemente) foi um bom passo. Dará um aporte mínimo para que o eleitor possa escolher com cuidado o candidato em quem votar.
Autor: André Raboni - 19/05/10 às 14:21