Águas no Nordeste: solução está na terra
Farto recurso, parco aproveitamento. Não é de hoje que se diz que o problema da seca no Nordeste é mais político do que "natural". Afinal, já dispomos de conhecimento e tecnologia suficientes para saber que a região tem água bastante, senão para resolver a seca, pelo menos para amenizá-la. Prova disso são, por exemplo, as uvas e flores produzidas nas terras irrigadas do interior do Rio Grande do Norte.
A resposta para a falta d'água parece estar no subsolo e não na superfície. Apesar do clima semi-árido, predominante em várias partes da região, há reservas de águas subterrâneas (os aqüíferos) suficientes para resolver grande parte dos problemas de abastecimento, dizem os especialistas. Estados como Maranhão e Piauí, por exemplo, estão assentados sobre uma grande bacia sedimentar - a Parnaíba-Maranhão - onde o volume estimado de água disponível é de 17,5 mil km³, cerca da metade da capacidade da represa de Sobradinho. Nesses Estados só falta água para quem não tem como explorar poços de água subterrânea, seja por falta de dinheiro ou de informação.
As reservas de águas subterrâneas são particularmente grandes em regiões de rocha sedimentar. Essas rochas, muito porosas, têm grande capacidade de absorção e armazenamento de água da chuva. No Brasil, elas ocupam cerca de 50% do território. O resto é formado por rochas cristalinas e xistosas. O cristalino, ao contrário do sedimento, é extremamente impermeável, fazendo com que a água escorra para outros locais, deixando o solo e o ar mais secos.
A região Nordeste tem 70% de cristalino e 30% de sedimento. Este último está concentrado nos estados já citados, no litoral e parte da Bahia. O cristalino predomina no interior da maior parte dos estados, onde consequentemente o clima é mais árido. Mas há vários pontos de sedimento no meio do cristalino, que podem ser explorados para o abastecimento local.
Quatro grandes reservas de água subterrânea conhecidas são a Bacia Tucana (Tucano-Jatobá), na fronteira da Bahia com Pernambuco, a Chapada do Araripe, entre Ceará, Pernambuco e Piauí, a Chapada do Urucuia, na fronteira da Bahia com o Mato Grosso do Sul e a Chapada do Irecê, na Bahia.
No Tucano-Jatobá, a espessura do sedimento chega a 15 mil metros (quanto mais espesso mais água existe). Para se ter uma idéia da capacidade de abastecimento que essa medida representa, basta ver que a maioria dos poços construídos tem entre 100 e 200 metros de profundidade. Em grandes bacias sedimentares, onde o volume d'água é maior, há poços de 500 metros, mas são raros os que ultrapassam os 2 mil metros. Ironicamente, o Tucano-Jatobá abriga regiões tão áridas que poucos se atrevem a habitá-las. É aí que está o Raso da Catarina, local onde Lampião e seu grupo se escondiam das milícias e onde foi morto.
Técnica colonial - Engana-se entretanto, quem pensa que os aqüíferos são uma nova descoberta. Os primeiros registros de uso de águas subterrâneas na América do Sul datam do pré-colombiano e os poços artesianos e semi-artesianos escavados com enxada são comuns no continente desde a época colonial. "Em quase todo forte, monastério e outros prédios coloniais ainda podem ser encontrados esses poços", lembra Aldo Rebouças, professor titular do Instituto de Geociências da USP, em artigo recente no Episodes - Journal of International Geosciences.
Rebouças, um dos mais respeitados hidrogeólogos do país, mostra que as águas subterrâneas, antes consideradas um recurso local para atender à demanda doméstica e rural, têm sido crescentemente utilizadas para fins industriais e de abastecimento urbano nos últimos 25 anos, no Brasil. "Atualmente, entre 70 e 80% do suprimento de água municipal e 95% do industrial no Estado de São Paulo vem de águas subterrâneas", salienta.
Nas grandes áreas metropolitanas - com população de 1-16 milhões de habitantes - os poços artesianos e semi-artesianos complementam o abastecimento baseado em águas superficiais (de rios, lagos, represas, açudes) e ajudam a reduzir o gasto mensal com água de hotéis, hospitais, prédios residenciais e empresas. "Cerca de 250 mil poços profundos foram escavados no Brasil nos últimos 30 anos, por municipalidades e pela indústria", diz Rebouças.
Mas o pesquisador lembra, também, que a maior parte desses poços é particular e não tem qualquer controle, o que pode acarretar sérios problemas num futuro próximo. Com a difusão da tecnologia de escavação e exploração das águas subterrâneas, torna-se urgente a formulação de políticas de longo prazo para garantir níveis econômicos, sociais e ambientais sustentáveis.
"O fato é que não há legislação no Brasil sobre o assunto. Qualquer um fura poços, muitas vezes sem seguir as mínimas condições técnicas que garantam a qualidade do recurso. Além disso, existe um grande número de poços mal locados, mal operados e sem manutenção, que acabam contaminando o aqüífero", afirma Humberto José Tavares de Albuquerque, presidente do Núcleo Rio de Janeiro da Associação Brasileira de Águas Subterrâneas, em artigo publicado no Jornal do Clube de Engenharia.
Os pesquisadores chamam atenção também para o fato de que, além de tratar do problema político-administrativo das águas subterrâneas, é preciso investir na pesquisa sobre os recursos hidrológicos brasileiros para que se possa avaliar a melhor forma de explorá-los.
Transposição do São Francisco - A riqueza de águas subterrâneas no Nordeste e o custo relativamente baixo de sua exploração é um dos motivos - não o único, evidentemente - da polêmica discussão sobre a transposição das águas do rio São Francisco. "Até hoje não existe um estudo adequado da viabilidade técnica dessa proposta", diz Benjamin Bley, professor titular do Instituto de Geociências da USP.
Segundo Bley, antes de se decidir pela transposição é preciso saber, por exemplo, quais serão seus impactos ambientais e se o São Francisco pode suportá-la. O rio já tem cinco hidrelétricas ao longo de seu curso, além disso, é amplamente utilizado para abastecimento público e irrigação.
Um outro problema, segundo o professor, é que não dispomos de dados confiáveis sobre o comprometimento atual das águas do rio. "As estatísticas oficiais falam de cerca de 120 mil hectares de terra irrigados pelo São Francisco, mas se contarmos as ligações clandestinas o número real chega a uns 250 mil hectares", afirma.
Recentemente, o suplemento Cadernos do Nordeste, publicado por um pool de jornais da região, dedicou sua primeira edição ao problema da água, com farto material sobre a transposição do São Francisco. A questão é quase tão antiga quanto a vinda da côrte de D. João VI ao Brasil. A primeira proposta de desvio do curso do rio foi feita pelo intendente do Crato, Antônio Marcos Macêdo, em 1847. O objetivo era tornar perene o rio Jaguaribe, no Ceará.
Atualmente, entre os maiores defensores da transposição estão a bancada nordestina na Câmara Federal e o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra. Por sua vez, o presidente Fernando Henrique Cardoso determinou que fosse feita uma auditoria internacional, por "uma pessoa de notório saber", para se ter uma "avaliação crítica", segundo o Cadernos do Nordeste. Até agora, contudo, não se sabe do resultado desse trabalho.
Das discussões sobre a transposição fica claro que este não é apenas um problema técnico-científico, mas também político e cultural. Resta saber que tipo de solução lhe será dada pelas autoridades competentes.
Fonte: SBPC/Labjor Brasil