Ética no Brasil
A metodologia e os resultados completos da pesquisa não estão disponíveis, o que sempre recomenda muita cautela, quase dois-pés-atrás. Qualquer pesquisador que já tenha precisado agrupar variáveis, ainda que obedecendo critérios "bem objetivos", sabe que cabe quase tudo entre cobras e lagartos. Ainda assim, o Retrato da Ética produzido pela Folha é uma excelente oportunidade para pensarmos sobre um fenômeno que tem plena expressão em nossas vidas no trânsito, mas é muito mais amplo e profundo.
As cores do retrato
Os resultados da pesquisa revelam uma extraordinária convergência de opiniões - um padrão generalizado e homogêneo de entendimento do que é a corrupção e do que entendemos por ética e moral.
"Homens e mulheres, entre 16 e mais de 60 anos, quase analfabetos ou de educação superior, vivendo da mão para a boca ou com renda mensal de mais de 10 salários mínimos, estando localizados entre uma das classes A a E, torcedores do PT, PMDB, PSDB ou de nenhum partido, habitando qualquer uma das cinco regiões do país, na capital ou no interior dos Estados, incluídos ou não na população economicamente ativa e devotos de alguma fé, ou mesmo ateus, nós pensamos praticamente a mesma coisa (…) somos um país de uma ética só, analisa o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos.
Entendemos que corrupção é uma prática da esfera pública e sabemos exatamente seu lugar: os poderes Executivo e Legislativo, federal e estaduais. Ela está, no entanto, em toda parte: os "campeões da pureza", tais como a Igreja Católica, as Forças Armadas e a imprensa, são julgados como corruptos por, respectivamente, 53%, 54% e 61% do total dos entrevistados.
A corrupção mora nas instituições que nos cercam e, ao que tudo indica, bem longe de nossas vidas de indivíduos éticos e morais. Concordamos (74%) que a obediência à lei é algo superior ao interesse privado, mesmo que isso nos custe perder oportunidades. Julgamos errado (94%) pagar propina a agentes públicos, tanto quanto condenamos (94%) vender o voto. É para nós moralmente inaceitável falsificar documentos (97%), comprar um diploma (96%), avançar o sinal vermelho (83%), mentir ou sonegar informações ao Imposto de Renda (82%). Baixar músicas pela internet sem pagar (64%) e comprar produtos piratas (63%) também são atitudes moralmente erradas, mas nem tanto assim para boa parte das pessoas.
Saimos bem no retrato que pintamos! Mas que fique bem claro que convergimos, assim na terceira pessoa do plural, por conta de uma ficção do método científico. O Retrato da Ética é um flagrante do indivíduo: "eu falo por mim"… já os outros…"
O retrato sem cores
O ponto alto da pesquisa é o amarelamento desse retrato de civilidade plena e bom-mocismo unânime. Convidados a passar do julgamento moral e ético de determinadas práticas ilegítimas ou ilícitas para a confissão de que já as praticaram, os entrevistados entregam outro retrato: 83% deles, sim, já cometeram alguma dessas práticas em diferentes escalas de gravidade (leve, até 4 ações; média, de 5 a 10; e pesada, 11 ou mais).
80% dos entrevistados acredita que os eleitores trocam seu voto por qualquer compensação material, por um favor ou por um emprego. No Brasil da prática cotidiana, 13% dos entrevistados admite ter vendido seu voto - cerca de 17 milhões de pessoas maiores de 16 anos, no universo de 132 milhões de eleitores. A maioria de nós (56%) afirma que os outros tirariam proveito das situações, à revelia de qualquer lei, em benefício próprio. 68% compra produtos piratas; 27% baixa música da internet sem pagar; 31% já colou em provas ou concursos (49% entre os jovens); 27% recebeu troco a mais e não devolveu; 36% já pagou propina; 26% avança o sinal vermelho e, por fim, 14% para o carro em fila dupla.
O triunfo do velho faça-o-que-eu-digo-não-faça-o-que-eu-faço é a principal revelação da pesquisa do DATAFOLHA, na minha opinião, porque ela dá uma medida de como estamos longe de distinguir O PÚBLICO E O PRIVADO e do quanto são escorregadios nossos "marcadores éticos e morais", para usar uma expressão do filósofo Renato Lessa.
O desfazimento da hipocrisia perversa com que tocamos nossas vidas em sociedade completa-se, agora sim, com um perfil bem conhecido. Somos todo igualmente hipócritas, mas alguns podem mais por debaixo dos panos da moral e da ética. Os homens (86%) transgridem mais do que as mulheres (80%), os jovens 16 a 34 anos (91%) mais do que os mais velhos, e os mais ricos e mais estudados são, é claro, os que têm as maiores taxas de infrações (97% dos que ganham mais de 10 mínimos assumem ter cometido infrações e 93% daqueles que têm ensino superior também).
O retrato é péssimo, em suma, mas indica a necessidade de TRATARMOS DA TRANSGRESSÃO DAS REGRAS. A educação para o trânsito TEM QUE abandonar a superfície das regras e mergulhar na problematização da sabotagem do que essas regras representam. Ficam aí as pistas e os porques do confronto que deve ser promovido.
Fonte:Biavati em outubro 6, 2009 (com base na Folha de São Paulo publicou no último domingo (04 de outubro) uma nova pesquisa, realizada pelo DATAFOLHA, sobre o que nós, brasileiros, pensamos sobre corrupção e sobre o que é ético e moralmente correto.)