Copa: o legado é o grito engasgado

 

Legado é a palavra-chave que a Fifa usa comercialmente para convencer os países pobres a "comprarem" a ideia de realização de uma Copa do Mundo, e promover os investimentos necessários para a montagem da estrutura exigida: estádios, transportes, energia, telecomunicações...

Para o Brasil, duas justificativas importantes na realização de uma Copa do Mundo. A primeira delas, de mostrar ao mundo o Brasil, um País em desenvolvimento, que nos últimos 20 anos passou por uma grande transformação de ordem política e econômica, mas que ainda tem muito a crescer. Isso, sem falar nos atrativos turísticos.

O ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além destas vantagens, enxergou na Copa do Mundo, o elemento motivador para atropelar a burocracia brasileira e alavancar obras importantes, verdadeiros gargalos que impedem a expansão de nossa economia e travam investimentos internacionais. Reservou o dinheiro destas obras no BNDES e criou o PAC Copa para construir os estádios "da Fifa", e mais aeroportos, rodovias, VLTs e metrôs nas grandes cidades.

Tudo sem licitação. Com licitação, só para elaborar editais se gastaria de dois a quatro anos. Lula sabia que seu mandato tinha data de vencimento, mas achou que o seu período não. E Dilma, a escolhida por ele, não entendeu que a Copa era muito mais que um departamento domiciliar que separa a sala da cozinha. Perdeu tempo com sua "faxina", atrasou obras e não deu explicações para o povo sobre os gastos e suas reais necessidades.

Para montar o seu "time", a presidente(a) Dilma Rousseff demitiu ministro, obrigou Ricardo Teixeira a renunciar da CBF e passou a hostilizar José Maria Marim, o seu substituto legal. Tudo para colocar no cargo alguém dela. Só que no futebol profissional dos cartolas, "peladeiros" não têm vez. E o povo do futebol joga com um pé atrás com os políticos.

Resultado: os "sem copa" dominaram o discurso. Romário, Record e seus seguidores, espalharam os seus lamentos acompanhados dos valores dos gastos com estádios. Falaram sozinhos. E convenceram uma parte da população, graças à incapacidade do Governo de se comunicar. Criaram, no mínimo, um clima negativo.

No caso particular do Brasil, para a Copa do Mundo, são duas "imprensas". A crônica esportiva, que fala a língua do povão e não corre atrás do Governo; e a imprensa política, que hoje vive do denuncismo. Poderoso, vaidoso, o Governo não procurou quem sabe falar a língua do povo. Resultado: saiu chamuscado. Hoje, qualquer ação será de "enxugar gelo".

Quando Blatter, o presidente da Fifa, falou em legado para o povo brasileiro, com certeza pensou em duas coisas: os belos estádios/arenas, construídos para realização de jogos de futebol e também outros espetáculos, como grandes shows internacionais, encontros da juventude e até cultos ecumênicos. E pensou, também, nas milhares de pessoas que treinam como voluntários, para trabalhar de graça na Copa e se qualificar para bons empregos no futuro.

Só que o legado da Copa veio de outra forma, de um jeito que nem ele nem Lula e muito menos Dilma esperavam: veio de onde eles vieram, das ruas. Veio com um grito engasgado, mas de cara pintada, de roupa branca e mãos limpas, carregando cartazes, pedindo apenas o que lhes fora prometido nos últimos anos.

Os 20 centavos de passagens de ônibus foi o "mote" encontrado para sair às ruas. Essa é a geração do iPhede. Antes, eles pediam roupa de marca, tênis, computador, celular, carro ... Agora eles pedem muito mais do que isso: respeito. Pelos cartazes, eles dizem o que desejam: fim da corrupção, escolas públicas, saúde pública, transporte público dignos.

Os políticos estão encurralados, porque sabem que estão falando diretamente com eles. Só que essa conversa não pára por aí. Tem muita gente achando graça, porque não sabe que a conversa é mais longa. Ela bate diretamente nos partidos políticos, porém, afastam das passeatas os Sindicatos e demais entidades que se passam por privados, mas vivem das tetas oficiais.

A conversa é longa, pois o pedido de educação é um recado também aos professores e às redações do "miojo". Saúde digna é um recado para os médicos que recebem do Governo, dá as costas aos pobres para atender nas suas clínicas particulares. Quando pede Justiça, é um recado para a magistratura que nada julga, e quando julga é para condenar os pobres.

É evidente que no meio deste grito engasgado, do Mensalão enrolado, a palavra de ordem é uma só: não vamos engolir calados. Usar os dias de jogos, embora não tenha sido planejado, caiu como uma luva, pois tem a atenção total da mídia e a adesão dos "sem ingressos". A única coisa condenável nesse caso é a violência desenfreada de muitos.

Os manifestantes devem se conscientizar de que o que pedem não sairá da noite para o dia. Querem mudança social e de comportamento. Isso demanda tempo. O que pode sair da noite para o dia, é a Copa. Inglaterra fez olimpíada o ano passado, está pronta. Alemanha também. E os Estados Unidos querem muito. A violência está arranhando a imagem do Brasil. Cuidado, muito cuidado.

Lembro-me que nos anos 70, ainda menino-moço, fui às ruas com outros jovens pedir liberdade, enfrentando (apanhando) os militares. Depois, foi a vez das Diretas-já. Depois vieram as cara-pintadas. No começo, todos diziam que era coisa de menino, de "rebelde sem causa". E o Brasil mudou para quem lutou e até para quem não acreditou. O Brasil pode não ganhar a Copa, porém o povo brasileiro já ganhou o seu legado.

É, pois é. É isso aí.

Fonte: O Jornal/Salomão Wenceslau

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