Intocados

Intocados

A chuva radioativa começou repentinamente. Impregnando o solo, causando mutações, acelerando a evolução. Separando impiedosamente as variações mais resistentes daquelas outras incapazes de sobreviver ao coquetel de isótopos ativos que bombardeavam tudo à volta. Ele continuou caminhando resoluto, as gotas da chuva purificando ainda mais sua pele escamosa. Tinha um destino em mente.

Passou pela tenda do Ciclope. Era assim chamado porque possuia um olho esquerdo diminuto, enquanto o direito era deslocado no rosto até quase a metade.
Tal mutação curiosa o fazia parecer com a mitológica figura, da qual adotou o nome.

– Ei, Lagarto!

A chuva começa a ficar mais amena…

– Grande Ciclope!! Me encha um caneco daquele seu vinho de batatas especial…

Coloca dois cristais de quartzo sobre o balcão, moeda de troca corrente na época.

Quase esvazia o caneco num só gole, os vapores alcalinos descendo pela garganta e logo em seguida se espalhando pela cabeça.
– Vai mesmo às minas de sal encontrar os Intocados? Os que conheço que voltaram de lá contaram que a visão não é muito agradável.
– É necessário! Este meu problema só posso resolver com eles.
– Sabe que vão tomar todas as precauções, não é? Desinfetar, te cobrir com capas de chumbo… Vai ser algo bem aborrecedor!
– Eles são frágeis, não suportariam alguém trazendo ambiente externo naquele ambiente esterilizado.
– Você deve saber por que são chamados de “intocados”, não é?

– Claro! Nunca foram abençoados com o contato radioativo. São livres de mutações, dizem até que são geneticamente idênticos aos humanos do século passado.

– Não sobreviriam quinze minutos aqui fora. Tão fracos! Chega a me dar pena…

– Toda criatura viva tem direito ã vida garantido.

– Sim, de fato! Só não entendo que vida é essa, cercada por paredes de sal de centenas de metros de espessura e vivendo dentro de cápsulas de chumbo, incapazes de suportar nossa abençoada radiação.

Os efeitos da terceira grande guerra ainda se faziam presentes mais de cem anos depois do acontecido. Na época, quem pôde se escondeu nos vários abrigos anti-atômicos espalhados pelo planeta, protegidos do ambiente hostil que em pouco tempo cobriria toda a Terra. Continuaram se espalhando debaixo da terra como toupeiras. Mas bilhões não tiveram a mesma sorte, e precisaram suportar as consequências da guerra. Na verdade não a suportaram realmente. As primeiras gerações pós terceira-guerra sofreram muito com a adaptação forçada. A espécie humana, bem como grande maioria das espécies animais e vegetais, chegaram bem perto da extinção absoluta!

Porém, mesmo a radiação tem seu lado benéfico: ela acelerava espantosamente as mutações genéticas, resumia em décadas o resultado de evolução natural que antes demorava milênios. Quem não a suportava, perecia. Mas os que nasciam resistentes a ela, não encontravam concorrência biológica. Tinham um espaço gigantesco no planeta para passarem adiante suas mutações vitoriosas, bem sucedidas. Outro benefício inusitado: o mundo ficou enfim livre das baratas, ao contrário do que diziam as antigas lendas de que elas seriam as únicas herdeiras de um mundo pós guerra-atômica. Sobreviveram aos lagartos gigantes, mas os cogumelos radioativos foram demais para elas.

A população humana começou a aumentar mais uma vez. Humana? Poderiam não nos parecer mais tão bonitos, assimétricos, mas que importava isto se eram perfeitamente adaptados ao ambiente novo? E quem decide o que é belçeza? Qual o problema de não se ter orelhas, rosto assimétrico, quatro ou cinco mamilos, pele escamosa, ou o que fosse, se com isto também ganhassem resistência ao ambiente radioativo dentro do qual não tinham escolha, a não ser viver nele? Naquela era, bonito era conseguir sobreviver.

Lagarto, em particular, tinha uma tolerância incomum ao arsênico. Dádiva impagável herdada de uma mutação familiar propagada por no mínimo três gerações! Uma consequência inusitada de tal mutação era a existência de um sexto dedo, o mindinho, em cada mão. Como se queixar disto? Fôra abençoado com um dedo a mais em cada a mão do que a população média. Foi inclusive, embora ele nunca tivesse admitido, um dos critérios de escolha de sua atual parceira. Além, é claro, do fato dela ter um terceiro mamilo, algo que sempre o atraiu nas mulheres.

– Preciso da ajuda dos intocados para um teste, Ciclope! Ao que parece, meu futuro filho está se desenvolvendo… perfeito! Isto está me tirando o sono!

– Perfeito? Está certo disto? Nenhuma assimetria, membro adicional, anomalia metabólica?

– Você bem sabe que o único motivo dos meus viverem confortavelmente naquela terra anil é nossa tolerância ao arsênico do solo. É o que nos torna senhores daquele pedaço de terra por gerações! Não me passa pela cabeça a idéia de que nosso filho não possa crescer conosco…

– E eles, os “intocados”, cederiam tais testes adicionais à sua esposa por qual motivo?

– Tenho o que barganhar com eles. Influência, você sabe bem do que estou falando. Posso propor uma troca interessante…

– A ponto deles arriscarem a presença do que… (como eles dizem mesmo?) – … contaminação do mundo exterior?

– Estou disposto a ceder aos seus caprichos: as câmaras de descompressão, roupa anti-radioativa, duchas esterilizantes…

– Bom, que mais posso dizer se te vejo assim tão decidido? Boa sorte então!!

Lagarto vira o resto do vinho de batata do caneco, no fundo do qual brilha um pó fluorescente de césio, cortesia do Ciclope. Sai em direção às minas de sal, a uns quatro ou cinco quilômetros adiante.
Coberto dos pés à cabeça com suas capas de chumbo, era impossível perceber qualquer parte dos corpos dos intocados que guardavam a entrada da cidade dentro daquela verdadeira cordilheira de sal! Mal se viam seus olhos, protegidos por uma grossa camada de vidro esverdeado impregnado de chumbo. Lagarto precisou se despir, colocando seu par de umbigos à mostra para quem quisesse vê-los.

– É mesmo necessário este banho para eliminar minha camada epitelial radioativa? Vou me sentir meio exposto, desprotegido sem ela.

– Ou concorda, ou não entra.

Lagarto se desfez então daquela camada de proteção. De qualquer forma, entrando naquele ambiente estéril, ela nem faria mesmo falta! Não havia lá dentro do que precisar se proteger.

Entrou por aquele extenso corredor branco. Apesar de pouco poder captar de suas expressões, era capaz de sentir a repugnância dos guardas “intocados” ao ver as escamas de sua pele. Era notório que eles, a todo momento, desviavam os olhares.

– Vista esta roupa de chumbo!

– Não vou me sentir sufocado?

– Vai te isolar. O ambiente lá dentro é mantido a 15 graus celsius. Ela vai te deixar confortável. Sua radiação natural também vai te ajudar nisto.

Quinze graus?!! Santíssima Radiação!!! Quanta diferença para os 60 graus do exterior, proporcionados pelo abençoado efeito estufa do dióxido de carbono!

– Esta luz fria que ilumina aqui, qual sua frequência?

– Luz branca estritamente dentro do espectro visível, exceto por uma pequena parte de infravermelho para manter o calor. Nada mais.

– Sem ultravioleta?

– Nenhum traço desta radiação letal dentro de nossas minas. – explica um dos guardas.

Luz praticamente 100% fria? Por um instante Lagarto se sentiu entrando no círculo infernal de gelo descrito por Dante. Como era possível alguém viver confortavelmente em tal ambiente?

Foram câmaras e mais câmaras de descompressão. Ele contou umas dez, mas pode ter perdido a contagem no meio do caminho. Precisou inclusive vestir uma segunda capa de chumbo sobre a primeira!! Sagrado Plutônio! Como devem ser frágeis estes “intocados” para precisarem de tanta proteção…

Chegou na cidade do centro da montanha envolto em tantas camadas de poliestireno impregnado de chumbo que mal podia se mover. Sentiu-se um extraterrestre, ou melhor, um astronauta caminhando sobre o solo de seu próprio planeta. A população de intocados se aglomerava em volta, mas sempre guardando uma certa distância. Temiam talvez mutações genéticas saltitantes atravessando aquelas duas capas de chumbo e contaminando seus genes inalterados por mais de um século? Olhou com mais cuidado para seus rostos, e pensou: “Que gente feia!! Todos perfeitos, simétricos, dois olhos da mesma cor, cinco dedos em cada mão, narizes perfeitamente centralizados no rosto, tão… tão iguais uns aos outros!!” Como se reconheciam? No mundo exterior as mutações genéticas forneciam individualidade a cada pessoa. Ciclope, por exemplo, possuía uma assimetria ocular incomum. Poucos desenvolviam tal mutação, e era a característica que o fazia ser, inquestionavelmente, o “Ciclope”! Ele, Lagarto, não tinha uma característica tão incomum assim nas escamas de sua pele. Mas apresentava diferença de pigmentação nos olhos, o direito verde e o esquerdo castanho escuro. E pelo menos na vizinhança de onde vivia era o único que apresentava tal combinação, o que o identificava como “O” Lagarto… Era sua identidade!

Lançou mais um olhar para os intocados. Tão iguais!!! Mais do que se reconhecerem: como é que um intocado sabia que ele era ele mesmo, e não outro intocado? 50% do DNA da mãe, mais 50% do DNA do pai, sem margem para as variações aleatória proporcionadas pelos raios gama dos isótopos radioativos. Como era possível viver num mundo assim?

O diretor do Centro de Controle Genético apareceu com uma máscara cirúrgica no rosto. Grande Cogumelo Atômico, quanta hipocondria!!! Será que ele realmente temia tanto o abençoado contato radioativo, mesmo com tantas barreiras de chumbo que ele fôra obrigado a vestir? Estava claro que ele tentava evitar maiores contatos com o Lagarto. Ainda assim, lagarto tentou ser cordial:

– Os edifícios aqui em volta são bem baixos, não é?

– De fato! Recentemente limitamos em 1,5 metros a licença para propagação genética da estatura da nossa população. Isto nos permite construir edifícios de andares mais baixos, acomodando um maior número de pessoas em menos espaço. Isto é importante dentro destas montanhas, onde nosso espaço é limitado!

Lagarto olhou bem para o rosto do diretor: tão liso, tão perfeito, tão… repugnantemente simétrico! Toda aquela simetria bilateral começou a embrulhar seus três estômagos, e ele se segurou para não dar um vexame imperdoável naquele exato momento, regurgitando sua última refeição.

– Já sei o que você quer, não precisamos alongar muito este encontro.

– Ótimo, Senhor Diretor! Aqui estão os exames pré-natais da minha esposa. Espero que possa dar-lhes uma atenção especial.

– Pode estar certo de que vou colocá-los nas mãos de nossos melhores geneticistas. Trato é trato! De sua parte, também está tudo OK ?

– Certamente! Os núcleos radioativos de cada usina do topo da cordilheira de sal vão continuar gerando potencial elétrico limpo às suas cidades! Conversei em particular com cada um dos técnicos encarregados das barras de urânio…

– Nenhuma chance de contaminação?

Apesar de não compreender tanta relutância dos intocados em se exporem àquela bênção que os tiraria enfim da idade média evolutiva e de tanta dependência dos “seres exteriores”, ele concordou:

– Sim, nenhuma “contaminação”. Eu fiscalizei pessoalmente a instalação de cada uma das placas do maldito chumbo.

Aquele “maldito” lhe escapou sem querer, e o diretor percebeu isto. Mas fez questão de não comentar o deslize. Melhor assim!
– Dê-me seus exames. Verei o que meus geneticistas podem fazer. Se ficar comprovado que seu filho está se desenvolvendo normal, pode estar certo – engasgou neste ponto – hãm… que nós iremos acolhê-lo e ele conviverá normalmente em nossa sociedade. Será um humano intocado igual a qualquer outro, com todos os seus direitos garantidos!

Pela reavaliação dos exames, o pior aconteceu: os geneticistas não puderam identificar no feto nenhuma anomalia genética significativa! Mas Lagarto iria até o final, não desistiria assim tão fácil! Apenas após a concepção, ao ficar claro que seu filho realmente nascera como um humano normal, totalmente desprotegido na superfície da Terra, é que ele o entregaria para viver naquele inferno esterilizado!

O novo ser começou a sair do ventre de sua esposa, de pernas abertas, a esquerda um pouco mais curta que a direita. Saiu a cabeça: dois olhos, orelhas, nariz… tudo normal!! Pele lisa sem escamas! Vê o resto do corpo saindo, expulso pelas contrações do parto. Dois braços idênticos, duas pernas…

É um menino. Mas infelizmente um menino normal: um pênis e dois testículos… Lagarto começa a entra em desespero! De fato isto condizia com a reavaliação dos geneticistas, mas no fundo ele ainda esperava que eles estivessem errados.

Enfim, saem os dois pés… perfeitos! O que ele e a esposa haviam feito de errado? Como tal criatura intocada poderia viver em seu mundo, junto de seus pais? A criança é levantada, e pendurado ao seu ventre se vê um único cordão umbilical.

Só um umbigo!! O que ele fez para merecer tamanha desgraça??

Conformado em precisar entregar seu filho para os “intocados”, ele pega sua mão pequenina: um, dois, três, quatro, cinco… seis dedos!!! Conta a outra: também seis!! Seis dedos, a marca da mutação tolerante ao arsênico! Enfim, seu filho poderia herdar suas terras, viver entre os seus! Olhou para as nuvens radioativas no céu, e fez uma prece de agradecimento com todas as forças que era capaz, lágrimas abundantes escorrendo de seu rosto:

– Muito obrigado, meu Santíssimo Arcanjo Megaton!!! Muito obrigado por meu filho NÃO TER NASCIDO NORMAL!!!

David Machado Santos Filho

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