O Nosso Jardim

O Nosso Jardim

Resolvo tudo através da discussão. Desde sempre. Não conheço outro sistema. E não se entenda por isto que são discussões construtivas, fórum aberto, tipo vamos lá trocar de opinião para ver se chegamos a alguma conclusão. Não. São discussões acaloradas, animosas, atingindo às vezes níveis de violência impensáveis. Sou eu contra o obstáculo, inimigo sem identidade. Descarrego energias empilhadas, alimento ódios e raivas várias. Sem razão aparente. Exponho sem pudor a frustração que não agarro, exibo o lado mau com muita lata. Encerro-me num autismo que pisa sem querer – mas até quer – o outro, transformo-o num verbo de encher. Ou apenas convencido que o semelhante não passa de um alien por apurar. Uma entidade distante que teima em chocar comigo.

Tomei-lhe o gosto em pequeno, ao assistir, quedo e mudo, às fantásticas demonstrações que os meus pais me proporcionavam de forma sistemática e a cada vez mais elaborada. É óbvio que tal escola não me deixa indiferente. Assimilei-a com naturalidade e de bom hábito, também a mim se pegou como vício e entranhou-se-me na pele como uma droga. Evito a todo o custo a ressaca.Viver torna-se então a antítese de si mesmo. O Inferno por si só. A consciência perde-se nas entranhas do ser. Desesperada, pendura-se nas amarras da sobrevivência. O instinto reage e a infelicidade pespega-se-me nas trombas.

Arrasto-me em dias, em anos e mais séculos nesta condição. No meio desta praga, acredito que vou vencer. É este pensamento que segura a minha vida presa por um fio. Queimo o tempo, precipito os acontecimentos. Até nas discussões estou mais rápido e eficiente.

No meio deste despautério, viajo a um jardim. Um qualquer e como em qualquer um, a Natureza corre os seus ciclos sem acidentes. Observo árvores e plantas. Escuto o seu doce murmurar. Pasmo com a beleza e simplicidade. Admiro-as no seu posto de vigia, bem lá no alto, quase alheias à sua vida natural. As folhas debotam, os ramos secam, caiem por terra para abraçar uma nova vida e tudo começa outra vez. É a Natureza a falar, tranquila na sua nudez, renovada sem dramas, viçosa na serenidade. Na verdade tudo o que me incomoda e o que me atrai.

Vejo o Joaquim, ainda criança, acocorado à beira do lago. Os patos e os cisnes aproximam-se e disputam as migalhas que ele vai atirando em ritmo lento. A vida corre com mais vagar naquele lugar. Ali, teria tempo para pintar um quadro com o Joaquim ao pé do lago, os animais que comem o que lhe vem das mãos, as árvores que sussurram para a terra. Shshshhshshshshsshshshs…..

Atrás está a mãe, ainda nova, distante do filho. É bonita e parece preocupada. Anda devagar e assim que agarra uma árvore esconde-se atrás dela. No fim do percurso – que repete uma, outra e mais uma vez – reaparece, de cara vermelha e olhos inchados.

Joaquim tem olhos atrás das costas. Habituou-se a fingir que não percebe. Habituou-se a ser criança sem nunca o ter chegado a ser. Compreende a mãe à distância e assim a deixa horas a fio, a ajustar-se à sua infelicidade em silêncio. O dia é longo naquele jardim, a avaliar pela posição do sol.

Percorro o jardim, investigo os cantos mais secretos. Percebo que não existe mais ninguém, para além de nós os três, dos animais e das plantas. É um jardim só nosso. Um lugar especial.

Volto para baixo e confirmo a impressão de que o tempo não passou. Joaquim continua a atirar migalhas que nunca se acabam e a mãe continua a tropeçar de árvore em árvore, de cara ainda por desinchar. Mãe e filho continuam perto um do outro, sem se aproximarem.

Sinto-me fatigado de o sol teimar em não adormecer. Tenho vontade de perguntar por onde é a fuga, mas sei que não me podem ver nem ouvir. Obrigam-me a procurar: desço, subo, apresso o passo, arfo de cansaço, desconfio que tenho visões de portas sem saída . Estou fechado. Tenho pressa em sair. Não aguento mais o sol, eternamente a pico. Abrasa-me aqueles dois, juntos pela condição da Natureza e por ela separados. Ali, naquele quadro que eu poderia pintar. Não encontro a sintonia que amarra o pincel à tela. Estou cansado de procurar. Sem perceber, deixo-me cair sobre as plantas.

Estremece-me o corpo, apaga-se o sol e a lua acorda. Arrefece subitamente. Os cobertores pesam-me como quilos de mágoa. Afinal, sempre encontrei a porta de saída. A mesma de sempre. Vira o disco e toca o mesmo. O meu jardim é o pesadelo de olhos abertos.
O sol volta a nascer, manso e de tempo contado. É de manhã e chamam-me devagarinho. Acordo e finalmente não me vejo mais.

 Rita Maia e Silva

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