Plume

Plume

I
No balcão do bar as garrafas dançavam com os respectivos copos compassadamente. De vez em quando o barman – neurótico e magrinho – puxava do bastão de baseball e partia tudo só para poder limpar. Tentava fazê-lo o mais silenciosamente possível. Não gostava de incomodar a clientela. O sítio era engraçado e acolhedor. Chamava-se Plume porque não havia nome melhor.

Sentado na única mesa que, aliás, lhe estava sempre reservada, Leon Sibierski espremia a sua esferográfica para uma folha em branco. A caneta esguichava de quando em quando um ou outro palavrão por causa dos apertões mais fortes. Às vezes produzia literatura. As pessoas costumavam dizer que tinha mãos de artista. Era mentira, não conseguia tocar piano, só sabia espremer canetas.

A noite estava estrelada porque era muito mais simples do que enrolá-la em forma de omolete. Não havia ninguém na rua à excepção do pedinte de serviço, que acabava o turno dali a duas horas. Christophe aproveitava sempre esta hora para passear o seu esturjão de estimação. Chamava-se Jules.

Arrastava a sua magreza de um lado ao outro da rua com o aquário globiforme debaixo do braço e conversava com Jules sobre coisas triviais. Por vezes chegavam a falar das paixonetas do esturjão por uma sardinha ou piranha. Christophe era um bom ouvinte. Jules gostava de falar. Conseguia fazê-lo durante horas e horas a fio. Havia vezes em que Christophe se via obrigado a deitar-lhe uns calmantes e uma medida de vodka no aquário para calar o esturjão!

O jovem ambicionava escrever prefácios, mas por enquanto trabalhava em part-time como padre numa igreja perto de casa. Não se ganhava mal e nos dias de pouco movimento podia escrever sem que o chateassem.

Leon mandou vir mais uma vodka. Escrevia melhor quando não tinha a garganta seca. O barman serviu a bebida num copo alto e fino. Depois levou-a à mesa com o bastão na outra mão. Assim que pousou o copo deu-lhe logo uma traulitada. Pediu imensas desculpas e foi buscar o pano para limpar o líquido da mesa. Leon aproveitou para pedir outra vodka. Já era a quinta que consumia e não estava tocado.

O barman neurótico trouxe-lhe mais um copo e limpou a mesa. Por sorte o líquido derramado não havia atingido as folhas de Leon. O jovem continuou a espremer a caneta, estava a sair uma história sobre um rapaz que ambicionava escrever prefácios.

Deu um golo na bebida e pousou a caneta para fumar um cigarro. Era o intervalo, o público interessado aproveitou também a ocasião para fazer o mesmo. Todas as noites lá iam ver Leon trabalhar sobre o papel. Todos diziam que tinha mãos de artista, mas ele continuava a não saber tocar piano. Por enquanto fumava e bebia, era o intervalo.
II
Leon acabou o resto da vodka no copo antes que o barman neurótico trouxesse o bastão de baseball. Depois apagou o cigarro com a borracha verde que tinha no bolso. O público aplaudiu, estava tudo preparado para o recomeço do espectáculo. O barman pegou no bastão e partiu tudo o que se encontrava em cima do balcão – dois cinzeiros, sete copos, uma chávena, um pires, um cotovelo, cinco dedos e uma criancinha. Fez-se silêncio.

O senhor Sibierski pegou na esferográfica, segurando-a com o médio, o indicador e o polegar da mão direita. Depois olhou em volta com ar de escritor profissional e deu uma apertadela discreta. A caneta esguichou um dois em numeração romana. O público ficou boquiaberto, que perícia! Um verdadeiro artista! Pena não tocar piano…

Christophe acabara o seu melhor prefácio. Era uma verdadeira obra-prima apelidada de “Prefácio à primeira edição d’A Clarividência Humana”. Conseguiu firmar um contrato com a Marlowe & Crespo, a vigésima oitava maior editora do país. A publicação estava agora garantida assim que alguém escrevesse o livro. Recebeu um pequeno adiantamento e despediu-se do emprego de padre. Estava farto. Uma coisa era ouvir as confissões de Jules, outra era não poder embriagar as velhas beatas para que se calassem.

Quando recebeu o cheque de pagamento do prefácio não resistiu e comprou um trompete. Queria ser um artista, mas o piano era mais caro e difícil de transportar. Todas as noites, depois de dopar o esturjão, pegava no trompete e passava o que tinha escrito para o instrumento. Às vezes enganava-se a soprar o que escrevia, tinha uma caligrafia difícil. O seu sonho mais recente passara a ser dar espectáculos num bar, de preferência pequeno, só com uma mesa. Um sítio onde as pessoas viessem de longe só para vê-lo escrever prefácios e depois tocá-los no trompete. Um sítio onde todos dissessem que ele tinha mãos de artista, apesar de não saber tocar piano.

Leon parou subitamente de apertar a caneta. Fartou-se da história do jovem que escrevia prefácios. Os artistas são assim, temperamentais e imprevisíveis, mesmo quando não sabem tocar piano. O público ficou espantado mas tornou a aplaudir. Não acabar a história era a prova de que Leon era um génio, um verdadeiro artista.

Depois do barman neurótico ter feito outra limpeza ao balcão, a debandada foi geral. O senhor Sibierski viu-se a sós no bar, apenas com a companhia agradável do barman com o bastão de baseball. Era a hora do fecho. Leon arrumou as folhas na pequena pasta preta aos seus pés e disse à caneta que se podia ir embora. O animalzinho obedeceu.

Leon pagou a despesa das doze vodkas que havia consumido, mas teve o cuidado de não pousar a mão sobre o balcão para não ficar sem ela. Depois saiu e fechou a porta, o barman permaneceu lá dentro a partir coisas para limpar.

Caminhou lentamente até casa. Não se via ninguém na rua, apenas o pedinte de serviço que acabava o turno dali a duas horas e um jovem com um aquário debaixo do braço. Leon foi descendo a rua devagar e não demorou muito até que o som melancólico de um trompete se juntasse a ele.

Nuno Berkeley Cotter

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