Um Casal dos Infernos

Um Casal dos Infernos

A agitação reina absoluta no lar dos apaixonados capetas: Rabudo e Rabuda.
_ Malditooo! Ô malditozinho! Me ajuda aqui. Já está quase na hora! – grita Rabuda do quarto do casal.
_ Já vou! Já vou! – Responde Rabudo, saindo depressa do banheiro, sem terminar, como gostaria, o que estava fazendo.

Muito agitado, pergunta à Rabuda:
_ Será que agora é pra valer, minha flor de enxofre. Eu já não agüento mais esse vai e vem sem resultado! Capeta-mor nos defenda…
_ Como é que eu vou saber, Rabudo? Se dependesse da minha vontade, tudo já estava resolvido, ora essa – responde Rabuda, meio chateada.
_ Pois muito bem! Só vou essa última vez! Tenha a infernal paciência! – diz Rabudo, já irritado com toda aquela mexida infrutífera.

Rabuda, muito sensível e fragilizada, principalmente pelo desafio que enfrentaria dali a poucos minutos, entristece-se, e lágrimas incandescentes querem rolar pela sua face. Onde andava aquele capeta – para ela – tão carinhoso, tão gentil, tão romântico de séculos e séculos atrás? Um casamento infernal como o deles acabando-se assim, só por uma discussãozinha besta, sem rabo e sem chifre? Seria ciúme? Lembrava-se ela, sem muito esforço, até do primeiro bilhete de amor – secretíssimo – que dele recebera, em versos:
“Minha infernal criaturinha
Tu és para mim
Extrato do mais puro enxofre
Lava fresca de um vulcão
Banho salutar e aprazível em um gêiser
Brasa vermelha, tinindo
Língua de fogo, peito de maçarico
Tudo isso, maior riqueza que um capeta
Nesse inferno pode desejar!”
Te odeio! Te odeio! Te odeio, muito! Te odiarei, eternamente.
Do seu odiado chifrudo, Rabudo.

Hoje, ao recordar esses versos – tristes versos -, Rabuda reconhecia que o seu Rabudo não tinha a menor veia poética. Ela não sabia de que gigantesco embornal literário Rabudo tirara tantas palavras estranhas. Pior: nenhuma rima, e ela adorava rima! Ali, rima só de “chifrudo” com “Rabudo” – para ela, lindíssima rima -, mas nem fazia parte desses “versos”. Que pobreza! Em todo caso, quando recebera e lera o poema, o que antes era uma raivinha à-toa transformara-se em ódio. Muito ódio. Ódio imortal!

Ainda bem que – suspirava a Rabuda – o seu odiado Rabudo não se metera a poeta: bolso vazio e cabeça cheia de rimas, ricas e pobres. Mais pobres do que ricas, com certeza. Na cabeça dele só o belo e cobiçado par de chifres: sinal de muito poder. Iluminado pelo capeta-mor, montara uma indústria de tridentes. Ia de vento em popa com seu negócio: muito dinheiro e muito status . Negócio infernacionalizado: filiais por todos os distritos do inferno e, até, infernogalácticos. Rabudo era o maior exportador do imprescindível artefato, que, em mãos diabólicas, era brinquedo assaz divertido. A veia poética, latente, o ajudara bastante no início do negócio. Rabudo cedera aos caprichos da sua infernal esposa e propagandeara em boa rima:
“Capeta pra ser alegre e sorridente
só compra do meu tridente”

Abaixo, em destacadas letras: Organizações Rabudo. O comercial fizera sucesso.

Enquanto era ajudada por Rabudo a entrar no vestido novo – engordara bastante, reconhecia -, Rabuda continuou com suas lembranças. Pensava agora na explosão infernográfica: milhares de capetinhas nascendo a todo instante – capetas natos -, e não paravam de chegar pessoas naquele Inferno dizendo-se, a princípio, inocentes. Desdiziam-se da sorte: era mesmo injustiça de Deus, intriga da oposição e tantas outras mortais desculpas. Mentiras da mais pura e leviana humanidade. Mas, logo todos se acostumavam e assumiam o chifre e o rabo de muito bom grado. Em seguida, eram naturalizados. Por tais razões, tinha muito orgulho do seu Rabudo: que inteligência, que visão! Mais capetas, mais tridentes e mais dinheiro!

Um beijo fervente na testa cortou seu pensamento. Rabuda se enternece. Pensa: “Esse é o meu Rabudo, que eu conheço tão bem. Odioso que só ele!”. Retribui o beijo com outro mais fervente ainda. Anima-se.

Rabuda vai à cozinha e bebe um copo d’água com açúcar, para diminuir a ansiedade e o nervosismo, que tentava disfarçar. Rabudo apaga as luzes e fecha a porta. Saem. Resolvem ir a pé. Caminhar sempre faz bem para os nervos. Saem de braços dados. Rabudo a apoiar Rabuda, todo cuidadoso: “Cuidado com o rabo, cuidado aqui, cuidado acolá, olha o degrau, olha isso, olha aquilo!” Vão andando devagarinho. Rabuda economizando energia. Iria precisar muito dessa energia quando aquele momento tão esperado, por ambos, chegasse.
Conversam:
_ Nervosa?
_ É… um pouco.

Rabudo comenta:
_ É! Agora que eu estou observando melhor, vejo que você engordou um bocado!
_ É verdade! Mas, também, nove meses, quietinha em casa… Logo, logo, estarei em forma de novo. Aguarde e verá!
Enfim, chegam ao destino. Uma variedade enorme de capetas: crianças, jovens e velhos. Filas e mais filas. Grande agitação. Sempre era assim naquele local.
Um grito e, em seguida, correria infernal em direção ao casal que passava:
_ Capetada, a Rabuda Star!

Rabudo tenta proteger a esposa-roqueira do assédio encapetado dos fãs. Tenta proteger, também, a todo custo, o vestido dela: bonito e caro.

Todo cuidado era pouco. O retorno de Rabuda aos palcos causava furor, fora muito esperado: nove meses Rabuda ficara sem poder cantar, operada de garganta.

Para a salvação do casal, em meio ao tumulto, aparecem os promotores do evento. Chegam, desculpando-se por todo o transtorno causado à inigualável inferno-star, a grande, a insuperável Rabuda. A irritação de tanto ir e vir do Rabudo terminara. O show dessa vez ia, realmente, começar…

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