Uma Casa de Malas

Uma Casa de Malas

Armando Borges, nascido em Mondim de Basto – Trás-os-Montes, inicia a sua carreira literária na ficção com este conto que nos foi enviado como proposta de colaboração. “Ao entrar nos setenta e com o tempo que é seu”, escreve na carta que acompanha o conto, “decide dar curso à sua submersa e real apetência a vida inteira: ouvir, contar e contar-se contos (ou falar sozinho).” Tem pronto a editar um primeiro livro de contos, e em vias de acabamento o segundo (O meu heroi de La Lys) a que pertence o presente inédito.

Entrámos a ver umas camisas, eu e um amigo que trabalha na comunicação e cultiva o instinto de predador, inerente a boa parte da irmandade.
– Aí tens uma catedrática. – apontei-lhe susurrando. – Tem mais de meio século de fado, aqui onde a vês.
Estava ali a Libânia, em toda a sua quase secular jovialidade. “Tomara muita rapariga ter o meu busto” – respondia, gargalhando, ao camiseiro já entradote, com quem viria mantendo diálogo condimentado.
Bem firmada em saltos que lhe davam ainda alguma elegância, enxuta de carnes, cabelo pintado, as próprias rugas duma patine aristocrática, sem luxo mas sobriamente ataviada, era daquelas mulheres sobre quem se pode arriscar uma idade entre os cinquenta e os sessenta, mas nunca entre os setenta e os oitenta, que era o que ela bem media.
Mais quisera saber o meu amigo, mas a fonte secou diante da sua repentina curiosidade e do meu receio duma devassa ao bom estilo do tablóide chicaneiro – muita foto, muita palha incendiária. E a Libânia, talvez até vaidosa, embalando na proposta, a reviver os tempos em que, à porta dos Correios, ponto estratégico de ataque, se ufanava dos seus saberes aprendidos “no sítio”, encarecendo, diante de potenciais clientes ou, como eu então, simples neófitos, o seu estilo pessoal, com termos que o diabo esqueceu. “Sou a única que faz o verdadeiro botão de rosa francês e a canção belga. O que p’raí se faz não é mais que uma punheta com a boca.”
Tinha estado seis meses em Paris, em casa de uma amiga que fazia a limpeza numa clínica. “Mesmo assim gastei mais de quatro contos, que me custaram muita noitinha no vinte das salgadeiras” – frisava, para realçar o sacrifício e os recursos investidos no adestramento profissional, lá «no sítio».
Catedrática, é o termo que me ocorre (Honni soit qui mal y pense) sempre que na figura me detenho com a confortável certeza do anonimato, que é, porventura, a condição de todo o iniciado cujo gradual afastamento por naturais incidências da vida, por conceitos e preconceitos, vai ensinando a olhar de vista grossa quem não julgamos da nossa igualha.
Nunca entendi bem o seu papel. Desaparece durante uns tempos, volta a aparecer, convivendo com a mesma e sempre renovada fauna que faz o giro da baixa e com quem se reúne no café ou no restaurantezito em animada palestra, sendo crível que ela própria faça ainda o seu cabrito e exerça, além disso, uma espécie de docência entre as mais jovens, a quem procure instilar clássicos saberes sobre sexualidade, com reminiscências dos recuados finais da guerra em que gigantescos porta-aviões dormiam semanas na cama do Tejo, como os turistas dormiam nas camas dos hotéis.
A permanência dessas avantesmas era um estorvo para quem do cacilheiro, a olho nu, gostava de calcular latitude/longitude em relação à outra banda, quando não existiam, ainda, nem ponte nem Cristo Rei. Era também, em certa medida, motivo de alguma desestabilização, pode dizer-se, entre procura e oferta, não porque isso traduzisse, como com outros bens e serviços (sublinhemos aqui “serviços”), o fenómeno inflacionário. Não. Os preços acompanhavam o modo ronceiro do ritmo de crescimento de então. O Vinte das Salgadeiras, acertando, por graciosa coincidência, o preço com o número da porta (vinte era o número de polícia, vinte escudos o preço da viradela), mantinha os mesmos vinte nesses períodos sazonais – consequência duma ainda incipiente mentalidade empresarial. Assim também o sete do Bem Formoso ou o cinquenta e oito da Calçada dos Cavaleiros, sensivelmente mais modestos nos seus dez escudos pelos mesmos serviços, não alteravam nem preços nem equipagem. O que sucedia era restringirem-se os giros de rua, pela necessidade de maior permanência no bordel, mais animado à noite e nos fins de semana com os ruidosos grupos de marines, que pelo entardecer saturavam a paisagem de barretes brancos, da ponte da nave atracada no cais, cobrindo o largo até Remolares e princípios do Alecrim, aí se entranhando por veias e vielas adentro dos colos da Lisboa mãe.
Aqui é que se manifestava um esboço de desestabilização, que se esfumava imediatamente após a partida da unidade naval. Muitos dos frequentadores e devotos das capelinhas de luz vermelha, conspirando nos bares do cais e nos cafés da Atalaia e do Calhariz, chegavam a propor uma espécie de greve, no que eram secundados por uma reduzida súcia de selectos peraltas, que se propunham assegurar os piquetes, na esperança de poder baixar calças perante quem necessitasse despejar os odres.
Tudo, então, se recompunha, mas esses dias eram de ressentimento e de rebarba. E no caso da Libânia haviam de produzir sequelas de que a princípio a patroa do Vinte, a dona Soledade, se lamentaria, e de que a Libânia viria também a lamentar-se, mas muito mais lá para o fim. A dona Soledade porque perdia a visita muito discreta e a horas certas dum senhor engenheiro da Shell que só queria os serviços da “pequena que esteve fora”. Assim também, e reivindicando a mesma consolação, o debuchador de uma fábrica da Covilhã, muito esquisito, sempre com o frasco de álcool e colocando um toalhete sobre a púbis da Libânia, que depois – muito depois – se diria arrependida, quando as deserções ante a sua madurez puxavam a nostalgia desses tempos de menina bonita do Vinte da Rua das Salgadeiras.
O caso é que numa dessas noites em que a sala regorgitava de camones, o Filipe, o seu “amant de coeur”, como gostava de o nomear diante das colegas, a exibir o seu francês, fora desfeiteado – ele, o Filipe, campeão de luta livre (amadores) no Atlético de Campo de Ourique e ajudante de torneiro (não em exercício).
O Filipe não entrava em conspirações, mas a escassez dos encontros com a chavala fora de serviço, levavam-no, às vezes, a procurá-la nesses períodos, não tanto por zelo amoroso, mas pela necessidade de antecipar ou reforçar a colecta, por sinal mais generosa nessa conjuntura de maior fluidez cambial em que a cerveja e o marisco na Portugália o ressarciam da modesta feijoada e uma económica na Cova Funda, se não mesmo, com o copo de três, uma bifana ou um choco no pão, no Campaínhas, em fases, como se dizia, em que a raposa anda aos grilos.
Nessa noite de desacato, quando ao fundo da sala a Libânia lhe passava uns cambiáveis por baixo de mão, um grosso matelote (grosso de vulto e da cerveja) passou a grossa manápula na polpa traseira da sua amásia.
Nada mais foi necessário para que o Filipe, após um recuo meneante a fazer lembrar o Cantinflas, se fizesse ao bruto num antebraçal cruzado. Mas o camone vinha da escola de outros manageres, e sem qualquer apoio subsidiário deixou o Filipe numa chaga.
Grande foi a lambança. Da rua subiu a ronda, veio reforço e o Vinte das Salgadeiras ficou essa noite de quarentena.
Por alta madrugada saía dos Voluntários da Ajuda, amparado à Libânia, com nove pontos do queixo à nuca e um olho fechado e pintado, o infortunado Filipe. Infortunado e engalinhado se poderia dizer, pois não havia muito tempo em que o seu primeiro e único combate fora do âmbito do amadorismo, veementemente desaconselhado pelo Silvino do Talho Mimosa, que era o manager, constituíra um desastre de que mal ainda se refizera. Mas queria saltar para a ribalta. Um fura-vidas que contratava umas garraiadas e outros eventos de menor rigor e afición, soube pelos rapazotes que engraxavam ao fundo do elevador da Glória, de um certo Filipe que entrou no campeonato dos bairros, na Graça, que dera tapona num gajo que era campeão há dois anos.
Foi dito e feito. “ Queres ganhar quinhentos paus?”. – propusera-lhe o fura-vidas.
– Quero sim senhor.
– Mas tens de te sujeitar às condições, que isto para entrar na profissão é preciso entrar-lhe nos segredos.
Dissesse. O que importava era saltar para a ribalta… Saltar para a ribalta e saltar da Bobinagem Sepeda & Sobrinho, onde não pôs mais os pés.
– Pois bem. O árbitro anuncia um combate de cinco assaltos, mas tu cais por KO ao quarto. Arranja-te como puderes mas tens de cair ao quarto assalto, de modo tal que o público se não dê conta. Começas a fazer-te moído, aí pelo fim do terceiro, e antes do fim do quarto deixas-te cair redondo no chão. O gajo combina contigo. É um espanhol batido. Não há encrenca. Recebes depois do combate.
Tudo muito bem. Só que no morro do Jardim Botânico, sobranceiro ao ringue do Parque Mayer, onde decorriam os combates, para fugir a despesas costumava alcandorar-se uma certa matula dos ardinas, curtos de fundos mas algo entendidos na poda e sobretudo colocados num plano que lhes permitia maior visão sobre a mal ensaiada patranha. E antes ainda do fim do terceiro assalto, já de lá de cima, por entre berreiros de “putas de bailarinas”, choviam torrões, um dos quais envolvendo um pedregulho antecipou o KO ao abater-se na cabeça do Filipe, onde uma cicatriz recente, coberta com espessa madeixa empastada de brilhantina, era motivo de brio profissional dos voluntários enfermeiros que agora lhe suturavam a queixada.
Foi devido a esse infaustoso combate, numa tarde de Agosto, que a independência do Filipe, já esboçada com a recusa ao torno da Bobinagem Sepeda & Sobrinho, seria definitivamente consolidada com a recusa do divã no quarto que partilhava com dois irmãos mais novos. Doravante acabavam-se as satisfações a dar pelas ausências e entradas tardias. Independência total, pois agora ia depender apenas da quarta chave do quinto direito da Rua do Carreão a São José, onde a Libânia partilhava duas assoalhadas com a Pòlita, uma bailarina que sobrara dum grupo de flamenco e que há mais de dois anos actuava nos bailados de uma companhia de revista do Parque. A terceira chave detinha-a o senhor que ajudava a Pòlita e que sempre entrava e saía pela madrugada, – “um graúdo”, segundo a Libânia, – enquanto um motorista fardado esperava na rua a fumar e a assobiar.
Boa rapariga, a Pòlita. Mal sentiu a Libânia a meter a chave e se apercebeu de que estava em apuros, cedeu a sua almofada, que era de penas, ao sinistrado, e deitou a amiga com ela na cama para que essa noite o Filipe conseguisse descansar.
Confortou-a, e mais uma vez reiterou a sua intenção de abrir “una casa de malas” quando voltasse para Sevilha. Que tão depressa o fizesse, chamaria a Libânia para sua sócia. Um sonho que a Libânia, de resto, acalentava e que partilhava mesmo com o Filipe, desde que a Pòlita lhe revelara o seu projecto, havia um ano.
Uma casa de malas em Sevilha!

Há males que vêm por bem, e bens que vêm por mal. Seja o que deus quiser. Ia passar a fazer só a rua e ver se a dona Soledade lhe mantinha o cartão de tolerada. Talvez viesse mais algum, mais que não fosse um contributo a garantir-lhe posição na futura casa de malas.
Nessa manhã mesmo se dirigiu à Rua das Salgadeiras. Rebateu as fichas pendentes dos serviços cuja percentagem, na emergência da saída com o agredido, não pôde cobrar, e despediu-se da dona Soledade que a abraçou com uma lágrima de amizade: “A porta está sempre aberta, minha filha”.
Também ela se comoveu, e não fora a sua esperança na casa de malas em Sevilha, teria voltado atrás. Afinal a dona Soledade, afora certa esquisitice em questões de higiene e o terror do mal gálico (antes de saber se havia pão ou arroz na cozinha, tinha de saber se havia sabão e permanganato junto dos bidés) era amiga das raparigas, tinha coisas, às vezes, que só de mãe. Rezava o terço quando fechava a porta na rua. Apagava as luzes, acendia a lamparina e ajoelhava-se diante de São José. Quem a quisesse acompanhar, acompanhava-a. Quem não quisesse que se fosse deitar com a graça de deus. Mas nunca faltava, no final, um padrenosso e uma avemaria pelas ausentes. Bocas sujas era lá fora. Na sala, muito respeitinho. Muita labrega ali aprendeu com ela a vestir-se, a falar e a ter modos de gente decente. “À puta que se caga não se lhe paga” – foi a receita milagrosa, muito baixinho, ao ouvido daquela do Gradil, que tinha o cu de formiga rabitorta e que se deixava ir, às vezes, diante do freguês.

Apenas uma deslocação aos Voluntários da Ajuda , ao fim duma semana, para retirar os pontos, boa carnadura, mercurocromo e caldinhos de sustância que a Libânia com esmero confeccionava, e aí estava o Filipe pronto a cirandar nos “mentideros”, a engrossar a classe de esperançosos campeões que coexistiam com os empresários de firmas volantes, instaladas nas mesas do “Paladium” ou do “Lisboa”, onde uma bica e um bagaço alternavam com o carimbo e a almofada do dito, além dum acervo de impressos e papel selado ou comum, quando não um pau de lacre ( de sinete servia o cachucho do anelar). E tudo passível de arrumação e transporte na pasta do gerente comercial (Que era assim que este incolectado empresário impunha que se inscrvesse no seu bilhete de identidade), quer este morasse ali ao Príncipe Real, quer tivesse de vir no sete de Algés ou no vinte do Poço do Bispo. Era aí, também, que se abonavam (quando abonavam) retardados honorários. Ao Filipe, só mais de meio ano depois do desastroso combate viria o fura-vidas a entregar vinte e cinco escudos do saldo pendente daquilo que vinha recebendo às mijinhas.
Foi-lhe difícil a primeira saída formal, pois, além da deslocação aos Bombeiros, que fizera de noite, não arriscara ainda uma incursão no “Lisboa” ou no “Paladium”, tão pouco ousara cruzar o território onde a aceitação pacífica e passível de ratificação pelos princípios de coexistência tribal entre o ardina e o graxa, exigia a adesão a rituais de meridiana transparência por parte do adventício. No que ao Filipe respeitava, era já bastante a simpática resposta do campeão à simulada provocação do graxa ou do ardina, contente por mimar, diante dos mirones da bicha que aguardava o elevador da Glória, as piruetas do gangster dos filmes de catorze partes no Piolho da Mouraria. O Filipe respondia com um ou dois arremedos de golpe gingado e ao ralenti, mas havia sempre o inconveniente de ter de ir dentro, ao “Paladium”, compor ao espelho a elevação capilar que mantinha com generosa camada de oil cream, e bem assim ajustar o casaco de corte “piló”, ao gosto e às custas da Libânia, muito em voga então e favorecendo quem tinha o peito metido para dentro, que não era, felizmente, o caso do Filipe.
A barba lá a foi fazendo, com os cuidados precisos, mas o olho direito é que parecia o dos da trupe de rudilatas no Coliseu.
Óculos pretos – decretou a Libânia – que muito bem lhe ficavam, na opinião da Pòlita, e que dariam mais substância à vaidade que a Libânia gostava de evidenciar: “Vesti-o dos pés à cabeça” – expressão do tempo em que esse vestir incluía, provavelmente, o chapéu e não os óculos.
E foi de óculos pretos, elegante no seu casaco “piló”, sapato de salto de prateleira, cabeleira lustrosa a ressumar oleosidade sobre o colarinho branco ajustado por um bem repuxado nó de gravata, que o Filipe enfrentou a família da escova, na precisa hora em que a primeira torrente de pregoeiros accionava os travões, nos calços das sapatilhas, a suster a descida louca da Calçada da Glória, deixando o rasto sonoro do seu grito e o cheiro mágico do vespertino a secar ainda os caracteres. Não era preciso pedir contenção, nem ter receio do assomo leviano do reguila sobre o combalido campeão. Tão pouco vir com histórias da carochinha, quedas na escada ou marradas na porta do armário da cozinha (“Mas a gente somos otários ou quê!”). Ninguém lhes fizesse o ninho atrás da orelha. Olha eles! Por aquele afluente escorriam tanto o boato quanto a letra da notícia, mais céleres que o rilhanço do elevador a chiar nas calhas. “Mas então conta-nos cá…”.
Pois, pois, está-se mesmo a ver…
Estava-se mesmo a ver…, pois, pois…
Não ficava mal ao campeão um cheirinho de modéstia. Cenários, eles os recriariam na sua pronta solidariedade e poder inventivo. “Que os camones era mais que as mães”. “E alguns de naifa e até de pistola” – asseverava o “Meia-Dose”, puxando o lustro ao freguês, e lamentando não ter estado essa noite no “vinte”, para fazer o gosto ao dedo.
Cordato e dando-se ânimo, o Filipe criticava o meio com fumos de veterano. “Um gajo aqui não passa da cepa torta”. Chegou mesmo a revelar o projecto da casa de malas em Sevilha, tema das conversas com que a Libânia o acalentou tardes inteiras naquela semana de convalescença, prometendo mesmo impor o Filipe como gerente. Um homem à frente do negócio era outro respeito. E depois ele, o Filipe…
Gerente de uma casa de malas!
Mais, talvez, que a própria Libânia, o Filipe embalou a quimera de modo tal que até o assédio aos empresários e os indispensáveis treinos foram sendo preteridos pelas visitas a tudo o que fosse estanco de coiros, desde o albardeiro da Rua dos Correeiros ao mais especializado estabelecimento de fina marroquinaria. E a Libânia nos Correios, explorando os seus saberes apurados “no sítio”, a sustentar os lazeres do Filipe que, mesmo assim, registava, pelo menos uma vez por semana, a promessa da realização do almejado combate. Que os tempos iam maus, mas de hora a hora deus melhora.

Um dia a Pòlita recebeu um telegrama a informá-la de que o pai se encontrava doente. Que regressasse, lhe pedia a mãe.
Arrumou as suas malas e partiu logo que pôde, levando tudo e pagando o mês adiantado para o caso de não voltar, ficando, contudo, a promessa da abertura da casa de malas, pois tinha juntado “unas platas”; que da sua parte fizesse a Libânia o que pudesse. Que escreveria, no caso de ficar em Sevilha.
Escreveu, com efeito, duas semanas depois, dando conta da decisão de não voltar. O pai melhorara e a mãe pediu-lhe para que ficasse. Quanto à abertura de “la casa de malas”, isso era ponto mais que assente. Notara, porém, demasiada concorrência no ramo, em Sevilha, pelo que iria aguardar um tempo e tentar em Cádis ou Porto de Santa Maria, pois que, em termos de freguesia “los marineros” eram sempre uma garantia.
Que “los marineros” eram uma garantia, poderia ter relevância ou despertar curiosidade, se a Libânia não estivesse habituada à “língua de trapos” daquela engraçada Pòlita, de cuja tramela coava, por assim dizer, o essencial. Entendido o trivial quanto a saúde e projectos, o resto era palha. A abertura da casa de malas, fosse ele onde fosse, era o que ali tinha relevo, tanto para si como para o Filipe que, a partir de então, passou a repartir com ela o uso da missiva (tu hoje, eu àmanhã) que patenteavam a tudo o que era amigos, amigas ou conhecidos, a ponto de a carta quase se esfarelar com tanto dobra e desdobra.
“Una casa de malas”. Não era preciso andar na universidade ou estudar línguas.
Nem tudo eram rosas, é certo. Às vezes a Libânia ria-se que nem uma tola. Quando foi da história do “polho”, foi um nunca mais acabar de gestos e rabiscos no papel até que se fizessem entender. No fim o “pollo” (só mesmo de ‘spanhóis), o “pollo” era um frango. Mas ali, por amor de Deus! Só um ceguinho.
“Una casa de malas”. Toda a gente entedia ou julgava entender: uma casa de malas, sim senhor.
Mas olhos são buracos. Isso haveria de o sentir o Filipe, com enorme frustração, uma noite, no Café Lisboa.
Um moço de Coruche, filho dum ganadeiro e habitué do Parque e das orgias nocturnas do “quartier”, não alinhado, naturalmente, com o Filipe, nos segmentos que ali coexistiam, chamou-o uma noite para a sua mesa, com o pretexto de saber da Pòlita. Não era propriamente fã da luta e do boxe. A sua paixão era a tauromaquia. Andou um ano com chapéu e safões pretos, quando da morte do Manolete. Atravessava muitas vezes a fronteira, e agora mesmo viera das isidradas em Madrid. Mas partilhava, eventualmente, a mesa com um ou outro elemento mais destacado entre a fauna do ringue. Pôs um pouco de pó de simpatia no seu modo sobranceiro, e para não ir directamente ao objecto do seu interesse, abordou-o com simulada curiosidade: “Então, pá, quando é que te bates aí com o Barrigana ou com o Rebordão?”.
Nem um nem outro. Via-se logo que era leigo. Um era lutador de pesados, o outro boxeur. Ele, Filipe, era campeão de luta livre (leves) no Atlético de Campo de Ourique. No mesmo ringue, só em combates mistos.
Mais uma vez a carta foi exibida, com todos os cuidados – que já era necessário juntar quadradinhos para colher sentido – dando assim não só resposta no que ao paradeiro da Pòlita concernia, mas também (e nisso punha o Filipe o seu brio) ao seu projecto de abertura de “una casa de malas”, onde estava previsto que viesse ele a ser o gerente.
– Ora vai-te foder – disparou-lhe o ganadeiro numa risada – Mas issso é uma casa de putas – acrescentou, sem rebuço.
O Filipe ficou como que tolhido, dedos engadanhados, a tentar juntar os fragmentos de papel, sem cuidar de os ordenar ou justapor.
– É isso, rapaz. Casa de malas é o mesmo que dizeres aqui casa de putas. Chegas a Madrid ou a Sevilha, queres desenferrujar o prego? Casa de malas. Malas mujeres ou mujercillas, que quer dizer más mulheres ou mulherancas, assim mais ou menos, que eu não sou professor, – concluiu o “bon vivant” com o olhar pleno de humor.

Era muita sorte para um homem, não houvesse dúvida. Gerente de uma casa de malas – mas de malas a sério – e ter o ensejo, ao mesmo tempo, de firmar os seus créditos de campeão nos ringues de Madrid, Barcelona, sabia-se lá…
Não deu à Libânia senão os restos da carta esfrangalhada, que a fria revelação guardou-a ele com a frieza e o distanciamento com que a partir dessa noite passou a tratá-la. Ela entendia resignadamente essa frieza e o seu interesse extemporâneo pela retomada dos treinos em Campo de Ourique, assim como as ausências do ninho da Rua do Carreão, como consequência da preparação intensiva para uma série de combates – agora uma série mesmo a sério no dizer do empresário de Algés, “que até se deslocara expressamente a Marrocos” (o que seria de ponderar se a carreira do eléctrico não terminasse na Cruz Quebrada). As noites fora – desculpava-se – traduziam as horas tardias a que os treinos acabavam; que tinha que recolher a casa dos pais, pois a essa hora já não havia eléctricos.
Se, quanto aos treinos, a versão estava falseada, já o não estava tanto no recolher a casa dos pais, onde reocupara o divã deixado no acto da sua independência, com o compromisso, perante o pai, de retomar o torno na Bobinagem Sepeda & Sobrinho, no caso de se não concretizar um certo contrato para combates lá fora, onde o empresário lhe garantia dinheiro grande.
Nos “mentideros” – do “Lisboa” ao “Paladium”, passando pelos apeadeiros da Avenida – nada soou sobre dinheiro grande ou pequeno; e do Filipe, tal como de alguns outros esperançosos campeões, apenas se foi registando o afastamento.

Com relação ao Parque, onde tudo foi morrendo, deixei de estabelecer uma cronologia coerente. Do turbilhão de imagens que a memória armazenou, uma ficou na retina, com sabor a epitáfio, pois ditaria a última notícia sobre o Filipe que, provavelmente, retomara posição no torno da bobinagem. É o cartaz – o único em que vi o seu nome – colado numa placa de contraplacado, à entrada, junto à bilheteira do lado direito.

HOJE, NO PAVILHÃO PORTUGUÊS
Combate misto
BARRIGANA CONTRA MIJAHKA, A FERA MARROQUINA
DOM PIPAS, O ÍDOLO DOS VIMARENENSES, CONTRA SALCEDO,O SANGUINÁRIO DE CADIZ
E A DISPUTA RENHIDA ENTRE OS AMADORES
FILIPE RENDEIRO, O POUPINHA, ATLÉTICO DE CAMPO DE OURIQUE,
C O N T R A
BERNARDO SARDÃO, A ÁGUIA DO POÇO DO BISPO

Quanto à Libânia, em cada passo deste seu aparece/desaparece, sinto que se me reavivam as imagens, numa espécie de descongelação de um espaço onírico. Mas, por muito que arda de curiosidade, não ousaria questioná-la sobre a casa de malas.
Deixá-la, na sua cátedra.

Armando Borges

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