Os Anjos Gordos

Os Anjos Gordos

José Mourão, pseudónimo de um funcionário público, actualmente “na casa dos cinquenta anos”. Deste mesmo autor publicámos no nº 5 da Ficções um outro conto, O velho, o cão e as cabras, que foi também a sua estreia literária. Os anjos gordos confirmam as qualidades que aí revelava.
“Os Anjos Gordos”

Estava eu metido dentro do meu caramanchão de pedras velhas e arbustos aromáticos quando os meus três velhos criados, mais amigos de juventude do que outra coisa, me anunciaram, estendendo-me uma carta: «Das abadessas!» Eram três, já do tempo do avozinho, velhos e decrépitos, alvares e patéticos, risonhos, desdentados e proféticos. Falavam em coro, tal a osmose das suas almas simples. Eu vivia como no campo, às portas de uma cidade média, paredes meias com o convento dito «das abadessas» e, embora morasse a dez minutos do hipermercado e a cinco das bombas, era como se chafurdasse em pleno século dezanove; os meus criados, que eram tanto de mim como eu era deles, ainda me tratavam por: «nosso amo». Não havia cavalos, nem touros, nem aqueles lenços de seda à fadista no pescoço, nem o fado de câmara tremidinho, o nosso era o mais terrível e verdadeiro triste fado. Estava no meu caramanchão cagado das pombas, sempre com medo de que o meu pobre coração me traísse, o maldito, por isso me precavia com o telemóvel ao lado, oferta da junta de freguesia, era só carregar numa tecla e logo me falava o meu amigo de juventude doutor Saraiva, o médico dos velhos. O meu velho coração medroso mas nada ansioso, peinard em francês, como que jazia já: o antibiótico de um médico jovem podia matá-lo de vez inadvertidamente.

Visitou-me um europeu rosado e nutrido, rapaz de uns sessenta anos, grande, respeitosíssimo, um funcionário, sim, simpático, comeu as sardinhas rechinantes à mão em cima da broa, emborcou três pichéis de carrascão, por onde também beberam os meus criados, sem nojo. Os meus criados tinham anunciado em coro: «Um inglês!» – para eles, tudo o que não fosse sarraceno era inglês. O homem, obviamente, era holandês e cumpria ordens. Nunca me perdoaram o meu passado anarquista: é vê-los, a esses europeus rosados, com a sua arrogância quase americana, a verificarem-me assiduamente. Com o holandês chegara também um advogado europeu, mas português, que só sabia dizer: «Pois justamente!» e comeu graciosamente as sardinhas e bebeu meio copinho pelo copo. Eu não bebo.

Pensam eles, por causa dos meus criados e do meu solar (solar!, este casarão triste, onde pinga água mesmo nos dias de sol de todos os tectos menos no do meu quarto, porque a junta fez lá obras, mais para perservar a biblioteca do que a mim, e por onde tenho medo de me passear embrulhado num cobertor de incêndio), pensam eles, repito, que eu sou um velho fidalgo arruinado (mas com dinheiros secretos) e mal eles sabem que o meu coração nada ansioso anseia no entanto por uma morte súbita – oh, gostava de me ficar como um passarinho! Mal eles sabem que me mantenho do caldo gorduroso da Micas Velha, péssimo para o colesterol, e que o doutor Saraiva (dos Saraivas de Rebordães), que no seu tempo galgou a cavalo o ribeiro feroz da enxurrada que levara de arrasto a ponte, que o doutor Saraiva, repito, não me leva nada porque sabe que eu não teria dinheiro para lhe pagar. Nesta minha confissão, amigo, não entra ninguém que não fiques a conhecer, com excepção do doutor Ferraz, e não porque foi expulso da Ordem. Falei na Micas Velha, pois tenho de a descrever, até porque, com ela, eu tenho monólogos dos mais sinceros. A Micas Velha é uma pata-choca gorda, muito vagarosa, surda como um portão (bem posso falar com ela! Responde-me com uns «o quêêê?» brutais, como se eu estivesse a esfolá-la de insultos), pois a Micas Velha é gorda e, com o seu andar bamboleado de pata e a simpática barbichela de velha, é a minha cozinheira e, como tal, também sabe a sua palavrinha de francês. A minha cozinheira monolítica. E como, para haver uma Micas Velha, tem de haver necessariamente uma Micas Nova, direi que esta última é filha da primeira e é uma senhora quinquagenária e esbelta que ainda trabalha na secretaria da junta de freguesia e dela não é questão nesta minha confissão. Só uma coisa: se Micas Nova, ou Marquinhas, é uma megera menopáusica e burocrática que faz os pobres fregueses suarem por um atestado (mas ainda lhe cobiço o olhar funcionário, a perna alta), Micas Velha é uma nossa-senhora-de-fátima no seu género. Portanto, mal eles sabem que as minhas noites de sono são curtas e de martírio e os meus dias são longos e de abandono. Que ainda ando a pagar o carro onde já ninguém anda nem pode andar porque está tão aleijado como eu. Ah, meu amigo, não se pode dizer que tenha um frigorífico cheio! Que pode ter de fidalgo um pobre velho? Até porque já ninguém liga a isso: para haver fidalgos tem de haver povo e já não há povo, há uns sarracenos de lume aceso no olho voraz de dinheiro, enfim, que adoram dinheiro e odeiam com indiferença (garanto que é possível odiar com indiferença) tudo o resto. Também já não há clero. As igrejas? Vazias. O convento? O que é um convento? Uma coisa que, sem ser ainda antiga, já não é moderna, como o comunismo, mas adiante, porque uma coisa é a Igreja e outra coisa é Deus. Digam-te de mim o que disserem, amigo, não acredites; se ainda vais cá ficar três dias na Pousada, aliás caríssima, ouvirás muita coisa de mim: que tudo à minha volta morre, que até os cães me morrem novos, só não morro eu e os meus três velhos criados, criaturas do demónio; dir-te-ão que só me resta uma neta viva, a Cláudia, viva porque está longe, «Cláudia amo-te bués» – era a mensagem lacónica do namorado preto dela que eu interceptei. Subscrevo. Que tenho noventa anos, amigo! Como podes acreditar? Que as autoridades não gostem de mim, é natural. Que a junta de freguesia me tenha dado o telemóvel e arranjado o telhado do quarto só para me calar, é natural. Já não é natural proibirem-me de rondar, como eles dizem, a escola. Que o padre não goste de mim, é natural. Fica sabendo, amigo, que uma coisa é a Igreja e outra é Deus e que o meu passado anarquista tinha, entre outras bandeiras, esta: descobrir Deus, ressuscitá-lo das igrejas e dos provérbios populares.

É o meu passado anarquista a falar, dirás, porque ainda ninguém se esqueceu, entre os mais velhos, dos dias gloriosos da minha detenção e subsequente prisão. E o que tem isso a ver com as minhas pesquisas actuais em poética oitocentista? E quem são essas senhoras, a dona Teresa Almeida e a dona Teresa Almada? Já vais ver. A minha única glória actual é esta visita trimestral dos europeus. Entram, servem-se, se está tudo bem deixam-me o cheque (bem parco, bem parco!). Eu podia esmifrá-los, conheço meia dúzia de emigrantes portugueses que tiveram contactos directos, e sabe Deus que mais, com verdadeiros sérvios da Sérvia… Até disse ao doutor Saraiva: «Raios me partam se não saco um milhão de dólares aos gajos, Saraiva!», e o meu grande amigo Saraiva (meu único amigo, não desses do dominó babado), rodeado de família, capote quentinho, o chocolate a tempos e horas, os lava-pés, um homem feliz, na sua profundidade de homem do século vinte e um, que não chafurda como eu no século dezanove, um intelectual com i grande que tudo o que diz tem peso, mas é amigo, respondeu-me: «Deixa lá». Por que me vigiam eles, os europeus, por que me pagam alguma coisinha por, supostamente, eu esgaravatar uns poemas do século dezanove e produzir outros, modestamente, da minha lavra, mais abstractos ainda do que a poesia portuguesa de finais do século vinte e princípios do vinte e um, alguns deles, valha-me Deus, que «nem para atacadores»? Mas não nos podemos alongar muito pela poesia, que também já tem o seu Dia, porque o nosso tempo é escasso. Por que me pagam eles (mal) e me tratam de maître como a um notário francês? Só para vasculharem os meus papéis e o meu correio electrónico (oferta dos europeus, pois claro, deram-me o computador já armadilhado e vigiado). Eu podia não só enganá-los como esmifrá-los, meter no meio da conversa frases enigmáticas que lhes dariam que pensar, porque a arte é incomensurável. Eu podia, figuradamente, encher o meu frigorífico, podia até ter um escravo e uma escrava ucranianos – podia, mas sou coerente.

Como poeta provecto e secreto não sou muito dilecto das musas, confesso. Justifica-se aqui um salto no tempo, ao meu passado anarquista e conventual. Este nosso mosteiro, ou convento, é um dos seis ainda vivos da península e praticamente só tem velhas e, as novas que tem, são maluquinhas. Mas, dantes, não só doçarias conventuais – agora convenientemente industrializadas – se faziam ali: não, fazia-se ali muita poesia, da melhor, e muito amor, confesso, e eu e sóror Teresa Almeida de Almada andámos perdidos de amores, confesso, tendo começado tudo (há quantos anos!) por uma violação anarquista das regras monásticas que eu quis fazer saltando os muros, não vale a pena entrar em pormenores. Saiu-me o tiro pela culatra, digamos, porque fiquei preso de amor e poesia e convertido a Deus e, melhor ainda, à santa madre igreja. Quando os meus criados anunciaram: «Das abadessas!» (e com que alegria pateta o anunciaram, como sempre!), era de poesia que se tratava. Desta vez, no papel perfumado vinha: Teresa Almeida, Teresa Almada, Teresa Almeida, a alma meiga, Teresa Almada desalmada. Teresa Almeida, olhos de rola e doçura à feição, Teresa Almada uma pantera com olhos de gavião. Etc., etc., etc.

Portanto, estes versos autocríticos de cariz popular foram escritos por uma única e mesma pessoa e descrevem uma única e mesma pessoa: a minha única amiga e meu velho amor Maria Teresa Almeida de Almada, uma duas-em-uma abrangente, Teresa Almeida, a boa e meiga, Teresa Almada, a exaltada, estás a ver, são uma e a mesma pessoa, a duplicidade da alma na sua forma mais lírica. Confesso, toda a minha poesia veio do convento em carta perfumada (qual século dezanove!), apropriei-me do génio das abadessas, confesso, sou um plagiador. Também não sou nobre, isso já não existe, e como viste nunca fui anarquista. Tudo mentira: a fidalguia, a poesia, o anarquismo romântico – sou um pobre velho. Confesso. E se os europeus (pagos pelos americanos) andam a tentar descobrir mensagens ocultas nos «meus» pobres versos, é lá com eles…

Agora, calma, os meus três criados anunciam-me que chega Micas, a velha, que me dá sempre o mesmo caldo por falta de imaginação e não porque tenha mau íntimo. «Micas, bom dia, serve também a criadagem», mando-lhe eu. Devo dizer, amigo, que os três criados não são fruto da minha imaginação, excepto um, e pode dizer-se que dou uma sopa quotidiana, simples e gordurosa, mas de todo o coração, a estes dois vagabundos desdentados que me fazem muita companhia. «Micas, minha patinha choca, a tua filha é uma cabra, nem para mim olha, a rainha da junta! O doutor Saraiva bom homem? Isso dizes tu. É um ser apaparicado e medroso, um homem do regime, um legionário, ficas a saber, não aceito a caridade dele, pago-lhe as consultas. O meu coração, Micas, está preso às nuvens por um fio de cabelo… Lembras-te da minha terceira mulher, da que morreu na Áustria, golfava-lhe o sangue da boca, tísica, a neve vermelha, alguma vez viste? Tomara ainda que chova, que chova sobre a neve o teu cabelo, em tromba de água escura sobre a neve, adoro ainda quando não te saem do peito borbotões de sangue, apenas desmaiaste, que chova sobre a neve o teu cabelo…» Agora, meu coração, calma, o maqueiro-bombeiro-enfermeiro vem medir-me a tensão. Amigo, a quem humildemente me confesso: este homem, um comunista dos quatro costados, é o meu anjo-da-guarda, basta acenar-lhe, vem a correr. «Então, visconde, hoje não tem cá os cias?», saúda-me o bombeiro. E eu: «Tenho uma novidade para ti, grande bombeiro, que és filho de uma beata: sabias que a Nossa Senhora de Fátima era uma actriz loira inglesa paga a peso de oiro para aparecer em cima da azinheira? E que depois mataram os dois pastorinhos e deixaram a maluquinha com os segredos?» E ele: «Há muita injustiça neste mundo. Então até terça-feira». Eu e os meus criados, com os seus risos alvares, estamos sentados à mesa tosca e comprida de madeira sem toalha (não há toalha) e a Micas é uma pessoa larga que está de costas para mim atarefada no seu fogão de três bicos e levanta para o lado o trambolho da perna direita e faz um som com os beiços como quem se peida para mim. «Micas», digo-lhe eu, «sou do tempo em que ainda se fervia o leite e se deixava levantar fervura três vezes, obrigatoriamente, e quero que saibas uma coisa: o respeito é um dos pilares em que assenta o mundo. Eu tenho muito respeito pelos conventos do século dezanove, digo-te desde já, porque ainda não estavam contaminados por Fátima, e não tenho respeito nenhum pelos conventos do século vinte e vinte e um porque estão contaminados por Fátima. Minha amiga Maria Arminda do Córrego Balsemão, o teu nome completo é música para os meus ouvidos, concedo-te que não tenhas respeito por mim. Eu não tenho dinheiro, não tenho respeito, não tenho poder, posso dizer o que me apetece. Pois a minha segunda mulher, ouviste ó Micas, possuía um coração muito inquieto e invejoso, e digo-te já que não vou falar da minha primeira mulher, a menina dos teus olhos. Que era perfeita, dizias tu, que os olhos lhe ficavam bem. Nem compreendo por que se criou aquele ambiente tão bonito à volta dela, da minha segunda mulher, à volta do seu imenso leito de morte, toda a gente a falar em sussurro, parecia que também a natureza se tinha conluiado: entardecia, o ar abafado de uma prestes trovoada primaveril, também era a quaresma, um tempo de paixão, as tias eram devotas, as priminhas espanholas graves mas langorosas, essas coisas. Micas, por que me morrem as mulheres? E depois, sabes, o mundo é uma grande desilusão. Cada vez que carrego num botão electrónico estou sempre à espera que aconteça alguma coisa, mas a nós dois já não acontece nada. Somos velhos, pois, mas o Mário Soares também é velho e não lhe falta nada. Micas, por mais respeito que tenhas pelo mundo, morres na mesma, mas com essa diabetes és capaz de te ficar como um passarinho, só não percebo como é que ainda gostas das pessoas, enfim, aconselho-te só uma coisa: não queiras nenhum poder. A criadagem ri, Micas, grandes bestas. Tens de meter nessa cabecinha gorda que o poder silencia o que não compreende. Julgas que eu não sei que os europeus me estão a levar a biblioteca aos bocadinhos? A tua filha Marquinhas bem sei que é uma cabra que nem te quer lá em casa, mas diz-lhe que, a ela, eu dava a biblioteca toda, a única coisa que me resta. Sabes muito bem que eu, como anarquista romântico, não confundo felicidade com tranquilidade, mas dava-lhe a biblioteca. Disse-me a Marquinhas que eu vivo aqui por caridade, que isto já não é meu: então quem é que defendia isto dos drogados e dos ciganos se não fosse eu e os criados armados? Micas, vais-te embora?»

Tudo começou porque eu me correspondo (agora pela via da internet, e foi aqui que eles me apanharam), porque eu me correspondia, aliás, com outros oitocentistas e não só, entre eles Simon Weidenfeld, Professor of Ancient Languages at the University of California, Berkeley (não escondo nada), e então, bastante tempo antes do fatídico onze de Setembro eu tinha mandado para ele, como fazia todas as Primaveras, uns poemas enigmáticos, entre eles o famigerado «Torres de Marfim», que se fosse um inédito do Pessoa já tinha sido publicado, analisado e traduzido em todas as línguas europeias, e o pilantra do Simon lembrou-se dele depois do fatídico onze de Setembro e, apesar de estar com os pés para a cova, denunciou-me…

Esta é uma crónica e já se justifica um parêntesis do cronista, não para pôr cobro ao delírio persecutório do herói, porque nem o autor tem poderes para travar a marcha implacável da mente humana rumo ao delírio, mas para dar alguns factos que esclareçam um pouco as coisas. Com a fotocópia da certidão de nascimento do homem na mão, posso confirmar que o nosso velho se chama António Fães de Pimentel, natural de Alcácer do Sal. É efectivamente o décimo terceiro visconde de Fães e Montijo – leia-se à espanhola –, embora a família se tenha dispersado por aí e não tenha explorado este filão nobiliárquico para ganhar a vida. Vi nele um idoso carenciado, afectiva e materialmente, como muitos outros, nobres ou não, desinserido de qualquer agregado familiar ou instituição social de apoio ou afim, um homem culto, talvez mais castiço do que outros: embrulhava-se num cobertor para percorrer os seus domínios e, embiocando a cabeça no cobertor como as velhas antigas, espreitava de lá com aquele seu olhar maroto de olho muito azul e viam-se-lhe aquelas suas sobrancelhas brancas muito hirsutas e despontava de lá um nariz comprido verdadeiramente aristocrático, um homem muito magro e rijo que não usava barbas, como outrora, porque a barba lhe caíra com naturalidade e nunca mais renascera. Tinha era um queixo voluntarioso e andava sempre curvado e dava uma espécie de saltinhos fingidos ao andar. Pela certidão de nascimento tinha apenas setenta e nove anos, e isto é importante, não só para dissipar os boatos de que teria noventa e pacto com o demónio, mas para lembrar que o velho de que falaram os telejornais, e que durante vinte anos rondou as escolas e foi preso com os bolsos cheios de rebuçados, tinha apenas setenta e dois. Mais declaro que o doutor Saraiva, médico, homem positivo, indagado sobre as eventuais acusações de bruxaria feitas ao visconde Pimentel, respondeu: «Não ligue.» Quanto ao poema «das abadessas», que tive a oportunidade de ler na íntegra, não comento. Uma coisa é certa: nenhuma mulher poderia escrever aquele poema, nunca uma abadessa. Aquilo é escrita masculina pura, a visão de um homem sobre uma mulher e, se não foi o visconde quem o escreveu – acredito que não, já que ele o afirma –, foi algum dos criados. Mais declaro que defenderei com unhas e dentes o meu herói, faça ele o que fizer, diga ele o que disser, porque é um pobre velho desvalido e, quiçá, perseguido e, se diz o que diz, é porque cada qual, inclusive o leitor, fala do que mais lhe dói. Deixemos pois que ele próprio nos conte como vai decorrendo o seu triste fim de vida.

No princípio desta minha confissão, amigo, se bem te lembras, apresentei os meus três criados desdentados e decrépitos e, por assim dizer, proféticos, uma vez que me anunciavam sempre a boa nova, a entregarem-me numa bandeja a carta perfumada das abadessas e a dizerem em uníssono, e com que alegria!, com as cabeças levantadas como os cães, porque eu sou alto: «Das abadessas!» E que ritmo naquilo, que música! Escutai: das-aba-de-ssas! Quem for mais perspicaz terá também notado que eu me refugio muito no século dezanove por miséria e falta de futuro, mesmo sonhado, que vivo muito malzinho, que inventei isso do carro na garagem, que não tenho um solar mas ocupo um pardieiro gigante por caridade, que não sou poeta, que toda a minha família me abandonou, que o Saraiva pratica comigo a caridade e não é meu amigo, que quando o maqueiro diz que há muita injustiça neste mundo é nele que está a pensar e acha que também já tinha direito a um dos meus alfarrábios velhos, como ele diz, que já não tenho forças para ser anarquista, que a velhice é uma coisa muito triste e que, se me vigiam os europeus (a mandado dos americanos), é porque têm uma alma alemã de polícias broncos. Espero com ansiedade pela visita do meu filho ministro e da minha neta Cláudia, os únicos seres que no fundo amo na vida, porque nas minhas noites de sonos cada vez mais curtos, com o meu coração tem-te-não-pares, eu sonho com anjos holandeses vestidos de branco, rosados e gordos, a esvoaçarem por cima do meu caramanchão, sorridentes e simpáticos, depois começam a entrar dentro do sonho umas capas negras (o sonho a transformar-se em pesadelo), umas capas negras que piam como corujas: «pois justamente, pois justamente!», sem rosto, e querem agarrar-me e os anjos brancos ajudam-nas, e querem que eu me veja estendido com a boca torta no chão do meu caramanchão cagado das pombas, a boca torcida de aflição, e eu vejo-me assim morto e horrendo, e o meu coração, tem-te-não-pares, dá um sacão e acordo sobressaltado. É este o meu sonho recorrente, como dirá qualquer mau freudiano. Vou morrer em breve e perdoo a toda a gente, neste mundo e no outro, inclusive ao doutor Savimbi e ao doutor Simon Weidenfeld, esteja ele onde estiver. Um dia descobrir-me-á um dos meus criados e chamará o doutor Saraiva. E o doutor Saraiva olhará para mim com nojo (sei que ele sempre me teve alguma repugnância física e até moral), olhará para mim estendido de verdade no chão todo cagado das pombas do meu caramanchão, a boca torcida e os olhos abertos, num esgar de agonia aflita, prova de que eu não caminhei de livre vontade para a morte mas me arrastaram os anjos gordos (não, não vou ter a felicidade de me ficar como um passarinho).

José Mourão (pseudónimo).

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