Bolsa Família distribuiu renda, mas não reduziu abismo social, diz economista

A política social inaugurada com o Bolsa Família garantiu que brasileiros há gerações à margem do mercado de consumo adquirissem a primeira televisão, a primeira geladeira. Ela falhou, contudo, em promover o acesso universal a direitos básicos previstos na Constituição – educação, saúde, saneamento – e em equalizar oportunidades, que ainda são muito menores para as famílias mais pobres.

Com o sucateamento dos serviços públicos, ressalta a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lena Lavinas, cresce o “abismo social” que divide as classes populares e médias – os padrões quase opostos de qualidade de vida que separam quem tem dinheiro para pagar por serviços que deveriam ser prestados pelo Estado de quem não tem.

Pesquisadora do impacto de políticas públicas e sociais, a economista discute esses temas no recém-lançado The Takeover of Social Policy by Financialization – The Brazilian Paradox (A Tomada da Política Social pela Financeirização – o Paradoxo Brasileiro, em tradução livre). Publicada nos Estados Unidos pela editora Palgrave Macmillan, a obra chega ao Brasil em 2018 pela editora Todavia.

Lavinas é graduada pela universidade francesa Sorbonne e fez mestrado e doutorado na mesma instituição. Foi professora visitante da Universidade de Princeton e da Universidade da Califórnia (UCLA). Até o início do ano, estava na Alemanha fazendo pesquisa na Wissenschaftskolleg zu Berlin (Wiko), o Instituto para Estudos Avançados de Berlim.

Veja os principais trechos da entrevista concedida à BBC Brasil.

BBC Brasil – Uma de suas críticas à política social brasileira é que ela se fixa na redução da pobreza, deixando para segundo plano a proteção social. Como se dá essa distinção?

Lena Lavinas – A gente tem que entender o que é política social. A finalidade da política social é romper o vínculo entre ter acesso a educação, saúde, do fato de alguém ter renda para pagar por esses serviços. É de “desmercantilizar” o acesso a determinados bens e serviços que são considerados direitos, tal como estipulado na Constituição de 88.

O que a política social no Brasil fez nos últimos anos foi fortalecer a dimensão das transferências de renda. Isso teve um impacto muito grande, muito positivo, na redução da pobreza, porque toda vez que eu transfiro algum tipo de renda mínima para as famílias mais pobres, eu estou reduzindo o grau de destituição dessas famílias.

Mas se ao mesmo tempo eu não estou garantindo que essas pessoas tenham acesso a saúde, a saneamento básico, eu não estou realmente ampliando o grau de cobertura da proteção social.

O que eu estou fazendo ao dar dinheiro para as famílias é incorporando-as ao mercado. Na medida em que elas entram no mercado, se eu não estou oferecendo serviços de saúde, atendendo às suas necessidades de acesso a saneamento, segurança, o que vai acontecer? As pessoas vão ter que usar essa renda que recebem para financiar determinados bens e serviços que elas deveriam estar recebendo gratuitamente.

Ora, como não é possível atender a todas as necessidades com tão pouca renda, as pessoas vão acabar tendo que se endividar para cobrir outras necessidades.

BBC Brasil – É nesse sentido que o Bolsa Família seria uma “inovação incompleta”, como a senhora definiu?

Lavinas – A Constituição de 88 havia criado, pela primeira vez, com o BPC (Benefício de Prestação Continuada), uma política para reduzir o grau de destituição da população pobre brasileira. Ocorre que ele, desde o seu início, tinha como público alvo apenas os idosos pobres com mais de 65 anos ou os portadores de deficiência. Mas a pobreza é muito mais ampla.

O Bolsa Família, quando surge, em 2003, supre uma lacuna gravíssima, porque, pelo desenho da política assistencial na Constituição, a maior parcela dos pobres não era atendida. Foi uma inovação institucional muito importante, que infelizmente jamais se tornou lei de fato.

O problema do Bolsa Família é que ele funciona com linhas de pobreza muita baixas. Hoje o benefício médio pra uma família de quatro pessoas é de R$ 182, muito pouco. E justamente em um momento de recessão como o que vivemos agora a cobertura deveria ser expandida, porque o número de pobres aumenta.

O que a gente está vendo é que a finalidade precípua do Bolsa Família não está sendo atendida. Ele está funcionando como uma política cíclica, ou seja, ele se amplia à medida em que há crescimento econômico e tende a estabilizar nos momentos de descenso do ciclo econômico – e não contracíclica.

O segundo ponto importante é que a maior parte do gasto com assistência no Brasil foca essencialmente nas transferências de renda, que correspondem mais ou menos a 68% de toda a despesa social, enquanto que a provisão “desmercantilizada” de serviços é uma parcela equivalente a um terço do gasto social.

A pobreza não se resume à falta de renda. Ela tem outras dimensões, como moradia, como ter uma cobertura de serviços para a população idosa, para as crianças, uma série de outros serviços que poderiam mais rapidamente reduzir a distância que separa a qualidade de vida e as oportunidades dos muitos pobres dos outros.

Isso não aconteceu. A gente fez uma política de combate à pobreza no Brasil na década de 2000 essencialmente voltada para a incorporação dos pobres ao mercado.

BBC Brasil – Se o ideal seria aumentar o nível de proteção social, como fazer isso em um Estado que tem cada vez mais dificuldade para pagar as contas?

Lavinas – Isso é uma questão ideológica. Nós temos um governo que diz que está ali para reduzir o deficit público. Só que o deficit, que era muito pequeno, está em R$ 159 bilhões e vai se estender até 2022.

O que a gente está inferindo? Que essa política de austeridade não está contribuindo para a retomada do crescimento econômico. O problema da dívida pública, que não pode ter dívida pública, levou a uma transferência daquilo que antes era responsabilidade do Estado à esfera individual.

Isso é uma ideologia, se a gente olhar exclusivamente para o caso brasileiro, a gente vai ver que a política de austeridade só está nos levando a ir mais e mais para o fundo do poço.

Se não há consumo, se o salário das pessoas foi cortado e a taxa de desemprego é extremamente elevada, se eu não estou elevando as transferências monetárias para sustentar a demanda, se eu estou cortando benefícios previdenciários, fica muito difícil a gente sair da crise.

Nós estamos em uma lógica de austeridade que reduz justamente a participação da população no mercado de trabalho, que corta benefícios. Tudo isso leva a uma redução do crescimento, o desempenho econômico fica inibido e, em função disso, agravam-se mais ainda as condições de financiamento (da proteção social), porque a arrecadação cai.

BBC Brasil – O livro chama atenção para o paradoxo da política social implementada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Qual seria ele?

Lavinas – O que a gente viu na gestão do PT – e eu posso falar isso tranquila, porque sempre fui petista, e essa é uma crítica contundente – foi que houve uma retração da esfera pública. E esse é o paradoxo.

Primeiro a gente teve ambiguidade, a expansão de alguns direitos e, ao mesmo tempo, a mercantilização de outros, porque as coisas avançaram no front da privatização, das despesas crescentes para as famílias.

Do outro lado, o paradoxo é que quem definiu esse modelo de desenvolvimento foi justamente o partido que deveria estar preocupado em ampliar a esfera pública, e não foi isso o que aconteceu.

BBC Brasil – Por que é importante ter esfera pública?

Lavinas – Na primeira eleição do presidente Lula, também na segunda, ele teve grande apoio da classe média. Não foram só os setores populares que elegeram o presidente Lula. Mas a coisa foi virando.

Por que nós tivemos 2013, o movimento nas ruas? Aquilo foi a classe média na rua dizendo: “Nós queremos serviços públicos. A gente quer transporte mais barato. A gente não quer passar cinco horas em um ônibus de má qualidade”. Foi isso que as pessoas disseram: “Nós queremos mais esfera pública”.

Por quê? Veja, se a gente olhar entre 2004 e 2014, enquanto o salário médio cresceu 1,9% ao ano, os custos com serviços de saúde privados cresceram, em termos reais, 8%, as despesas com educação, 7,7%. A renda estava subindo, mas a classe média passou a ter cada vez mais dificuldade de fazer frente às suas necessidades.

Houve uma ruptura do apoio desses amplos setores chamados de classe média com um governo que poderia ter contribuído, com a ampliação da esfera pública e da oferta de serviços públicos, para aproximar isso que é o grande abismo social que temos: as classes populares e as classes médias. Porque de fato são padrões, em termos de acessibilidade e de qualidade de vida, muito diferentes.

Se a gente pusesse todas as crianças na escola pública, se déssemos oportunidade para todo mundo se tratar gratuitamente em clínicas públicas no seu bairro, por exemplo, estaríamos criando um espaço de aproximação entre classes sociais, reduzindo esse abismo no qual vivemos. O que a gente vê é que esse abismo aumentou.

O ponto mais falho no que foi a gestão do Partido dos Trabalhadores, sem dúvida nenhuma, foi ter reduzido a esfera pública e, portanto, tolhido os direitos, impedindo que a gente de fato caminhasse para ter uma sociedade mais homogênea. Porque a redução da desigualdade de renda não contribuiu pra que a gente tivesse uma sociedade mais homogênea em termos de oportunidades.

O que universalizou foi o mercado: todo mundo tem televisão, todo mundo tem geladeira. Isso também é importante, mas não é suficiente. Quando as pessoas foram para a rua, elas não foram pedir geladeira nem televisão de tela plana. Elas foram pedir transporte, saúde e educação.

Fonte:BBC Brasil

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