O ano da crise dos refugiados na Europa foi 2015, quando mais de um milhão de pessoas chegaram ao continente pelo mar. Em 2016, este número caiu drasticamente para pouco mais de 400 mil – mas, ao mesmo tempo, uma quantidade recorde de pessoas morreu tentando cruzar o mar Mediterrâneo.
Em 2015, 3.735 pessoas morreram afogadas ou desapareceram no mar. Este ano, o número saltou para 4.913, segundo registros feitos até 20 de dezembro pela Organização Internacional para as Migrações (OIM).
Isso representa uma média de 14 mortes por dia, calcula a organização.
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“A situação está pior, não vimos nada parecido”, disse William Spindler, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
Mas como explicar que, embora as chegadas de refugiados pelo mar tenham diminuído, o número de pessoas que morreram afogadas ou desapareceram tenha aumentado?
Rota mais perigosa
Uma das razões se encontra ao longo das principais rotas migratórias que cruzam o Mar Mediterrâneo.
Em 2015, 84% dos refugiados conseguiram chegar à Europa. Mais de 850 mil pessoas fizeram a viagem pela chamada rota oriental, que sai da Turquia e atravessa o Mar Egeu até chegar às ilhas gregas.
Este ano, o número de pessoas que chegaram por esta mesma rota caiu para 180 mil.
No mesmo período, houve um aumento do fluxo na chamada rota central, que parte da Líbia e chega à Itália.
Guarda costeira italiana
“As chegadas na Grécia foram contidas em grande parte como consequência do acordo firmado entre Turquia e União Europeia”, afirmou Federico Fossi, porta-voz do Acnur na Itália.
Segundo o acordo, que entrou em vigor no dia 20 de março de 2016, os imigrantes que chegam à Grécia são devolvidos para a Turquia se não solicitarem asilo ou se o pedido for rejeitado.
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“De modo geral, vimos uma redução bastante drástica no número de chegadas”, explicou Fossi à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
“No entanto, se observarmos o caso da Itália, na rota central do Mediterrâneo, este é um ano de recorde:
chegaram cerca 179 mil pessoas. No ano passado, foram 150 mil e, em 2014, 170 mil”, continuou.
“A rota central é mais perigosa em comparação com a do leste do Mediterrâneo.”
A distância entre a Turquia e as ilhas gregas que mais receberam refugiados em 2015, como Kos ou Lesbos, é de 5 a 10 quilômetros.
Já para sair da Líbia e alcançar Lampedusa, a ilha italiana mais próxima, é preciso percorrer 280 quilômetros.
A probabilidade é de que um em cada 47 migrantes que fazem esse trajeto morra afogado.
Traficantes ‘implacáveis‘
“Os traficantes de pessoas são implacáveis e estão usando táticas muito piores que no passado. Eles colocam muita gente em barcos bem menores e também acreditamos que estejam conseguindo um número limitado de embarcações”, disse Joel Millman, porta-voz da OIM.
Em muitos casos, os traficantes utilizam simples lanchas infláveis, incapazes de aguentar toda a viagem.
“O momento mais perigoso normalmente é quando o barco de resgate se aproxima. As pessoas entram em pânico, querem ser resgatadas e acabam indo só para um lado da lancha, que vira e afunda. Elas caem no mar e muitas não conseguem nadar”, acrescenta Fossi.
“Estamos falando de grupos de 100 a 150 pessoas em botes infláveis e entre 400 e 700 pessoas em pequenos barcos de pesca de madeira. Basta o naufrágio de uma destas embarcações para que se tenha um grande número de mortes”, continua.
Em 2016, um em cada quatro migrantes que atravessaram o Mediterrâneo (26%) eram crianças, a maioria delas desacompanhadas. As mulheres representaram 17% e os homens 57%, de acordo com as duas agências das Nações Unidas.
Além disso, dependendo da rota que tomam para chegar ao Mediterrâneo, muitos ficam ainda mais vulneráveis à ação dos traficantes.
“São pessoas que atravessam o deserto, principalmente pelo Níger, e chegam à Líbia, onde encontram um ambiente que facilita a ação dos traficantes de pessoas”, explica Millman.
Enquanto a maior parte dos que chegaram à Grécia em 2015 e em 2016 foram sírios, afegãos e iraquianos, as principais nacionalidades dos que saem da Líbia para a Itália são nigeriana, eritreia e guineana.
“Os sírios são quase imediatamente vistos como refugiados. Muitos políticos e jornalistas costumam achar que as pessoas que vêm da África Subsaariana não são refugiados, mas migrantes econômicos.”
“Mas isso é incorreto, porque embora o número de migrantes econômicos seja menor, os direitos de proteção internacional são individuais. Ou seja, cada uma dessas pessoas tem o direito de pedir proteção internacional como refugiada”, diz Fossi.
Como reduzir as mortes?
Hoje, os trabalhos de resgate são coordenados pela Guarda Costeira da Itália.
Em novembro de 2014, a União Europeia lançou a Operação Triton, que sucedeu a Mare Nostrum, executada até então pelo governo italiano.
Além disso, a zona é patrulhada por barcos de resgate de várias organizações não governamentais.
“Levando em conta o número de pessoas que morrem e desaparecem no mar, não dá para dizer que (esses esforços) são suficientes. Se fossem, haveria menos vítimas. Mas sem os grandes esforços dos grupos de socorristas, haveria muitas mais”, avalia Fossi.
“Depois do naufrágio de 19 de abril de 2015 (quando morreram mais de 700 pessoas) a Operação Triton foi ampliada, ganhou mais barcos e deixou de ter como função exclusiva o controle de fronteiras”, acrescenta.
“Busca e resgate passaram a fazer parte da missão, e o raio de ação da operação foi aumentado para além das 30 milhas náuticas na costa líbia”, afirma.
O Acnur e as ONGs que participam dos trabalhos de salvamento defendem que, além das operações de resgate, sejam tomadas medidas legais para reduzir o risco das viagens.
“As medidas legais incluem melhorar as admissões por razões humanitárias, a reunião familiar e a expedição de vistos humanitários, civis e de trabalho para os refugiados”, esclarece Fossi.
“Falamos da possibilidade de uma pessoa chegar à Europa como refugiada, sem arriscar a vida nas mãos de traficantes. Estamos nos acostumando com as mortes dessa gente no mar. E isso é muito triste.”
Fonte: BBC Brasil