A produtora Beary está sentada no bar. Percebe que outra jovem se aproxima para puxar papo. “Amei sua camisa. Quantos anos você tem?”, a garota pergunta. “Vinte e dois”, Beary responde, num agudo bem feminino. A moça então dá uma desculpa qualquer e vai embora. “Isso acontece o tempo todo”, diverte-se Beary. “As pessoas acham que sou um cara por causa da minha aparência.”
Beary, que prefere não revelar o nome completo, nasceu e mora na Tailândia – líder mundial em cirurgias de troca de sexo e conhecida por aceitar e receber com naturalidade as transgêneros e as krathoeys, palavra local com significado próximo ao de “travesti”.
“Eu sou uma tom“, explica a produtora. Isso quer dizer que Beary se identifica com o gênero feminino, mas se veste e se comporta como homem.
A palavra vem do inglês “tomboy” (menina que gosta de atividades associadas a homens). As toms namoram as dees, abreviação de “ladies” (senhoritas, em inglês), meninas que fazem questão de manter o estilo “princesa” bem feminino: cabelos longos, roupas justas e unhas pintadas.
Cultura tailandesa
Autora de livro sobre o tema, intitulado Toms and Dees: Transgender Identity and Female Same-Sex Relationships in Thailand (“Toms e Dees: Identidade Transgênero e Relações Entre Mulheres na Tailândia”, em tradução livre), a pesquisadora Georgia Megan Sinnot explica que a aceitação das trans no país começou com mudanças na tradição do casamento.
Até a década de 1970, as mulheres se casavam muito jovens e o casamento era uma convenção. Como o sexo antes do matrimônio poderia arruinar a reputação da mulher, muitas passaram a explorar a sexualidade entre si. Mais tarde, com o crescimento econômico do país, começaram a trabalhar nas grandes cidades, alcançaram autonomia financeira e não precisaram mais se casar tão cedo – nem esconder a opção sexual ou de gênero.
Além disso, a percepção do relacionamento entre os tailandeses também contribuiu para melhor aceitação dos casais toms e dees.
Isso porque na cultura tailandesa um casal deve ser composto por uma figura masculina e uma feminina, e não importa que ambos sejam do mesmo sexo. Por outro lado, a relação entre duas toms ou duas dees pode ser considerada um desvio, inclusive dentro do próprio grupo.
Para a dee Masraphinath Ratkotchakornkirasiri, o fator essencial para que ela se apaixone pelas toms é a compreensão feminina. “Elas têm a sensibilidade para me entender como mulher, o que falta em um homem”, afirma.
Popularidade
A notoriedade das toms e dees levou ao nascimento, em 2007, da revista Tom Act, especializada no estilo de vida “tomboy”. A editora Nathnarath Ratchakodchakinasiri, de 53 anos, diz ter vivido na pele a revolução silenciosa promovida pelas lésbicas tailandesas e afirma querer hoje ajudar a nova geração.
“A revista é um guia para garotas que ainda não sabem como agir, para sentirem que não estão sozinhas”, afirma.
A existência da revista se deve também a uma demanda de mercado. A publicação busca um nicho formado pelas toms e dees, que hoje inclui lojas de roupas, programas de televisão, novelas e filmes.
Um dos marcos para esse público foi o lançamento do filme Yes or No, em 2011, que se tornou sucesso entre garotas lésbicas ao retratar uma história de amor entre uma tom e uma dee ‒ enredo próximo ao do filme brasileiro Hoje eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro, que trata de descobertas amorosas entre dois meninos adolescentes.
Com o fenômeno cada vez mais popular, celebridades também se sentem à vontade para assumir a sexualidade. A miss Tailândia 2006, Lalana Kongtoranin, trocou a coroa pelo boné no início de 2014 ‒ agora ela se veste como uma tom, ainda que diga não gostar de rótulos. Atualmente é seguida por quase 1 milhão de pessoas apenas no Instagram.
Preconceito
Apesar da aceitação, a Tailândia ainda registra casos de preconceito contra lésbicas.
Em 2012, uma garota de 14 anos denunciou o próprio pai à polícia por estuprá-la durante quatro anos seguidos. Ele não queria que a filha saísse com as amigas toms por temer que ela se tornasse homossexual. Em 2009, duas meninas foram encontradas mortas na cidade de Chiang Mai. O casal foi esfaqueado mais de 60 vezes por um homem que gostou de uma delas e sentiu repulsa pela relação homossexual.
Entre 2006 e 2012, 15 mulheres homossexuais foram assassinadas no país, de acordo com relatório feito pela Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC, na sigla em inglês). É difícil calcular o número exato de mortes depois dessa data porque a lei tailandesa não classifica os assassinatos como crimes de ódio. Eles são catalogados, na maioria, como passionais.
Além disso, direitos básicos, como o de alterar o nome nos documentos e a união civil entre casais do mesmo sexo, ainda são negados à população LGBT do país.
É nas escolas onde o bullying é mais frequente. Um em cada três estudantes LGBT da Tailândia diz ter sofrido algum tipo de agressão por causa de gênero ou orientação sexual, segundo levantamento da ONG Plan International, Unesco e Universidade de Mahidol.
Anjana Suvarnananda, de 59 anos, lésbica e uma das principais ativistas do país, trabalha para que as instituições de ensino se tornem ambientes inclusivos. Mas, como no Brasil, a tarefa esbarra em setores conservadores da sociedade, que se refletem na política.
“Eles acham que a Tailândia ainda não está pronta para discutir o tema”, afirma.
Fonte: BBC Brasil