Especialistas apontam para um agravamento dos conflitos mundiais, o que alguns já consideram uma Terceira Guerra Mundial, e analisam as causas e consequências da ofensiva inesperada norte-americana nesta semana contra a Síria, sob o comando de Donald Trump.
O lançamento de dezenas de mísseis, em poucos segundos, dos Estados Unidos à base militar síria de Shayrat deixou 15 pessoas mortas, seis soldados e nove civis, de acordo com a agência estatal Sana. O veículo informou ainda que o ataque atingiu não apenas a base, mas também habitações de vilarejos próximos.
Após o ataque contra o governo sírio, o Ministério da Defesa da Rússia anunciou oficialmente ao Pentágono o fechamento da chamada “linha direta” para prevenir acidentes entre aviões russos e norte-americanos.
“Parece que os EUA utilizaram o incidente para fazer política interna. O Trump é acusado, desde a posse da presidência, de ser uma marionete dos russos, e com isso ele mostra que é independente”, diz Francisco Teixeira, professor de estratégia internacional da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Para ele, do ponto de vista objetivo, o ataque enfraquece o governo sírio, e favorece a posição dos terroristas islâmicos.
Para o professor de Relações Internacionais da Facamp, James Ommig, outra suposição é a de que o Conselho de Segurança dos EUA tenham feito pressão para que Trump agisse em retaliação ao uso de armas químicas, atribuído ao governo sírio.
“O conselho, apesar da maioria formada por aliados do Trump, tem um colegiado de generais e estrategistas que mantêm a tradição norte-americana de política externa. Se não houvesse retaliação, significaria que o Trump está fraquejando”, disse.
Os disparos dos EUA são dados publicamente como uma resposta a um ataque com armas químicas em Idlib, região controlada por rebeldes, na última terça-feira (4), que matou ao menos 80 pessoas, entre elas, 27 crianças. Em pronunciamento, Trump disse que se tratava de “uma afronta à humanidade”.
O governo sírio, junto à Rússia, nega o uso de armas químicas. Eles alegam que teria sido um ataque convencional que acabou atingindo um armazém químico dos rebeldes.
“Não parece óbvio que, na situação em que está o Assad, ele tivesse lançado um ataque químico. E, além do mais, como essas armas químicas chegaram e que potências as estão fornecendo aos rebeldes?”, questiona Francisco.
A emissora pública estatal da Síria classificou a ação como uma “agressão norte-americana”. Até o momento, os Estados Unidos realizavam ações na Síria contra o Estado Islâmico (EI) e por meio de bombardeios aéreos também no Iraque, com o apoio de uma coalizão internacional. Os disparos de quinta-feira, porém, foram diretamente contra o regime sírio, e representaram uma mudança na política externa dos EUA com o governo de Donald Trump, além de ser a ordem militar mais dura emitida pelo magnata desde que tomou posse.
“Trump é mais um presidente norte-americano que usa da força para resolver uma crise internacional, reforçando a tradição do país. A Hillary [candidata concorrente à presidência] já estaria fazendo isso há muito tempo, porque ela seguiria os mesmos passos do Obama. Neste quesito, não há novidade”, pontua Teixeira.
Rússia
O republicano Trump não tinha anunciado nenhum ataque contra a Síria, apesar de seus comentários sobre a guerra civil local terem se intensificado nos últimos dias. A maioria no Congresso manifestou apoio, mas muitos criticaram o fato de não terem sido consultados antes da iniciativa. O Pentágono afirma que as forças russas que atuam na Síria foram comunicadas sobre o ataque com antecedência, e que setores da base onde havia russos foram evitados e não foram atingidos.
“Deve estar havendo um problema de tradução, porque o governo russo não aceitaria uma ameaça à sua força local. E isso me leva a concluir que a Rússia deve levar o conflito não militarmente, mas, primeiro, diplomaticamente para uma área mais aguda da discussão”, diz o professor da Facamp, James Ommig.
O primeiro-ministro da Rússia, Dmitri Medvedev, afirmou em seu Facebook que os Estados Unidos chegaram “a um passo de um confronto com a Rússia”. “Os resíduos da névoa pré-eleitoral apareceram. Ninguém exagera o valor das promessas eleitorais, mas há um limite de decência além do qual a desconfiança é absoluta. O que é absolutamente triste para as nossas relações já absolutamente desgastados. E certamente é confortante para os terroristas”, escreveu Medvedev.
A tensão e a divisão entre os representantes dos países que fazem parte do Conselho de Segurança das Nações Unidas foram marcas da reunião de emergência convocada pelos russos nesta sexta-feira (7). Nos debates, no entanto, nenhuma solução, apenas trocas de acusações.
Para Francisco Teixeira, o ataque “surpresa” de Trump torna tudo mais complicado. “A Rússia e os EUA vão ficar com o diálogo muito mais difícil e a provável coalizão pra derrubar o califado islâmico se torna improvável”, disse.
James acrescenta que o bombardeio não abala o governo Assad, e deixa a impressão de que o governo norte-americano quer que a Síria declare guerra para justificar uma invasão ao país — uma invasão que, caso ocorra, teria forte repressão da Rússia, segundo o professor.
“A Rússia não abre mão de apoio ao Assad por dois motivos, a política externa do [presidente russo] Putin é expansionista, eles não aceitam perder influência; e outro é a questão histórica, na época da União Soviética, a Rússia era aliada do pai do Assad”, contou.
China
O lançamento dos mísseis ocorreu em meio a uma agenda internacional de Donald Trump, após jantar com o presidente chinês, Xi Jinping, que esteve nos Estados Unidos nesta semana acompanhado pela esposa, para seu primeiro encontro com o magnata.
Para Francisco, o ataque foi uma advertência direta à China, que pode imaginar que a discussão sobre as áreas contestadas no mar do Sul do país poderia ser resolvida de forma militar. “A China defende uma não-solução militar na Síria. Ordenar um ataque sem considerar a opinião chinesa em meio a um jantar de negócios é humilhante para o presidente Xi Jinping”, considerou.
“Com certeza, o ataque deixou o presidente chinês em uma saia justa. Trump meio que colocou ele contra parede, e os chineses não trabalham dessa forma”, completou James.
Crise Mundial
James afirma que estamos assistindo uma nova radicalização e o crescimento de conflitos mundiais. Para além da guerra na Síria, o especialista cita a crise dos refugiados na Europa, a saída do Reino Unido de um dos maiores blocos econômicos mundiais, o muro que divide os EUA do México, a ação do Estado Islâmico próximo à Síria, o projeto expansionista da China que cria uma tensão com a frota naval norte-americana; além de questões com menor repercussão, porém, não menos importantes, como os testes nucleares norte-coreanos.
“Em vez de se buscar entendimentos, parece que voltamos a um patamar de rivalidades”, acrescenta o professor, que conclui: “Estão querendo solucionar dois graves problemas como a guerra na Síria e o governo Assad de uma única vez, e isso é inócuo, não funciona. Quem está pagando o preço é a população civil, famílias e crianças”.
O resultado da crise pode ser visto no sentimento anti-refugiados que domina grande parte das potências mundiais. As justificativas estão entre a crise econômica, com um possível aumento de custo social do país receptor; a iminência do terrorismo, e a xenofobia, característica da história europeia.
“Enquanto a Alemanha de [Angela] Merkel promove uma politica de acolhimento aos refugiados, a França, a Dinamarca e a Bélgica querem fechar as portas. A coesão da Europa corre sérios riscos. Ou a solução é global ou vamos desembocar esses sucessivos movimentos de revolta e guerras civis”, alerta James.
Calcula-se mais de 11 milhões de refugiados obrigados a fugir da guerra na Síria, sem incluir aqueles que se deslocam clandestinamente. A maioria, porém, é refugiada dentro do próprio país. De acordo com dados da ONU, cerca de 5 milhões se refugiaram principalmente na Turquia, Líbano e Jordânia. O Líbano fica em primeiro lugar na lista com uma proporção de 25% dos habitantes. É como se o Brasil recebesse 50 milhões de refugiados, ante os quase três mil que acolhe efetivamente.
“O Trump faz um discurso hipócrita. Os EUA não querem colher o resultado da sua política intervencionista nos conflitos do resto do mundo. E para os norte-americanos é mais fácil criar essa barreira, porque eles têm um oceano inteiro separando os continentes”, diz Helion Póvoa, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Migratórios da UFRJ.
Histórico
A guerra civil na Síria começou há seis anos como um levante pacífico contra o governo de Assad (que representa a minoria muçulmana xiita) e inspirado na Primavera Árabe. Sob a gestão de Barack Obama, os EUA, juntos com a Arábia Saudita, apoiaram os rebeldes (que representam a maioria sunita) e pediram a saída de Assad. Entretanto, o líder sírio recebeu apoio de outros países, como a Rússia e o Irã, e conseguiu se manter.
Mais de 13 milhões de pessoas estão em estado de necessidade e há uma expectativa de vida reduzida em 15 anos para os homens e 10 anos para as mulheres. A guerra na Síria, que contabiliza mais de 400 mil mortos, envolve interesses geopolíticos das maiores potências do planeta e atores importantes no Oriente Médio.
A família Assad, há mais de 40 anos no poder, com o apoio da antiga União Soviética, criou um regime de profunda vocação para área social. Na medida em que a URSS foi se desmantelando, o governo Assad ficou sem o antigo apoio, e alguns grupos descontentes começaram a criar oposição. Assad reprimiu a oposição de forma violenta por anos, com prisões arbitrárias, deportações e execuções. E, apesar do regime ditatorial truculento, seu apoio popular não fraquejou.
Em meados de 2013, aparece um novo ator forte, o Estado Islâmico, também conhecido como Daesh, fruto da desestruturação do Iraque e de grupos que não receberam poder no Iraque depois do fim da era de Sadam Hussein. O EI concentrou suas ações no domínio de regiões petrolíferas, vendendo a commodity no varejo em um mercado paralelo. Dados indicam de que o grupo radical tenha arrecadado cerca de US$ 1 milhão por dia no início de 2015.
“A ocupação dos EUA no Iraque contribuiu muito para desestabilizar completamente essa região”, explica Helion Póvoa, da UFRJ. O professor aponta que o conflito da Síria é um desdobramento do conflito no Iraque, que começou em 2003, financiado pelo então presidente dos Estados Unidos George W. Bush.
“O pretexto é a intervenção humanitária, mas, na verdade, foi esse tipo de intervenção no Iraque que desestabilizou a região inteira. A justificativa era a mesma: de que Sadam tinha armas químicas, algo que nunca foi provado”, disse Helion, finalizando: “Foi uma guerra que custou milhões de vidas, como essa está custando agora”.
Fonte:JB