Um cheiro semelhante ao de um chiclete sabor melancia preenche o ambiente decorado com luzes coloridas de neon. Grupos de amigos se divertem espremidos em bancos enquanto fazem argolas no ar ao soltar a densa fumaça aspirada dos narguilés, que passam de boca em boca.
Cenas como a descrita acima são comuns nas novas tabacarias, que chegaram com força no Brasil e fazem sucesso entre jovens. Um dos segredos desse negócio, segundo especialistas entrevistados pela BBC Brasil, é que tanto o sabor das essências quanto as variedade de cores do narguilé o deixam com uma imagem de produto quase inofensivo.
Entretanto, médicos dizem que ele é cerca de cem vezes mais potente que um cigarro comum, um fato que chamou a atenção de governos estaduais e federais, preocupados com o acesso precoce ao tabagismo.
Segundo a coordenadora de fiscalização da Lei Antifumo da Vigilância Sanitária no Estado de São Paulo, Elaine D’Amico, nos últimos dois anos houve um grande aumento no número de tabacarias voltadas para o uso de narguilés. “A Lei Antifumo está em vigor desde 2009, mas as tabacarias entraram no nosso cronograma de fiscalização recentemente porque percebemos um grande crescimento desse nicho”, conta.
Autoridades e especialistas ouvidos pela BBC Brasil apontaram para riscos de saúde enfrentados por usuários pelo alto teor de tabaco consumido, pela possibilidade de transmissão de doenças infectocontagiosas através do compartilhamento da piteira do narguilé e também pelo fumo passivo – caso de pessoas presentes nas tabacarias que respiram a fumaça mesmo sem dar nem sequer um trago.
A BBC Brasil identificou farmácias, livrarias, bares e até casas que fecharam nos últimos anos em todas as capitais brasileiras para dar lugar a dezenas de tabacarias – a maior parte nas periferias e perto de universidades.
Procurada, a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) informou que não acompanha o crescimento desse tipo de comércio porque nenhuma empresa com foco no narguilé é associada.
‘Cachimbo de água’
De origem oriental, o narguilé é, de maneira simplificada, um cachimbo de água. O ar aquecido por carvão passa pelo fumo e resfria no líquido antes de ser aspirado – e eliminado em seguida – pelo usuário. O fumo, também conhecido como essência, é composto de tabaco e frutas ou aromatizantes.
Em uma sexta-feira quente na noite paulistana, as amigas Giovanna Caberlin e Julia Novaes, de 18 anos, dividiam um narguilé a poucos metros da Universidade São Judas, na zona leste da cidade. A sessão de fumo, que dura cerca de 40 minutos, foi o tempo necessário para preencher o horário da primeira aula que, segundo elas, fora cancelada.
A rua onde as amigas estavam tem ao menos dez bares, mas Novaes explica porque ela e a amiga escolheram justamente a tabacaria.
“Se a gente fosse beber, não poderia ir depois para a faculdade. Eu já até deixei de ir para bares porque não tinham narguilé e preferi ir para casa fumar com meus amigos”, conta.
Novaes, que cursa publicidade e propaganda, diz que fuma narguilé desde os 13 anos, mas que a prática hoje é “bem menos prejudicial” porque o antigo carvão de pólvora foi substituído por um de fibra de coco. Ela conta que sua essência preferida é a Love 66 – um mix de frutas com sabor mentolado.
Quem comemora o êxito da Fumos Hooka Lounge, local onde as amigas estavam, é o gerente e sócio Pedro Benedito de Borja, de 21 anos. Ele disse que o sucesso é tão grande que já pensa em mudar de endereço.
“Faz um ano que abrimos e já estamos procurando um lugar maior. É lotado assim todo dia, inclusive aos sábados, quando não tem aula. Além de ser algo que une socialmente, é barato porque custa R$ 30 a primeira sessão e R$ 10 cada vez que é recarregado”, conta.
Tabacaria ou bar?
As tabacarias se assemelham a bares ou lanchonetes, com mesas e bancos ou cadeiras; os narguilés são colocados em posição central sobre a mesa. Por lei, não é permitido servir comida ou bebida alcoólica nesses locais.
São ambientes fechados em que o consumo de derivados de tabaco, como charutos, cigarros e narguilés, é autorizado por lei – desde que sejam respeitadas algumas determinações, com a existência de sistema de ventilação.
Desde a implantação da Lei Antifumo em 2009, a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo fez 1,7 milhão de inspeções em locais como bares, restaurantes e tabacarias para coibir o tabagismo passivo – a inalação da fumaça produzida pelo tabaco – e aplicou 3.854 multas.
Segundo a coordenadora de fiscalização da Vigilância Sanitária, boa parte das irregularidades do tipo registradas no Estado ocorre por causa da comercialização de narguilés por bares sem licença para tal.
Outra irregularidade comum é a de empresas com CNPJ para atuar como tabacarias que vendem bebidas no mesmo espaço usado para consumo do tabaco, o que é proibido.
As tabacarias são obrigadas a ter um sistema de exaustão para a saída da fumaça e uma placa na entrada alertando para o consumo de produtos fumígenos. Em caso de irregularidade, o comércio é autuado e pode ser multado em R$ 1.253,50. Em caso de reincidência, o valor da punição dobra. Na terceira vez, o estabelecimento é interditado por 48 horas, e na quarta, fechado por 30 dias.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o tabagismo passivo é a terceira maior causa de morte evitável.
O Ministério da Saúde informou estar alerta para o uso de narguilés por jovens. Em 2015, o foco da pasta foi justamente sobre os riscos do uso de narguilé. Na época, o governo veiculou campanhas na televisão, fez trabalhos em escolas e até intervenções em shoppings.
A intenção é desmistificar a ideia de que seu consumo é inofensivo. Segundo especialistas consultados pela reportagem, o uso de narguilé pode causar doenças respiratórias, coronarianas e alguns tipos de câncer, como o de pulmão, boca, bexiga e leucemia.
Uso social
De acordo com usuários e especialistas ouvidos pela BBC Brasil, o tempo de preparo de um narguilé desestimula seu uso solitário e frequente. Para eles, o instrumento de origem árabe faz parte de um “estilo de vida criado para ser compartilhado com amigos”.
Mas médicos alertam que o uso coletivo pode transmitir doenças infectocontagiosas, como hepatite (inflamação no fígado), herpes e tuberculose.
A montagem do narguilé começa com o acendimento do carvão, que demora cerca de dez minutos. O tabaco com essência é colocado no bocal, fechado com alumínio e depois furado para possibilitar a passagem do ar. O carvão então é aceso e colocado em cima dessa estrutura.
A base, geralmente feita de vidro, é preenchida com água. As mangueiras e bocais são conectados, e o equipamento está pronto para uso.
Quando o fumante puxa o ar, a fumaça é resfriada na água antes de passar pelas mangueiras e chegar à sua boca e pulmões.
Especialistas dizem que alguns jovens que ainda trocam a água que resfria a fumaça por bebidas alcoólicas, como vodca, e o tabaco por maconha para tentar potencializar o efeito do narguilé.
A cardiologista coordenadora do Programa de Tratamento ao Tabagismo do Incor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas), Jaqueline Scholz, diz que o narguilé tem um alto teor de nicotina.
“Ele é uma porta de entrada para o cigarro ou cigarro eletrônico. É uma forma antiga de fumar a que a indústria do tabaco recorreu para que não tivesse essa imagem tão danosa”, disse.
Para Scholz, o governo também deveria proibir o uso de aromatizantes nas essências.
“O sabor torna esse uso mais agradável e atrai mais gente. Você é atraído pelo cheiro, pela cor. Fora que existem leis e proibição de uso para menores de idade que, pelo jeito não estão sendo cumpridas. Já vi até pais dando narguilé para os filhos. Precisa é acabar com esse mito de que o narguilé é seguro.”
Para ela, o produto “hoje é vendido hoje com o mesmo glamour que o cigarro no passado. Só depois descobriram o que é”.
Fonte: BBC Brasil