A detenção, no domingo passado, de Rocco Morabito – um dos cinco criminosos mais buscados pela polícia italiana e foragido há mais de 23 anos – voltou a jogar luz sobre os interesses da máfia calabresa ‘Ndrangheta na América Latina, incluindo o Brasil.
Rocco Morabito, de 51 anos, foi preso em um hotel em Montevidéu, no Uruguai. Ele é primo de Giuseppe Morabito – chefe histórico da ‘ndrina’ (o nome dado aos clãs mafiosos da Calábria) de Africo Nuovo, um povoado a poucos quilômetros de Reggio Calabria, cidade do extremo-sul da Itália considerada capital da ‘Ndrangheta.
Investigadores creem que Rocco se instalou no Uruguai há mais de 13 anos, burlando a Justiça italiana – da qual fugia desde 1994 – graças a uma identidade falsa: em seus documentos aparecia como Francisco Capeletto Souza, cidadão brasileiro.
“O Cone Sul e, em particular, o Paraguai, se tornaram pontos cruciais para o tráfico mundial de cocaína, tanto que já pode ser chamado de ‘Narcosur'”, explica Cecilia Anesi, jornalista do projeto Investigative Reporting Project Italy (IRPI), uma organização que investiga a atuação da máfia no mundo há anos.
“Sabemos há algum tempo que a cocaína vem da Bolívia, Colômbia, Peru e Paraguai, e de lá se move por terra até o Porto de Santos, no Brasil, e, pelas rotas fluviais, até os portos de Montevidéu e, em menor medida, Buenos Aires”, afirma Anesi.
Isso poderia explicar tanto a presença de Morabito no Uruguai como a prisão na capital peruana de Lima de outro chefe da organização, Pasquale Bifulco, há três anos.
Relação com o PCC
“Os traficantes da ‘Ndrangheta são tão poderosos que podem tratar diretamente sobre as rotas de cocaína com o Primeiro Comando da Capital (PCC) no Brasil, um dos cartéis mais importantes da América do Sul”, acrescenta Anesi, apontando que outro chefe da Máfia, Nicola Assisi, estaria alojado há algum tempo no Brasil.
Anesi, em reportagem publicada em outubro de 2016 ao lado do jornalista Giulio Rubino, mostrou que Nicola Assisi, um dos principais fornecedores e mediadores da ‘Ndrangheta, age ativa e quase invisivemelmente no Brasil.
As comunicações com fornecedores são feitas de forma segura no país, onde acredita-se atuar também a esposa de Assisi, como tesoureira, e seu filho, Patrick Assisi. Não se sabe qual é a aparência de Nicola hoje.
Em maio, um dos filhos de Nicola, Pasquale Assisi, foi preso na cidade italiana de Turim. Antes da detenção, autoridades acreditavam que Pasquale também estava escondido no Brasil com a família.
Além de negociar com o PCC, sobretudo no comércio de cocaína, acredita-se que os Assisi usam o Brasil também para lavagem de dinheiro. A apuração de Anesi e Rubino indica que Patrick criou formalmente uma pequena empresa, a Poli Pat 9, em Ferraz de Vasconcelos – cidade da Grande São Paulo considerada centro de lavagem de dinheiro do PCC.
A importância que tem assumido o Paraguai nos negócios da ‘Ndrangheta também passa pelo Brasil. O país vizinho tem se tornado parte importante da rota da cocaína com destino à Europa, nas quais agem pequenos clãs familiares paraguaios na organização dos carregamentos.
Tal operação é feita, no entanto, sob o controle do PCC brasileiro.
Quem é a ‘Ndrangheta
A ‘Onorata Società’, como é conhecida entre seus afiliados, tem sua origem na Calábria, uma região do sul da Itália e uma das zonas mais pobres do país.
Devido a suas origens rurais, que remontam ao século 18, a ‘Ndrangheta foi considerada por muito tempo uma organização de menor importância em comparação com o máfia siciliana Cosa Nostra, ou a Camorra, da Campânia.
No entanto, precisamente por seu caráter silencioso, pelo controle minucioso do território – conseguido também por meio do uso feroz da violência contra adversários e traidores – e pela estrutura na qual os laços familiares são muito importantes, a ‘Ndrangheta conseguiu conquistar o tráfico mundial de cocaína e negociar rotas e preços diretamente com os cartéis mais importantes da América Latina.
Segundo um informe do Eurispes, um prestigiado instituto italiano de estudos políticos, econômicos e sociais, em 2008 o volume de negócios da ‘Ndrangheta chegava aos 44 bilhões de euros (cerca de R$ 163 bilhões) – quantia que corresponde a 2,9% do PIB italiano.
Aproximadamente 62% dessa receita viria do tráfico de drogas, uma vez que essa máfia controla cerca de 40% dos envios de cocaína em escala mundial e é a principal importadora de droga na Europa.
As outras atividades mais lucrativas do grupo são a construção e as licitações públicas, as extorsões, o tráfico de armas e a prostituição. Sua estratégia de “colonização” internacional permitiu à máfia, em pouco tempo, levar seus tentáculos aos cinco continentes, e sua presença na Alemanha, Espanha, Canadá, Austrália e América do Sul é cada vez mais forte.
“Se você quer deter um mafioso, não duvide: procure-o em um porto”, diz Enzo Ciconte, professor de história das máfias nas universidades italianas de Pavia e Roma Tre e especialista na ‘Ndrangheta.
“Os portos são o pilar fundamental de qualquer comércio e, por isso, do tráfico de ilícitos”, acrescenta Ciconte, que foi consultor da comissão antimáfia do parlamento italiano.
Na operação no Uruguai que prendeu Rocco Morabito, foram apreendidas grandes quantidades de dinheiro vivo, cheques, cartões de crédito, débito, e também 13 celulares.
“Conhecendo a importância das estruturas familiares dos mafiosos da Calábria, não me estranharia se fossem encontrados outros membros na mesma zona. Estes celulares podem ser uma mina de ouro para os investigadores”, conclui Ciconte.
Fonte: BBC Brasil