A obesidade é um problema ético que impõe custos extras

“Doei o meu rim direito por sua causa.” Este foi o email mais surpreendentes que Peter Singer recebeu na sua carreira de filósofo e escritor. Um jovem norte-americano, Chris Croy, depois de ler um dos seus artigos sobre como podemos melhorar o mundo contribuindo com parte do que temos, levou o exemplo ao extremo. Sim, temos dois rins. Sim, funcionamos bem com um e o outro pode salvar uma vida. Uma equação fácil de resolver. Depois da sua atitude, houve uma corrente de doações e pelo menos mais quatro receberam rins. O australiano que dá aulas na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, está habituado a mudar mentalidades desde os anos 70 quando começou a defender os direitos dos animais, o direito à eutanásia, até em miúdos – diz que não há uma diferença tão grande entre um feto e uma criança que nasceu com graves doenças – ou como nos relacionamos com robôs. O novo livro Ética no Mundo Real (Edições 70), reúne 82 ensaios que não deixam ninguém indiferente.

Defende que a ética tem uma base biológica. De que forma?
A evolução escolheu as formas de sobrevivência que melhor conduziram a que nos reproduzíssemos e assim moldaram os nossos cérebros. Muitos destes comportamentos éticos ajudaram-nos. Isso vê-se no facto de algumas das nossas reacções serem intuições morais. Por exemplo, temos uma resposta negativa ao incesto e isso é facilmente explicado pelo facto de nascerem filhos com deficiências fruto desse comportamento. Mas dado que as circunstâncias podem mudar, as respostas intuitivas alteram-se.

Como assim?
Por exemplo, ao desenvolvermos uma moralidade numa era sem contracepção eficaz, temos preocupações com a premissa: se temos sexo, vamos ter um filho. Surgem as questões: quem vai tomar conta dele?, ou a criança sobreviverá ou será um peso para a sociedade? Já numa época de contracepção eficaz isso não se aplica. Outro exemplo, não temos a mesma resposta a ajudar pessoas próximas e estranhos. Motivo? Na nossa história evolutiva não podíamos ajudar pessoas distantes, nem sabíamos que existiam. Logo, a resposta emocional é diferente.

É o caso dos refugiados?
De certa forma. As necessidades destes refugiados são muito urgentes, empatizo com isso. Aliás, os meus pais eram refugiados que fugiram dos nazis [deixaram Viena] e se não tivessem encontrado abrigo na Austrália eu não estaria aqui. Mas nesta questão penso que o direito a um acesso directo ao asilo não é sustentável. Há um risco para a Europa.

Qual?
Aquela sensação de que se perdeu o controlo das fronteiras, esse foi um dos grandes factores que levou ao Brexit e ao retrocesso na história da Europa. Acho que as pessoas ficariam mais descansadas se o direito ao asilo fosse restrito. Por outro lado, as nações ricas poderiam fazer muito mais para ajudar os países mais próximos que os acolhem. Os refugiados sírios são um peso maior não para a Europa, mas para o Líbano, Jordânia e Turquia.

Somos hoje mais solidários?
Estou interessado nesse tema há 45 anos. Vejo mudanças interessantes, como o altruísmo efectivo. Este movimento tem menos de 10 anos, e está a atrair um grande número de jovens empenhados em mudar as coisas de forma eficaz.

Em que consiste este movimento?
Primeiro em tornar o mundo melhor, ou seja, como fazer uma diferença e não viver a pensar apenas em mim. Depois, a grande diferença é a ênfase em ser racional ao fazê-lo, não ser solidário por impulso. Procurar onde estão as provas de que esta organização vai fazer uma diferença e é eficaz. Por exemplo, que carreira devo escolher? Uma em que seja feliz, mas que possa fazer uma diferença positiva. É provável que se fizermos algo valioso, nos vamos sentir mais felizes. O site 80000 Hours [80 mil horas é quando vamos dedicar à carreira] tem muita informação sobre a escolha de carreiras éticas.

Um dos seus alunos, com excelentes notas e uma carreira académica à espera, trocou tudo para trabalhar na Bolsa e ganhar dinheiro para ajudar, doava 100 mil dólares [89 mil euros] por ano. É um exemplo a seguir?
Sim. Ele está agora em Hong Kong e faz muito dinheiro. Dá no mínimo metade do seu rendimento.

Com os seus artigos já mudou de mentalidade várias pessoas. Uma até doou um rim depois de o ler?
Sim. Foi depois de ler um dos meus primeiros artigos Famine, Affluence and Morality [fome, afluência e moralidade]. Tiveram um debate na aula e alguém levantou a questão: se o meu argumento sobre doar dinheiro estivesse certo, não deveria ser apenas sobre dar dinheiro. Nós temos dois rins e podemos viver só com um e salvar vidas. Apesar de esse argumento ser apenas para reforçar uma tomada de decisão, Chris Croy interpretou-o à letra. Investigou o tema, pensou sobre isso, viu qual era o risco de doar o rim – muito baixo – e foi a um hospital. No início, acharam que era louco, mas depois do check-up ficou apto como dador. Ainda hoje continuo em contacto com ele e ele está bem e muito feliz.

Numa entrevista disse que não doar um rim era a sua falha?
Acho que seria uma pessoa melhor se o fizesse. Fico feliz por doar dinheiro, não tenho problema com isso. Mas dar uma parte do meu corpo… Não consigo justificar isso… Mas é como é. Tenho limites na minha santidade.

A relação com os animais é um tema de que fala muito. Quando começou a pensar sobre isso?
Em 1970 era estudante na Universidade de Oxford e conheci alguém que era vegetariano por razões éticas. Ele fez-me perguntas difíceis a que eu não conseguia responder.

Quais?
Porque achamos que temos de direito de fazer o que fazemos aos animais, quando sabemos que não temos direito de o fazer às pessoas? Além disso, não sabia muito sobre a indústria alimentar das carnes. Imaginava que os animais que eu comia tinham tido boas vidas e um dia morriam. Mas pronto, isso era um mau dia. Quando percebi que a grande maioria raramente tinha um bom dia, porque viviam metidos em gaiolas, fez-me pensar.

Qual foi a coisa mais chocante que descobriu?
Que o produtor podia fazer o que quisesse aos animais. Não havia restrição quanto ao número de galinhas que punham numa gaiola, a não ser que muitas morressem e assim não fariam dinheiro. Os animais tinham vidas miseráveis.

As coisas mudaram muito?
Mudaram. Por exemplo, no caso das galinhas poedeiras, elas viviam em gaiolas tão pequenas que não conseguiam abrir as asas ou batê-las. Isso melhorou, pelo menos na Europa. Existem leis que garantem um espaço mínimo, mas ainda ficam em gaiolas… Já as outras galinhas são criadas para crescer rapidamente e as pernas delas não aguentam o peso do corpo. Vivem sempre com uma dor crónica, tipo artrite.

Escreve muitos artigos com opiniões polémicas, qual foi o que gerou opiniões mais violentas?
As minhas opiniões sobre a eutanásia para crianças com doenças gravemente incapacitantes. As críticas vêm de duas direcções: uma dos grupos cristãos, defensores da santidade da vida, e outro são as organizações de pessoas com deficiência que dizem que estou a reforçar os estereótipos. Mas há casos em que o prognóstico das crianças é tão mau que não vale a pena. Casos em que a pele continua a rebentar, com infecções, pões um penso rápido e quando o mudas a ferida abre novamente. São condições muito trágicas. Se durante a gravidez os pais soubessem, provavelmente abortariam e nem seria controverso. Mas se só é descoberto depois de nascer, não podem fazer nada. Não acredito que a distinção entre o feto e a criança que nasceu seja assim tão grande para que as decisões sejam diferentes.

Mas existe uma diferença. Afinal qual é o valor da vida?
É importante fazer essas perguntas sobre o valor da vida, mas aplicam-se ao aborto também. Muitas pessoas estão confortáveis com a ideia do aborto, quando nasce estabelece-se uma linha bem demarcada e não há forma de terminar a vida da criança de forma intencional.

Uma das perguntas que coloca no livro é: quão boa deve a vida ser para que valha a pena nascer?
Penso que tem de ser um equilíbrio positivo, mais experiências positivas do que dolorosas e miseráveis. Isto pode ser uma opinião demasiado rude, grosseira, pois dizem que há mais para além da vida do que a felicidade e a dor. Mas se há uma preponderância de sofrimento e dor, não é possível valer a pena.

Fala de obesidade e de como pode ser um problema ético?
É um problema ético, porque quando temos recursos limitados alguém muito obeso consume em demasia. Não falo apenas em comida, mas em termos de combustível dos aviões, por exemplo. Se levarmos bagagem mais pesada do que o permitido, temos de pagar uma taxa, porque para a transportar o avião gastar mais combustível. Mas não temos em consideração o tamanho do corpo das pessoas, que também é uma sobrecarga. É estranho. Faria mais sentido pesar a bagagem em conjunto com a pessoa.

Se o fizessem…
Não iam gostar. Sei que as pessoas com excesso de peso e obesas veriam isto como discriminação e hostilidade. Percebo que para muitas não é uma escolha, mas sim uma questão de metabolismo. Agora é claro que essas pessoas estão a impor custos extras às outras. As pessoas mais magras estão a subsidiar as mais pesadas cada vez que voam.

As alterações climáticas são um grave problema, mas o que fazer quando quem tem o poder, Trump, nem acredita nisso?
É muito difícil. Temos um Presidente de um país que é o segundo maior emissor (EUA), mas o consumo per capita é o maior. Se o Trump sair do acordo de Paris [a entrevista foi feita antes da divulgação da decisão de Trump, a 31 de Maio] devíamos boicotar os bens norte-americanos. Caso contrário, a América terá uma vantagem injusta, ao ter energia mais barata e ao produzir mais barato, à custa de prejudicar o mundo.

Fonte: Sabado

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