Dividimos as questões entre cidade e floresta, como se fossem separadas. Está na hora de misturar.
Os brasileiros têm dupla personalidade em relação ao meio ambiente. Tudo o que se fala ou se pensa sobre meio ambiente no Brasil pode ser dividido em dois grupos. É como se fossem duas agendas: a verde e a marrom. Cada uma tem uma dinâmica própria. Elas correm de forma independente. E isso tem consequências para nosso desenvolvimento sustentável. Ou para a falta dele.
A agenda verde é a das florestas. É o debate sobre o futuro da Floresta Amazônica, da Mata Atlântica, do Cerrado e da Caatinga. Ele é dominado por uma falsa ideia de oposição entre produção rural versus conservação ambiental. Na realidade, a verdadeira escolha é entre a produção predatória ou criminosa e a produção sustentável ou legal. A agenda verde é a que tem mais visibilidade, principalmente internacional. O mundo está de olho no que fazemos com nossas riquezas naturais. Organizações não governamentais brasileiras e estrangeiras têm voz importante, assim como pesquisadores e representantes de entidades rurais, como a bancada ruralista no Congresso. Um aspecto interessante dessa agenda é que a maioria dos brasileiros não se enxerga dentro dela em sua rotina. Embora as maiores cidades do país – São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador – tenham sido originalmente Mata Atlântica, o ambiente natural foi tão expurgado da vida dos cidadãos que eles imaginam o que acontece com as florestas como algo distante, em geral lá na Amazônia. Isso explica por que é mais fácil mobilizar os paulistanos para salvar uma reserva no Pará do que um parque no bairro ao lado.
Já a agenda marrom é a das cidades. Inclui um conjunto de questões como água, lixo, poluição do ar, barulho, mobilidade, contaminação dos solos, arborização urbana, energia e ilhas de calor. Os temas parecem isolados, mas estão todos interligados. A agenda marrom não tem a polarização da agenda verde. As pessoas se posicionam de forma complexa. Você pode defender a reciclagem de lixo, mas não liga para a poluição sonora de sua igreja ou de seu baile funk. As pessoas também são mais pragmáticas. Você pode defender a coleta seletiva, mas não quer pagar uma taxa de lixo municipal. O debate ocorre muito mais em torno da política local, naturalmente. É menos Congresso Nacional e mais prefeituras. Embora políticas federais, como subsídios a montadoras, também atinjam as cidades, isso não é tão percebido pelos cidadãos. Não há grandes ONGs atuando. Os ativistas e financiadores de ONGs internacionais não priorizam os problemas urbanos brasileiros. Há muito mais vozes diferentes na discussão. Ao contrário do que ocorre com a agenda verde, no debate das cidades os cidadãos sabem que cada item afeta diretamente sua vida.
Uma das limitações desse modelo de duas agendas separadas é que algumas questões ambientais – se não todas – misturam campo, cidade e floresta. Uma das mais gritantes – e urgentes – é a crise hídrica geral. São Paulo conseguiu atravessar sua mais grave crise de abastecimento de água durante três anos, com preocupação geral de população e governantes, praticamente sem lembrar que a destruição das nascentes tem a ver com o problema. O debate ficou amarrado na agenda marrom de desperdício, uso consciente, reúso, tratamento de efluentes, vazamentos e redimensionamento da rede. A devastação ambiental da área de mananciais ficou marginal do debate. Algo semelhante vem acontecendo agora no Centro-Oeste. Cidades como Brasília estão com abastecimento de água em risco. E pouco se fala sobre a relação disso com a destruição do Cerrado, onde nascem os rios.
A crise hídrica brasileira é uma oportunidade para juntarmos as duas agendas. Os rios escorrem por entre elas. Precisamos levar o pragmatismo da agenda marrom para a verde. E os grandes ideais da agenda verde para a marrom. Está na hora de embaralhar as páginas.
Fonte: Revista Época