ÉPOCA – Como a reforma da Previdência afeta os mais pobres?
Marcelo Neri – A reforma da Previdência não vai punir os mais pobres. A discussão da Previdência é muito afeita à classe C [a mais numerosa, com cerca de 100 milhões de pessoas], mas não à classe E. Não se pode usar o nome dos pobres em vão. Estamos falando dos 10% da população com renda mensal abaixo de R$ 100 por pessoa, segundo a definição de pobreza extrema, e de R$ 223, na faixa de pobreza. Eles têm interesses diretos e diferentes daqueles que criticam a reforma. Estão relegados ao último plano da discussão. A reforma da Previdência não prejudica tanto esses mais pobres. Eles são afetados principalmente no lado dos benefícios, por um aspecto muito simples: sem a reforma, não vai ter dinheiro para fazer nada.
ÉPOCA – Mas e os pobres aposentados?
Neri – Os aposentados não são pobres. Peguemos os dados de 2014, anteriores ao repique de empobrecimento, de 2015. A taxa de pobreza no Brasil era de 8%. A taxa de pobreza na faixa etária de 0 a 4 anos era de 15%. Na faixa dos aposentados, de 60 anos ou mais, era de apenas 1,4%. Ou seja, a taxa de pobreza das crianças é dez vezes maior que a dos idosos. Claro que não é o caso de ignorar os idosos. Mas é o caso de moderar os gastos com a Previdência, porque, sem uma redução de gastos, vai faltar dinheiro para tudo. A gente acha que é um país jovem, mas já deixou de ser. Está deixando de ser rapidamente, numa velocidade só comparável à da China. A cada três anos a gente ganha um ano de expectativa de vida. Isso é sensacional, mas impõe desafios ao orçamento público. Quem vai pagar essa conta, de uma forma ou de outra, serão as crianças e os jovens. Os supostos amigos dos pobres ou dos jovens estão dizendo que, com a nova conta da Previdência, os jovens terão de contribuir por 40 anos… Mas, se o Estado não tiver dinheiro, vão ter de contribuir do mesmo jeito. É melhor contribuir sabendo o que vai acontecer.
ÉPOCA – Como a reforma das leis trabalhistas afeta os mais pobres?
Neri – A reforma trabalhista é hoje uma discussão de sindicatos e grupos organizados. Esses grupos não são pobres, tecnicamente falando. A defesa dos sindicatos acaba não sendo para os que estão na base. O trabalhador pobre não fica desempregado. Ele cai na informalidade. Aí, ele tem zero proteção.
ÉPOCA – Que tipo de efeito tem, sobre a população, o ganho de direitos trabalhistas formais, batalhados pelos sindicatos?
Neri – O aumento do salário mínimo em 2015, acima da inflação, não foi só um desastre em termos de contas públicas, mas também um desastre em termos de desemprego. Em vez de poder dizer que a pessoa empregada passou a ter um salário maior, o governo acabou jogando um monte de gente no desemprego. Em apenas seis meses, a taxa de desemprego do Brasil cresceu para o mesmo patamar de seis anos antes. O aumento do salário mínimo, associado ao congelamento nominal do Bolsa Família, fez a desigualdade explodir. A renda média caiu 7% e a renda dos 25% mais pobres caiu 14%. Só em 2015, a pobreza cresceu 19% e a pobreza extrema 23%. Explodiu.
ÉPOCA – Segundo esse raciocínio, a prioridade para os pobres seria a geração de empregos formais, mesmo que com menos garantias?
Neri – Isso mesmo. O problema do pobre não é a precarização do emprego formal. O problema maior dele é a informalidade. É ter zero direito. A legislação trabalhista é antiga, tem mais de 70 anos, e é muito rígida. Não é o caso de jogá-la no lixo, mas um acúmulo de distorções precisa ser enfrentado.
ÉPOCA – Uns defendem regras mais flexíveis para o empregador, a fim de estimular a economia. Outros dizem que flexibilizar é desamparar o funcionário sem, necessariamente, gerar mais empregos. Como encontrar o equilíbrio?
Neri – De 1990 a 2015, a extrema pobreza no Brasil caiu 73%. Foi um resultado excepcional. O segredo foi adotar o caminho do meio: crescer e reduzir a desigualdade ao mesmo tempo. O desafio, hoje, está em reencontrar esse meio. Temos sindicatos ruins. Acho que o fim do imposto sindical, proposto no projeto, pode incentivar os sindicatos a oferecer melhores serviços. A gente está em uma discussão muito ideológica, pouco voltada para o que os dados dizem. Existe uma certa maldição em torno de fazer reformas. O Brasil já não as fez durante muito tempo. A urgência delas foi aumentando e, ao mesmo tempo, o diálogo se tornou mais difícil. Ninguém está olhando para os pobres. Nem na hora de propor as reformas nem na hora de combatê-las.
ÉPOCA – Que políticas públicas beneficiam efetivamente os mais pobres?
Neri – O que mais diz respeito aos pobres é o que você faz com o Bolsa Família, creches, campanhas de vacinação, ensino fundamental público… São políticas voltadas para a base da pirâmide de renda. Se não tiver dinheiro, o Estado não vai poder desempenhar seu papel de oferecer saúde e educação aos que mais precisam. As reformas em geral têm sido muito defendidas por razões macroeconômicas, como a retomada do crescimento e a restauração da situação fiscal. Concordo com a importância desses efeitos, mas acho que eles são apenas parte da história. As reformas têm sido pouco discutidas do ponto de vista distributivo. Elas podem ter um impacto importante sobre a redução da pobreza.
ÉPOCA – Tratar dos efeitos nos mais pobres, então, tornaria mais fácil discutir as reformas?
Neri – A defesa dos mais pobres atende a princípios morais, mas não é apenas altruísmo. Há razões macroeconômicas. É um ótimo instrumento para fazer as rodas girar. Cada real gasto com o Bolsa Família tem impacto na economia três vezes maior do que R$ 1 gasto com a Previdência e cinco vezes maior do que R$ 1 gasto com o FGTS. Mas estamos errando sistematicamente nisso. Na hora de tomar decisão, congelam o Bolsa Família e dão um ganho real para a Previdência. Qual é a lógica disso? É amadorismo puro. Não faz o menor sentido, nem social nem fiscal. Está faltando um mínimo de racionalidade. Para isso, precisa ter avaliação, precisa querer olhar os números.
Fonte: Revista ´Época