Neste mês, Judith Butler virá pela segunda vez ao Brasil, e é bom estar preparada para enfrentar seus críticos, porque a visita já é polêmica mesmo antes de acontecer.
Acusada de vir fazer uma palestra para promover a chamada ideologia de gênero, a filósofa americana diz à BBC Brasil que a campanha em curso contra ela é um “grande equívoco”, porque não falará sobre esse assunto, mas sobre democracia e seu trabalho a respeito da situação de Israel e Palestina. Para ela, esse tipo de reação à visita ocorre porque falar de gênero “causa muito medo”.
Butler é conhecida por seu trabalho como cientista social e especialmente renomada por seus estudos sobre o conceito de gênero. Ela estará no país para um evento no Sesc Pompeia, em São Paulo, o que colocou o centro cultural na mira de quem se opõe às ideias da filósofa.
Há contra ela uma petição no site CitizenGo que, em seis dias, já conseguiu 333 mil assinaturas, um número que cresce rapidamente – houve mais de 28 mil adesões desde ontem. Ao mesmo tempo, há uma campanha para avaliar mal o Sesc Pompeia no Facebook por recebê-la.
“Péssimo, não está investindo na cultura e no crescimento da humanidade, pelo contrário, estão pregando desconstrução, quem apoia ideologia de gênero e destrói a família caiu no conceito de todos nós brasileiros”, diz uma usuária da rede social ao dar nota 1, a mais baixa possível, ao centro cultural.
Já o abaixo-assinado que pede o cancelamento da palestra afirma que “Judith Butler não é bem-vinda no Brasil”, porque a filósofa propõe “a desconstrução da identidade humana pela desconstrução da sexualidade”.
“Há um grande equívoco circulando no Brasil”, diz Butler ao ser informada pela BBC Brasil do protesto.
“É estranho, porque não farei uma palestra no Sesc. Sou organizadora da conferência. Vou fazer uma palestra na Unifesp, mas será sobre meu livro sobre a Palestina e Israel”, afirma em referência à obra Parting Ways: Jewishness and the Critique of Zionism (Caminhos Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo), de 2012.
Butler esclarece que é a principal pesquisadora de uma programa que busca reunir estudiosos do campo da teoria crítica – de inspiração neomarxista – e, “como está bem claro no site do Sesc”, foi como tal que ela convidou pesquisadores internacionais a vir ao Brasil para discutir os fins da democracia, tema oficial do evento, que será realizado entre 7 e 9 de novembro com a participação de acadêmicos brasileiros e estrangeiros e está com as entradas gratuitas esgotadas.
“Para muitas pessoas, os direitos básicos e instituições democráticos estão sob ameaça com a ascensão do populismo de direita e a aceitação de novas formas de autoritarismo. É importante lembrar que a democracia é uma luta constante. Nunca podemos ter como algo garantido.”
Teoria ou ideologia?
A americana de 61 anos é doutora em Filosofia pela Universidade de Yale e dá aulas há 24 anos na Universidade da Califórnia em Berkley, uma das principais instituições de ensino dos Estados Unidos.
Entre 1988 e 1993, publicou trabalhos considerados hoje base de áreas de estudos conhecidas como teoria queer e de gênero, segundo as quais há uma diferença entre o sexo biológico e as identidades masculina e feminina que, além de serem formadas por aspectos físicos, seriam também construções sociais por receberem influências históricas e sociais.
“Sou vista como a fundadora do conceito ou sua principal representante, mas meu trabalho nessa área tem 25 anos e não é o que faço atualmente”, afirma Butler.
“Tinha uma carreira em Antropologia e Sociologia bem antes de começar a usar o conceito, que hoje é uma ideia amplamente aceita em qualquer instituição de pesquisa internacional”, diz, em referência à visão sobre gênero como um fenômeno também social e não apenas biológico.
Aqueles que se opõem a estes conceitos, como os criadores da campanha contra a filósofa, afirmam se tratar não de uma teoria, mas de uma ideologia de gênero que, mascarada como uma luta contra o preconceito, buscaria subverter as noções tradicionais de sexualidade e, assim, corromper institutos sociais, como a família.
O assunto já esteve antes no centro de outras polêmicas no Brasil. Há três anos, houve protestos quando, na elaboração das diretrizes nacionais de educação, a questão de gênero foi retirada do texto.
O tema transbordou para os anos seguintes na aprovação de planos municipais e estaduais, com vetos a iniciativas que tratavam da promoção da igualdade, identidade de gênero, orientação sexual e sexualidade nas escolas.
Em 2015, ainda gerou debate quando uma frase da filósofa francesa e expoente do feminismo Simone de Beauvoir – “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” – fez parte de uma das questões do Enem.
“O conceito de gênero gera muito medo. É uma ideia muito mal compreendida e representada como caricatura. Até o papa Francisco condenou o ‘gênero como uma ideologia diabólica'”, diz Butler.
“É uma crítica feita pelo Catolicismo de direita que pegou entre quem acredita que o conceito nega as diferenças naturais entre os sexos e ameaça o casamento e a família, bases da heterossexualidade. Se você baseia a sua visão de mundo na Bíblia, então, a ideia de gênero vai ser mesmo ofensiva.”
‘Desmoronamento da sociedade’
Butler esteve no Brasil há dois anos para um seminário sobre teoria queer, quando também houve protestos, ainda que em menor dimensão. Ela acredita que a maior repercussão desta vez é explicada pelo fato de “plataformas de direita estarem mais desenvolvidas”.
A filósofa americana diz que, ao contrário do que a acusam, não busca destruir a identidade humana e a sexualidade. Afirma ter argumentado apenas que devemos pensar sobre “como nossas identidades são organizadas e a linguagem que usamos para expressar quem somos”.
O jornalista e tradutor Bernardo Pires Küster, de 30 anos, se identifica como um dos criadores da petição e diz em uma postagem recente no Facebook, onde tem 38 mil seguidores, que “muitos combatem apenas os efeitos da ideologia de gênero, e não sua principal causa: a filósofa americana Judith Butler”. “Ela vem ao Brasil mais uma vez para promover sua agenda.”
Questionado sobre os argumentos de Butler de que este não é mais o foco de seu trabalho e que ela virá ao país com outro propósito, Küster afirma à BBC Brasil: “O fato de ela não trabalhar mais com esse assunto não impede que continuem a ocorrer hoje os efeitos daquelas falas”.
“O protesto não é contra o que ela vai dizer, mas contra o que ela é. Se existe um problema de gênero no Brasil atualmente, é por causa dela. Ela própria diz que não se pode impedir o exercício da liberdade, e é isso que fazemos ao protestar. É parte do jogo democrático”, afirma.
“Ela não chama seus conceitos de ideologia, é claro, assim como Marx não chamava suas ideias assim, mas é o que ela faz, cria um vestido de ideias que recobrem suas estratégias e intenções políticas na busca por quebrar as funções sociais das pessoas e, assim, levar à dissolução da família e ao desmoronamento da sociedade. Não sou contra os LGBTs, eles são pessoas como quaisquer outras, são gente. Sou contra esse projeto político.”
‘Questão de vida ou morte’
A filósofa afirma que, na sociedade atual, as pessoas têm seu gênero designado ao nascer de acordo com seu sexo biológico e que isso determina a forma como são tratadas na sociedade ao longo da vida.
“Então, meninas acham que não podem progredir na ciência e meninos, que não podem ter profissões predominantemente femininas. Isso é justo? E há pessoas que crescem sem se identificar com o gênero designado, não conseguem seguir as normas impostas. Querem mudar de sexo ou encontrar um novo vocabulário para quem são para evitar sofrimento. A sociedade pode impedi-las?”, questiona a americana.
Em entrevista recente à revista Cult, Butler explicou não ser partidária de experiências que anulam por completo o gênero de uma pessoa, porque “muitas pessoas gostam de ter gênero, e que muitas pessoas trans buscam assegurar o gênero que são – isso significa que nem todo mundo quer transcender o gênero como categoria”. “Eu tampouco gostaria de transcender isso”, disse à publicação.
À BBC Brasil, ela esclareceu: “Claro que há aspectos nossos que são sólidos, mas também é verdade que, dependendo da forma como somos criados, da cultura em que vivemos, diferentes possibilidades de desejo emergem em nós. Ser humano é viver na interseção entre biologia e cultura”.
A filósofa afirma que a meta de seu trabalho é criar uma sociedade “mais harmônica” ao promover a aceitação da diversidade e combater a misoginia, o racismo e a violência contra mulheres e transexuais.
“Muitos não querem flexibilizar as categorias de gênero, mas, para outros, é uma questão de vida ou morte”, afirma Butler.
“Assim, mulheres percebem que podem fazer mais, homens podem se expressar mais, o amor gay e lésbico torna-se legítimo, as pessoas queer se veem como parte do mundo. O gênero abre para elas a possibilidade de respirar, viver, pertencer. É um espaço de compaixão para a luta que enfrentam.”
Fonte: BBC Brasil