Raquel Pellizzetti

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ANJOS DA “HELP”

Os dez anjos da minha Help
me lançam sorriso torto,
meio assim, de amor sem gosto,
desgosto no rosto exposto.

Os dez anjos da minha Help
me espiam com olho turvo,
meio assim, de grito mudo,
miúdo olhar (ponti)agudo.

Os dez anjos da minha Help
me alçam mãos (vaga)rosas,
meio assim, talvez medrosas
de eu sabê-las dolorosas.

Os dez anjos da minha Help
me miram todos os dias,
meio assim, também vadia,
na noite fria e vazia.

Os dez anjos da minha Help
me (de)têm por bem amada,
que, meio assim, desgastadas,
estão semi-mortas… mais nada.

ANTIGA

Te escrevo do modo antigo de dizer das coisas
e te penso do jeito que ninguém se lembra.
É que restei parada lá bem no começo,
quando ainda sonhava com anjos e lendas.

Te escrevo em bloco de linhas bem retas,
que tenho medo de minhas frases tortas.
Esqueci do espelho e dos tempos idos
e te espio, quieta, por frestas de portas.

Te escrevo a lápis pra corrigir letrinhas
e pinço termos num velho dicionário.
Cresci de altura, mas, ainda menina,
te olho folhinhas do meu calendário.

Te escrevo palavras que ninguém mais usa,
que ainda me vêm do odor das flores
do meu jardim bem vivo na lembrança,
onde te tinha mulher de meus amores.

E te escrevendo, assim, meio sem jeito,
sei que já sabes que me vim ser tua,
que te esperei, ainda no meu tempo,
andando na trilha que me fez a lua.

A ESMO

Acordei hoje como o céu borrado.
Nem clareou a minha luz diária:
tal como eu, ela também foi triste:
via-me ópera sem nenhuma ária.

Bato a porta em sensação de fuga.
Rasgo betume, olvido calçadas.
Ando a esmo, em pensamentos ocos,
correndo milhas que acabam em nada.

As trilhas fundas que (re)piso aqui
são chão rachado, cerrado árido
ou, de Dédalo, o tal labirinto…
“Como saber?!”, diz meu reflexo pálido.

Onde me vou eu, tonta e dispersa,
se, tempos idos, tinhas escapado?
Que dentre letras da tela vazia,
nós nos perdemos… tinha te avisado!

A FORÇA, INVENTO

Quisera espaço pra espalhar minhas letrinhas
e o silêncio, bem quieto, dos meus mortos,
onde só se ouvisse a chaleira e brisa leve
além do macio da caneta, em traços tortos.

Quisera ler no papel de árvore caída
uma história que me surgisse não de agora,
mas uma outra que ficou no diário antigo
e me falava de sonhos alegres de outrora.

Eu vejo o tempo dos homens me engolindo
e me traçando, no rosto, trilhas fundas,
quando minh’alma, incólume àquele tempo,
cria, do afeto, as medidas mais profundas.

Daí me curvo mais sobre meus blocos
e finjo olvidar os barulhos dos meus vivos,
que só assim posso fluir meus sonhos todos
mesmo sabendo a maior parte já perdido.

CAVALEIRO

Percorrendo infinitas trilhas,
sobre cavalos dóceis e bravios,
a lugar algum chegou que não de passagem.
A cada parada/pausa,
mal banhado, sedento e esperançoso,
via logo cedo que nada mudara.

Eram os mesmos, em todos os pontos,
os olhos que o espiavam,
os ouvidos que o ouviam (ouviam?)
e as bocas que lhe falavam
tornado novamente cavaleiro,
alterava-se-lhe tão somente a cor do bicho que o levava
e sempre, sempre, alguma esperança para gastar.

Talvez noutra parada… quem sabe?!
Caminhou solitário e alerta
por campos, riachos, estradas,
mares, matas, lagos e cidades.
Cresceram-lhe cabelos, barba e caminho andado.

Da solidão de tanto andar,
sobreveio-lhe o hábito do silêncio
e a cada parada menos palavras encontrava prá dizer.
Olhava e com o olhar dizia.
Ninguém (ou)via.

E lá tornava ele à montaria,
estrada/vida afora,
em busca do pouso certo que de incerto tudo tinha.
Cecília lhe recitaria “Destino”,
“pastor de nuvens” que ele parecia…
mas ela já morrera há muito tempo
e dele nada sabia.

Cavaleiro de conto de fadas diriam alguns,
atrás talvez de um castelo e uma princesa,
ou, quem sabe, apenas um rebanho prá tocar…
Mas ele desconhecia porque tanto cavalgava
e o que o movia.

Se fugia ou perseguia.
Se era caçador ou caça.

Cavalgou incessantemente o homem
até um ponto de uma certa trilha.

Apeou.

Olhou o céu que sempre o acompanhara… Lindo!

Deitou-se. A árvore era frondosa…

Ali, naquele lugar, findava sua busca
– porquê? – ele também não sabia…

Nunca mais cavalgou o homem por caminhos vários
desta bela e vasta terra.

Deixara de procurar…Resolvera apenas se deixar ser e sonhar.

BICHO SOLTO

Andando assim, pela vida, feito bicho;
meio sem rumo… visionário não tem nicho,
eu saboreio muito mais de sóis e luas
do que as gentes no ruído dessas ruas.

Eu piso firme sobre a água de oceanos
e vôo livre sem saber de desenganos;
trago comigo pergaminhos de esperança
que tenho escritos na alma desde criança.

Falo com nuvens e pássaros às dezenas,
contando causos de aprendiz de vida plena.
Meu universo de sonhos e encantamento
enche de espanto os algozes do cimento.

Vou por terra, ar e mar de água mansa,
sem paradeiro, que sonhador nunca descansa.
Sou tudo e nada… marca d’água, sou profundo.
Estou em mim, no outro alheio… olho do mundo.