Você perguntou, nós respondemos: a criminalização das drogas fortalece as facções?

A BBC Brasil perguntou a seus leitores quais dúvidas eles tinham sobre a crise no sistema penitenciário. As melhores dúvidas foram colocadas em votação e a questão vencedora foi a do leitor Fábio Neves, que perguntou se a descriminalização das drogas enfraqueceria as facções e quais seriam os efeitos do julgamento sobre porte de drogas para consumo próprio.

O tema voltou à tona desde que a facção FDN (Família do Norte) executou, nos primeiros dos dias do ano, 56 detentos que ocupavam celas destinadas a membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM).

Nas duas semanas seguintes, mais oito presos foram mortos em outros dois presídios em Manaus, outros 33 em uma penitenciária em Boa Vista (RR) e mais 26 em uma prisão na grande Natal (RN). Tudo com violência extrema – incluindo decapitações, esquartejamentos e carbonizações -, como fazem os cartéis que traficam drogas pela América Latina.

Ainda há muito debate sobre a potencial correlação entre a repressão às drogas e a força das facções: especialistas acreditam que a atual política de repressão é determinante para o fortalecimento dos grupos criminosos devido a seus efeitos colaterais – o encarceramento em massa e a superpopulação nos presídios.

Promotores e procuradores, porém, não concordam.

“Mais do que contribuir, ele (o encarceramento) é decisivo”, disse a socióloga Camila Nunes Dias, professora da UFABC (Universidade Federal do ABC) e autora de uma tese de doutorado sobre o tema. “Se a gente observar São Paulo, o PCC surge em 1993, se expande, ganha força a partir de 1994, 1995. Se observar as taxas de encarceramento do Estado, vai perceber que é um momento de forte elevação”, argumentou.

Nessa linha, pesquisadores culpam duas leis: a Lei dos Crimes Hediondos, de 1990, e a Lei das Drogas, de 2006.

Já para o procurador de Justiça Criminal Márcio Sérgio Christino, que atua em São Paulo e escreveu um livro sobre PCC, não existe correlação entre superlotação e facções nos presídios.

“O envolvimento das facções guarda uma relação direta com a superpopulação carcerária? A resposta é que não”, disse, antes de afirmar que os grupos envolvidos nas matanças recentes no Norte e no Nordeste não fizeram nenhuma reivindicação relacionada à situação dos presos.

“Ninguém protestou contra más condições carcerárias, contra falta de cumprimento de pena, contra a violência, contra tortura”, afirmou.

“Uma facção às vezes vai, entra no território da outra, mata quem pode e depois retorna para o seu ‘território’, para o seu pavilhão. Eles nem ficam, eles nem ocupam a área daqueles quem eles mataram. Por quê? Porque eram missões de morte, eram execuções, eram ações que visavam, antes de qualquer benefício próprio, exterminar a facção adversária”, argumentou.

Efeitos das leis

A Lei dos Crimes Hediondos – que já sofreu alterações e teve pontos considerados inconstitucionais pelo STF (Supremo Tribunal Federal) – inicialmente proibiu a progressão de regime, a anistia e o indulto para quem havia cometido um crime considerado muito grave, entre eles o tráfico de drogas. Aumentou, assim, o tempo que algumas pessoas ficam presas.

Um estudo de 2005 do Ilanud (Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente) concluiu que a lei aumentou o número de presos, além de fazer com que os presos por crimes considerados hediondos representassem uma fatia maior entre os detidos.

“Se não podemos creditar exclusivamente à Lei a superpopulação prisional do Estado (de São Paulo), podemos relacioná-la a outros mecanismos informados pelo mesmo princípio que a norteia: o endurecimento no regime de cumprimento das penas”, diz o estudo.
Os pesquisadores também compararam taxas de crescimento de crimes hediondos em São Paulo e no Rio de Janeiro com suas projeções anteriores à lei e concluíram que ela não surtiu o efeito desejado na inibição da prática criminosa.

A Lei das Drogas também é alvo de críticas de especialistas, mas por outro motivo: não indica critérios objetivos para distinguir traficantes de usuários. Para sociólogos, isso faz com que muitas pessoas que portam drogas para consumo próprio – sujeitas apenas a medidas educativas, prestação de serviços à comunidade ou advertências – sejam julgadas e condenadas como traficantes.

Em 2006, quando a lei entrou em vigor, a taxa de encarceramento era de 214,8 presos para cada cem mil habitantes e 401,2 mil pessoas estavam presas. Em dezembro de 2014, essa taxa chegou a 306,22 e a população de presos alcançou 622,2 mil pessoas, segundo números divulgados pelo Ministério da Justiça.
De lá para cá, o tráfico de drogas passou a ser o principal motivo para prisão: 28% da população carcerária respondia ou foi condenada por tráfico ou associação para o tráfico, segundo o Ministério da Justiça. Em 2006, eram 31,5 mil presos por tráfico, menos de 10% do total da época.

Deficit

Tudo isso leva a um dos maiores problemas do sistema carcerário: no final de 2014, o Brasil tinha 167 presos para cada 100 vagas. O deficit de vagas era de 250,3 mil.

“Na medida em que nós temos a política de drogas que provoca um aumento da população carcerária, uma situação de Estado incapaz de digerir essa população, as facções se fortalecem dentro do espaço prisional porque elas é que vão assumir a gestão dessas unidades”, argumentou Nunes Dias.

“Quanto mais presos, quanto mais caótica a situação, quanto mais superlotação, ou seja, quanto mais se encarcera, mais se fortalece esses grupos”, concluiu.

Para a professora, o Brasil tentou acompanhar a política de encarceramento em massa encabeçada pelos Estados Unidos sem ter o mesmo nível de investimento nos presídios. Como resultado, as facções brasileiras têm, em comparação com as gangues que habitam as prisões americanas, maior capacidade de articulação e posição clara de confronto com o Estado.

Christino concorda que são as facções que dominam a gestão das unidades prisionais.

“Dentro do presídio, o Estado não controla mais. Então é o preso que diz o que vai acontecer, controla quem entra, controla quem sai, o que é feito, se entra droga, se entra comida, se entra gente – o preso que está controlando. Quando isso acontece e o Estado perde controle do que está lá dentro, aí você tem o ápice da facção, que passa a ser quase uma parceira na gerência do sistema prisional.”

Diferentemente da cientista social, o procurador diz que isso ocorre porque o Estado abdicou do controle e não porque o número de presos tornou a situação insustentável.

Desde 1993

Em sua tese de doutorado, Nunes Dias traçou a cronologia de expansão do PCC, que se deu com transferências de presos, além de fugas e resgates. A criação do grupo se deu em 1993 no anexo da Casa de Custódia de Taubaté (SP), três anos após a Lei dos Crimes Hediondos entrar em vigor.

Christino, que também pesquisou a história da facção paulista, contou: “As rebeliões têm uma tradição em São Paulo que vem desde 1993, que foi a data que o PCC – mais precisamente em 31 de agosto de 1993 -, que eles se apresentaram como sendo do Primeiro Comando da Capital em um homicídio em que as lideranças deles mataram duas outras lideranças de um presídio de Taubaté”.

Nunes Dias incluiu em sua tese o relato de um dos oito fundadores do PCC, José Márcio Felício, o Geleião, sobre o caso. Ele disse que os dois assassinados foram feitos via espancamento, resultado de uma briga em partida de futebol. Depois, os envolvidos selaram um pacto para tentar evitar punição da administração prisional: “Quem ofender um de nós ofenderá a todos – somos o time do PCC, os fundadores do Primeiro Comando da Capital”.
Para pressionar as autoridades, eles eles ameaçaram instituir uma roleta russa entre os presos, mas foram transferidos de presídios.

Fonte: BBC Brasil

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