Menina e o Vento

Menina e o Vento

Menina e o Vento

Não me perguntem porque terei abandonado a rua que sempre pisava e me entranhei nos terrenos baldios cheios de latas e poças, sacos de plástico em tiras como bandeiras de nações despedaçadas.

Andava a custo, por causa dos obstáculos e dos cheiros nauseabundos.

Impelia-me uma espécie de ânsia que dentro do peito gritava, uma voz que ciciava ao meu ouvido.

– Anda! Vem cavalgar comigo! – Voz nítida, concreta, próxima, feita de sons cujas notas soavam fora e dentro da minha cabeça.

Olhei em redor, mas nada vi de estranho e no horizonte, ninguém!

– Anda! Vem cavalgar comigo!

Como estava sozinha, arrisquei:

– Mas quem és tu?! E onde estás?

– Sou o Vento, bradou ele numa voz muito alta.

Dei um pulo:

– Ora essa! O Vento chia, não fala, repliquei, mas sem convicção pois nunca tinha falado com o vento, apenas sabia do som que fazia passando e era inusitado que respondesse, que dialogasse… fosse em que língua fosse.

– O Vento tem muitas vozes, disse-me, como se me adivinhasse… na verdade a sua voz soava dentro e fora de mim, em uníssono.

– Dizem que o Vento canta nas folhas, nos pingos de água… atrevi-me a dizer.

– Pois canta! E assobia nos caules de erva.

– Está bem, mas nunca se disse que o Vento falasse!

– No entanto estás a falar comigo, disse ele rindo.

Eu também ri, porque o riso contagia mesmo se não sabemos do que rimos.

Nós ríamos sabendo que era de nós mesmos e de nos estarmos descobrindo.

– Porque me convidaste a cavalgar contigo se não te vejo, perguntei?

De repente as minhas saias rodopiaram, o meu cabelo levantou-se e vi que o chão ia ficando cada vez mais longe.

– Sentes-me, apesar de não me veres?

– Sinto, respondi eu incrédula, mas sem medo nenhum como se me pegassem ao colo.

À volta, tudo sereno. Parecia que o vento resolvera marcar encontro só comigo.

– E porque me levantaste do chão?

– Porque te convidei a viajar comigo e não me acreditaste!

– Como havia de acreditar-te?! Não te vejo, não tens dorso, já foi difícil perceber que falavas quanto mais que me convidavas para um passeio!

– Conheces-me desde sempre e ousas dizer que sou mentiroso?! Muitas vezes te convidei para passeios mas tu parecias nem dar conta, só olhavas o lugar onde punhas os pés!

– E agora vejo o que pisava, confessei envergonhada… mas onde me levas?

– Aonde sonhares ir!

– Como hei-de sonhar, se não durmo?!

– Não é preciso dormir para sonhar! Os melhores sonhos são os da vigília, pois trazem aos teus olhos o que mais anseias mas não te atrevias a olhar. Os sonhos estão sempre contigo.

Fiquei um pouco a pensar nisto. Senti um novelo de todas as cores desenrolar-se diante de mim e disse-lhe:

– São muitos sonhos e não sei qual escolha!

– Escuta-os, também têm voz!

– Hummm… pois será, mas diz-me: vou vaguear por aí como bruxa sem vassoura?

Ele riu muito alto

– És mesmo distraída! Porque não te aconchegas nas minhas asas e passaremos por onde quisermos, pois se me apetece sou brisa; se me aborreço, tempestade e se os meus companheiros me desafiam quando brincamos nas escadarias do céu, desato a correr e sou furacão…

– Isso é muito mau porque partes tudo, já viste?!

– Vejo depois, quando olho para trás… mas como querias que me divertisse se desde antes do tempo rodopio à volta da Terra, e cada vez me dão menos importância?!

– E que acontecerá quando chegar o fim deste meu sonho?

– Acharás outro e depois outro e outro…. quando te acostumares a viajar comigo, verás que não existe limite algum, pois o teu pensamento não tem princípio nem fim… como eu não tenho!

– Já sei aonde quero ir…. mas é muito longe, disse eu baixinho.

– Não existe longe para o vento, que te disse eu?!

E o vento ia ficar zangado mas olhou-me por cima do ombro, viu-me os olhos embaciados e eu já agarrada com confiança nas suas penas transparentes, determinada…

Acalmando, perguntou

– Desculpa, sou impetuoso… onde queres ir primeiro?

– …. a um lugar que existiu há muito, muito tempo…

– O Vento não conhece o tempo, gritou!

– Ao colo de minha mãe!

 
Maria Petronilho
Lisboa, 9/9/2004

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