A lápide
Você vem arrastando os pés na relva, sem muita vontade, sem muita coragem. Mas precisa desse ritual – seu coração o exige – muito mais do que você é capaz de admitir.
Posso vê-lo de meu escaninho no arvoredo. Disfarçada estou nas silhuetas de negros ciprestes. Você se ajoelha diante do túmulo mil vezes renegado. A brisa lhe alvoroça os cabelos claros como os meus dedos teriam feito.
– Olá, meu amor.
Ah, sim, diga essas palavras que eu esperei tanto para…
– Sei que não tenho vindo vê-la. Estive no seu… funeral… e nada mais. Não ousava…
Sua voz se torna um soluço amargo, e você se deixa prostrar diante da lápide, apoiando sua cabeça a ela, envolvendo-a com seus braços, como se a força da sua vontade pudesse dar vida à pedra áspera. Não, não é daí que virá o calor de que você…
– Passei cada dia desde que você partiu aguardando seu retorno, acreditando a cada manhã que eu iria despertar e me virar e encontrá-la ao meu lado, seus cabelos espalhados no travesseiro e suas mãos… suas mãos…
Sim, minhas mãos nos seus lábios. Lábios doidos por tabaco do sul e narguilé do leste, que posso enxergar, mas cujas palavras doloridas parecem-me distantes como sonhos de infância. O que foi feito daquela parte de mim que sabia apreciar a curva sutil de suas costelas sob a pele sem lençóis, o quadril sem querer sinuoso para meus olhos e a boca cheirando a fumo e cevada?
– Todos aqueles festins, aqueles falsos amigos, aquela gente traiçoeira à nossa volta, os nossos vícios… Era tão difícil não enlouquecer. Eu nunca lhe disse o quanto era importante para mim, querida. Nunca lhe confessei que seu rosto junto ao meu na noite era a única coisa capaz de preservar minha sanidade.
As lágrimas brotam por entre suas pálpebras muito apertadas. Por que veio a esta hora, amor, quando é crepúsculo, e o céu está de luto, e eu estou alerta, tendo idéias com as nuvens cor de sangue? Qual é de fato seu propósito… e qual é o meu?
Noto que você adormeceu, rosto colado ao epitáfio, feito um indigente. É em seus sonhos que os homens vêem aquilo por que mais anelam. A visita derradeira dos amados que partiram.
É agora. Eu me aproximo. Mal ouço meus próprios passos. Sou uma sombra ou menos do que isso. Estou de cócoras, quase roço sua orelha com minha boca gretada, uma ferida na cera branca do meu rosto. Só nesta proximidade me é possível ouvir seu murmúrio adormecido.
– Não vá embora. Não de novo.
Eu não irei. Nunca fui. Sempre estive aqui à sua espera. Eles arranjaram tudo para que ninguém nunca venha a saber que esse túmulo está vazio. Eles têm seus truques… Não encontraram problemas para tomar meu ataúde à mãe-terra e cobrir novamente a vala vazia. Trabalham sempre à noite, velozes, silenciosos. Ninguém viu; ninguém verá. Não estou bem certa… da razão pela qual me escolheram. Eles têm seus pretextos. Talvez minha arte, ah, querido, você devia vê-los recitando meus versos com lágrimas nos olhos. Poetas, escultores, músicos e pintores, todos eles donos de talentos divinos. Os antigos já diziam: a vida é breve, mas a arte não morre. Tampouco os artistas. É pela arte que o ser humano, insignificante para o Universo, faz seu nome ecoar no mundo, tornando-se imortal para sua própria raça.
Você deve ter sentido meu hálito junto ao seu pescoço. Gelado. Pois percebo que desperta, lento, desnorteado, e volta para mim seus grandes olhos castanhos, que não têm um laivo de verde nem uma esmola de mel, mas nunca chegaram a ser pretos como os meus.
Você nem sabe o que dizer.
– Estou perdido… Enlouqueci…
– Não, meu amor…
Você, porém, não me escuta, não me vê. Ergue-se, brusco. Ganha distância. Está assustado? Deve ser por causa das minhas longas saias roídas pelas traças ou os torrões de terra que adornam meus cabelos sem toucado ou o azul de meus lábios antes róseos. Creio que não sou mais tão bela quanto antes.
Ainda tento fazer-me compreender:
– Eu fui reconhecida, e meu mérito, premiado. Fui abençoada, meu amado, com a imortalidade. Eles me fizeram maior do que a morte. E eu retornei para você, apenas por você.
Você não entende. É cego, é surdo à verdade. Conheço o terror em seu olhar. Está recuando, repelindo-me, odiando-me!
– Você me queria quando não podia ter-me. Eu cá estou… e você me rejeita?
– Afaste-se de mim!
Você corre com todas as suas forças. É apenas um homem. Sinto o odor do suor frio com lágrimas espalhando-se pelo vento. Você não me quer. Não como sou agora. Eu, contudo, ainda o quero; agora, mais do que nunca.
Decido, alcanço-o, minha mão abafa seus gritos com força inaudita, por que tem de gritar? Eu não me julgara assim poderosa. Sou uma poeta que chora sua sina, uma fera que subjuga sua presa e um fantasma que caminha para longe de seu fim.
– Você não sabe, não aceita, mas eu ainda o amo, amo-o além da vida e além da morte. Vou mostrar-lhe a grandeza deste amor.
Você está em meus braços como deve, coberto por meus beijos como precisa, amado por mim como quero. Consumido em minha fome por seu corpo. Há segredos maiores do que a frágil vida, meu adorado, e mais soberanos do que a morte. O fim não conclui, liberta. E irá libertá-lo, como a mim.
Camila Fernandes