O jogo da meia-noite
Meia-noite. O jogo acontecia quando eles voltavam sóbrios, ansiosos por serem só dois amantes sob um dossel, sem multidão.
Diante da penteadeira ela limpava o rouge, o rímel, a pinta artificial na bochecha esquerda que cobria a pinta real cor de canela. Ele, na cama, esperava sob os lençóis.
Vinha limpa e indecente, meias de liga, espartilho negro, nem parecia uma veste escravocrata do corpo – era a desenvoltura de gata no cio que o desmentia. Tinha na mão a pluma de avestruz que as vedetes usam no chapéu e ciciava:
– Você está do lado errado da cama. Vai sair ou tenho de o forçar?
O lado esquerdo era dela, era onde dormia. Por isso ele estendia ali o corpo nu. Para ser docemente coagido a mudar-se. Dizia não meneando a cabeça, sorriso de sátiro à espreita da ninfa. Primeiro eram os beijos. Depois a pluma, cócegas que o faziam convulsionar mas não fugir, então os tapas nas nádegas e por fim os arranhões, amável rastro das unhas de meretriz e atriz que ela era. Atriz em vários palcos, puta dele só. A noite era longa: corridas pelo apartamento, absinto francês, muita sujeira para a camareira no dia seguinte.
Lola, Lola tão tola, despida, girou com a garrafa até a varanda numa dança de fazer corar avós para atiçar seu homem, e ela foi, passou as cortinas, ele a segui-la com os olhos pela sacada. E a balaustrada tão baixa.
Apartamento grande, herança de pai, alegria de filho notívago que desmaiava a cada madrugada, trazido do teatro para casa por amigos menos ébrios. Que noites, que dramas, comédias, canções. E Lola, que foi para sua cama como um raio e sacudiu seu mundo, mulher, terremoto, furacão que ficou na sua mente desde então menos equilibrada e mais feliz.
A cama com dossel, jacarandá esculpido e envernizado, leito imenso, bom para a orgia. Alcova ampla, portas-balcão levando à sacada onde a juventude admirava um horizonte letárgico ficar mais vermelho toda tarde, calmaria interrompida nunca por arranha-céus, mas ocasionalmente pelo som distante dos bondes dos trabalhadores. Que bom ser jovem, não trabalhar, fingir que estuda e ter varanda. E ter mulher constante, mas sempre inédita.
Foi culpa do absinto. Da balaustrada baixa. Ou de Lola cansada do jogo. O bailado a levou longe demais. Além da sacada, seu corpo beijou os paralelepípedos. A Fada Verde escapou do vidro, lambeu a calçada. Seus olhos ficaram pasmados no último instante. Seu corpo lá embaixo. Dentre os fios pretos do cabelo, um vermelho e grosso que crescia pela rua.
E agora, como fica o quarto sem seus pés descalços no soalho? O corredor é mudo sem sua voz afinada cantando impropérios.
Como fica a vida se o relógio anuncia a meia-noite e ela não vem?
Cômodos vazios.
Ele está na cama, do lado esquerdo. O perfume dela ficou em tudo. No divã, duas putas largadas. Cheias de formas, seios, quadris, não conseguem alegrar a casa que Lola, sozinha, enchia de vida. Elas desmaiam, dormem. Ele, não. Seu corpo mal-saciado arde em vício, compulsão de amor endemoninhado, convulsão de narcóticos comprados de um mau boticário. De que vale ser sóbrio? Vale-lhe mais sonhar asneiras de apaixonado. É meia-noite. Hora do jogo. Lola, tão tola, tão depressa…
Sua voz sai como a de um velho:
– Querida, foi tão cedo.
Rola sobre os lençóis. Mas pára.
– Foi mesmo, amor.
O rosto dela voltado para o seu. Na cama. No lado direito. No espartilho negro. Ela é bela. Ela é profundamente…
– …pálida. – Ele a toca no rosto; é real. – Lola – repete infantil, prendendo o nome na língua embriagada na ilusão de prender também a amante ao seu lado.
– Você está do lado errado da cama. Vai sair ou tenho de o forçar?
Mas a mulher não o beija nem o afaga. Não; ela se levanta, meias pretas de liga, botinas de salto. Não dá valor às perdidas no divã. Quer as cortinas que esvoaçam. A varanda.
– Venha! Venha dançar!
E ele vai. Para além da balaustrada, onde os corpos que voam beijam as pedras da rua.
Camila Fernandes