Nervos
Súbito uma revolução no céu. Meus carneirinhos foram varridos com fúria e covardia. Contemplava essa transformação quando mamãe chegou e perguntou-me: O que há, meu querido? Nada, estava assistindo à performance das nuvens. Respondi. Esta bela performance está a nos dizer que mais tarde haverá chuva em abundância. Disse ela. A chuva é boa, mãe. Respondi.
O céu é tão imenso e acham de varrer os meus carneirinhos. Esse deus gosta mesmo é de contrariar mortais como eu. Um simples zás e lá se vão os animaizinhos…
Mamãe entregou-me os livros que eu tinha encomendado. Eu mesmo preparei uma lista pois se deixo por sua conta ela banca a censora. Acha que algumas leituras não fazem bem aos meus nervos. Dona Mercedes, dona Mercedes! Ela sim, tem nervos de aço. Quase. Se eu tivesse deixado os títulos ao seu encargo eu não teria o Matsuo Bashô agora em minhas mãos. Não é mesmo, mamãe? digo-lhe e ela sorri. Bashô não faz mal aos nervos de ninguém, Dona Mercedes sabia disso, ela tinha me oferecido, ela mesma, esse livro e agora vinha com essa conversa de nervos. Está pirada, dona Mercedes? Ela ri, me abraça e me assegura que não é bem assim, que essa idéia de censura não tinha partido dela. Ah! Eu devia ter adivinhado, e falando do diabo, lá vem ele caminhando lentamente. Seguro e altivo. Senhor Sérgio Novaes Carvalho Khoury, meu pai. Muito orgulhoso do Khoury que eu também carrego, claro, mas sem a mesma empáfia. Tento esconder o livro sob o banco mas o faço como um criminoso e tão atrapalhadamente que só consigo chamar mais a atenção para o objeto. Como vai, filho? Pergunta ele. Bem, e o senhor? Respondo. Mercedes, o que voce trouxe para ele? Seguiu a lista? Nós conversamos sobre isso, o médico concordou comigo, lembra-se?
Senhor Khoury não se conformava, o seu único varão ali, rodeado de alienados. Quando os clientes perguntavam pelo seu filho respondia que ele estava na Europa, participando de um intercâmbio cultural. E mamãe abaixava os olhos.
Mamãe, você trouxe o caderno que pedi? Perguntei-lhe. Aqui está, um belo caderno, lápis, canetas….Respondeu ela enquanto tirava tudo da bolsa. Para quê isso? Perguntou o velho Sérgio. Vou escrever sobre os meus companheiros de insanidade. Respondi. Que palhaçada é essa? Perguntou ele olhando para mamãe. Palhaçada nenhuma, ele disse aos outros que era escritor e agora eles querem que ele registre as suas histórias. Explicou muito naturalmente mamãe. E desde quando ele é escritor? Perguntou, enfezado, papai. Desde quando ele decidiu assim. Respondeu, sem mudar o tom, Dona Mercedes. Escute, a culpa é toda sua, eu não sei se já te disse isso com todas as letras, mas a culpa é sua. Disse-lhe papai. Sim, você já me disse isso com todas as letras…
E papai vai embora pisando duro, como sempre.
Quando mamãe se vai, inicio o registro. Zoroastro será o primeiro porque o seu nome começa com Z. Zoroastro que é alto, forte, meio banguela, senta-se no tamborete na minha frente, ergue a cabeça e dita: Era uma vez, uma linda princesa, eu.
Leila S. Terlinchamp