O Cururu
– Vó, vó! O vovô está chegando – diz o décimo segundo neto daquela família.
– Como é que ele está? – pergunta a anciã.
– Naquela base: ele vem cantando… A senhora não está ouvindo?
– Ora, claro que não! Todos vocês, desta casa, sabem muito bem que estou ficando surda, moca. De qualquer forma, qual a música que esse velho cara larga está cantando?
– Aquela, vó. Deve ser dos tempos em que ele fazia serenata pra senhora. Parece-me que é do…, é do…
– Alvarenga e Ranchinho. Já sei: “Não quero outra vida pescando no Rio de Jereré
Lá tem peixe bom…” – canta a macróbia criatura.
– É essa mesma, vó!
– Ixe, cruiz credo! É sinal de que o seu avô está pra lá de Bagdá! Deve estar mais bêbado do que uma cabaça!
Daí a pouco adentra aquele lar – humilde, mas sempre fresquinho – o nosso personagem. Vem se arrastando, acometido tanto pela gota, tanto pela suposta cachaça ingerida. Situação agravada, também, pela idade avançada. Mistura essa pra lá de perigosa: tempo e cachaça. O pior de tudo isso: em doses altíssimas!
Quem visse o Vovô naquele estado jamais acreditaria que fora ele em tempos idos um atleta excepcional. Fora ele recordista em salto à distância: 22 metros! Recorde esse, até hoje, jamais superado. Melhor dizendo, sequer ameaçado, pois a segunda marca atingira distantes 18.5 metros. Portanto, o que antes fora cesária glória transformara-se em nera derrota.
Mansa e, agora, silenciosamente, Vovô abre a porta da casa.
– Graças às minhas pernas, cheguei! Diz arquejante, resfatelando-se no sofá.
Tomando fôlego, Vovô diz com voz pastosa e aflita:
– Ai que dor! Dessa feita, eu não escapo: vou morrer mesmo!
Diante de tais lamúrias, Vovó retruca:
– Dor onde, meu véio?
– Nas pernas, nas pernas! Nas juntas. Tudo, tudo está doendo! Elas estão mais duras do que os chifres de Satanás!
– Te esconjuro, pagão, ateu, herege! Deus te perdoe por essa sua cachaça. Tem quarenta anos que ouço essa mesma ladainha: “ai, que dor nas pernas. Ai, me acode minha véia, que eu vou morrer”. E daí pra frente… Essa sua lamúria iguala-se a sua cachaça: sem fim! Chega disso! Tenha a santa paciência…
Enraivecida, Vovó acrescenta:
– É isso que dá ficar bebendo cachaça e comendo churrasco todos os sábados com o senhor Vital. A gota e a cirrose vão acabar te matando…
Vovó, embora conhecedora há décadas de todas essas traquinagens alcoólicas do marido, vai à cozinha e esquenta sebo de carneiro e fricciona as pernas – sempre frias – do amado. Enfim, paz e sossego.
Ela, com pesar, constata que sua previsão estava correta: encontrava-se ele, bêbado, bêbado. Triste e enternecida ajeita-o da melhor maneira possível no sofá. Não havia meios para levá-lo para a cama. Seu tamanho e peso eram muito superiores às suas, agora, parcas forças.
Enquanto Vovô roncava, babava e peidava – atitudes muito comuns àqueles que bebem -, Vovó refletia:
“Onde será que eu errei? Será que a cachaça superou todo meu apoio, carinho e amor que durante tantos e tantos anos a ele dediquei, e, ainda, dedico? Será ela – a cachaça – mais forte que o meu amor por ele? Será o raio de um copo maior que o diâmetro de meu coração? Será o amargo líqüido mais doce que meus beijos?”. Enquanto refletia passava a mão, carinhosamente, na cabeça do marido. Observa, com pesar e tristeza, a pele do amado: tão caroquenta quanto a de um legítimo crocodilo africano. Quanta diferença! Antes a sua pele era mais lisa e bela do que os famosos mármores de Carrara. Até a tonalidade – verde-musgo – mudara. Enchera-se de manchas pretas. Para ela, péssimo sinal: seu marido estava mais próximo do fim do que ele próprio poderia imaginar. A vida desregrada, motivada pela cachaça, o estava destruindo, sem dúvida alguma. Para ela – e talvez para ele – sofrimento atroz.
De repente, num delírio alcóolico, Vovô diz:
– Minha véia estou no sal! Perderei o meu melhor amigo, o Vital…
Tal frase, pela surdez acentuada da dedicada esposa, por ela não foi ouvida.
Entretanto, a pouco mais de quinhentos metros dali, todos os sentidos estavam mais aguçados do que nunca. Tratava-se de uma negociação: a venda da fazenda do senhor Vital, que abrigava o casal de batráquios e seus familiares. Vital iria vender a fazenda por várias razões, uma das quais, a falta de incentivo por parte do Governo Federal à agricultura. Justificava-se ele:
– Nós, pequenos agricultores, vivemos de sobejo, de resto. A Carteira Agrícola do Bebê só empresta dinheiro para os latifundiários. A esses, dinheiro e incentivos à vontade. Não precisam nem garantir aquilo que pedem, pois, de antemão, sabem que não vão pagar! É tombo e mais tombo! Mentira? Uma ova! Exemplo escandaloso dessa situação são os usineiros de Alagoas, que devem ao Bebê milhões e milhões de dólares e que, a meu ver, nem sequer foram cobrados. Prosseguia, assim, Vital, a enumerar dezenas e mais dezenas de exemplares falcatruas na área agrícola.
Dizia ele, finalmente, que, só por essas razões, resolvera desfazer-se de suas terras. Terras muito boas e produtivas, por sinal. Assim apregoava Vital junto aos seus vizinhos. Sabedor do interesse de Vital em desfazer-se da fazenda, o senhor Francisco, conhecido nas redondezas por Fofão, a ele apresentou-se como comprador. Fofão tivera notícia de um sapo comedor de churrasco e bebedor de cachaça e por ele muito se interessara. Talvez mais por aquele sapo mundano e pervertido – dependente de álcool e carne – do que pelas terras propriamente ditas.
Vai daqui, vai dali, mas Vital mostrava-se irredutível em sua proposta:
– É tanto por tanto! Porteira fechada e tudo mais. Tudo, tudo, exceto o meu sapo cururu! Esse levo pra Brasília, pra Asa Norte. Ele pode ser um sapo, mas é meu amigo! Goza ele da minha estima, consideração e respeito!
Tal radicalidade fez com que Fofão esfriasse a fervura da negociação.
Pensava Vital: “Como é que eu vou ficar sem o meu fiel e sempre pontual amigo cururu? Por sinal, pontualíssimo! Todos os sábados, impreterivelmente, às dez da manhã, ele já está, junto à churrasqueira, me aguardando. Nós dois que sempre bebemos e comemos juntos? Eu bebendo a minha cerveja. Ele, por uma questão de estilo e nobreza, bebe somente a cobiçada e caríssima cachaça mineira – Havana – de Salinas. O preço e o luxo pouco importam, o que importa mesmo é a sua companhia! Agradabilíssima, sempre. Gasto esse dinheiro com o maior prazer do mundo!”. Certo é que Vital e Cururu tinham em comum amizade, bebida, picanha e cupim! Tudo em excesso e sem miséria!
Fofão, a seu turno, medita. Seu interesse – como a ler os pensamentos de Vital – iguala-se ao tamanho de sua gigantesca barba. Sentindo que a negociação não ia lá muito bem, diz:
– Pois bem, senhor Vital, então ficamos assim: “Se chover, não precisa aguar o jardim”. Amanhã pela manhã, passarei aqui para tentarmos abrir a porteira dessa negociação.
Já dentro da caminhonete, em funcionamento – tentando dar uma de João-sem-braço, Fofão diz:
– Aceito até o cururu como brinde!
Ao que Vital, ouvidos sempre aguçados, responde a meia voz:
– Isso nunca!
Toda essa conversação fora ouvida pelo décimo segundo neto de Cururu, que, em questão de minutos, retorna à casa e relata, muito apavorado, à avó:
– Vó, vó! O senhor Vital vai vender a fazenda!
Ao contrário do que poderíamos imaginar, felicíssima ficou a Vovó:
– Graças a Deus, acabaram o churrasco e a cachaçada!
– E eu, também! – diz Cururu, muito triste e ainda sob os inebriantes vapores do álcool.
Manhã seguinte, conforme combinado, vendedor e pretenso comprador se encontram para tentar chegar a um acordo. Embora com uma ressaca infeliz, Cururu acordou cedo. Dois são os tipos de pessoas que sempre levantam cedo, por razões diversas: os loucos de todos os gêneros e os cachaceiros. Os primeiros pela perversa agitação mental, já os segundos pela incontrolável tremedeira. Nada, absolutamente nada, pára em suas mãos. Eles têm o condão de tornar animada qualquer coisa que lhes cai nas mãos, seja lá o que for: xícara, copo, garfo, colher, garfo, faca, caneta, folha de papel e tudo mais que houver. Tremedeira que, somente, encontra sua rasa sepultura – cinco dedos – num bem lavrado copo de qualquer bebida alcóolica.
Prevenido, Cururu aloja o seu sofrido e trêmulo corpanzil atrás de uma moita próxima à varanda da casa grande. A tudo observa muito atentamente. Olhos bem estufados e vermelhos. Vermelhidão alcóolica, somente. Nada mais que isso.
Vital e Fofão conversam. Complicação sem fim. Cururu pôde observar, com grande satisfação, que Vital era realmente seu amigo. O preço da fazenda estava acertado, mas o único ponto controvertido era com relação à sua pessoa. “Sem o cururu, ou, então, nada feito!” – diz Vital, irredutível. Tal discussão arrastou-se por horas e horas. Não agüentando mais tanta confusão, Cururu tirou um cochilo reparador. Acordou com um cheiro bastante conhecido: churrasco!
– Ôba! – diz Cururu, satisfeitíssimo, sabendo que nem mesmo o dinheiro superara a amizade que Vital nutria por ele, e ele, por Vital.
A noite cai. Penduradas na infinita lona – cobrindo todo o Universo – lâmpadas que ninguém, até hoje, conseguiu fabricar, senão imitar muito mal e humanamente. Um conjunto divino de beleza e durabilidade: as estrelas. Completando toda essa beleza o canto rouco e muito feliz de Cururu, que estava com a barriga cheia de carne e a cabeça cheia de Havana – tomando o rumo de casa: “Não quero outra vida pescando no Rio de Jereré…”
Paulo Silveira