O Especialista

O Especialista

A tempestade de fótons despencou sem um aviso, precipitando-se sôbre a Espaçonave, vinha de trás de um aglomerado de estrêlas vermelhas gigantescas. Ôlho mal teve tempo para enviar um aviso de última hora através de

Falante antes que a tempestade os atingisse.

Era a terceira viagem de Falante no espaço profundo e sua primeira tempestade de pressão de luz. Sentiu um calafrio quando a Nave desviou-se violentamente, recebeu todo o impacto da onda frontal virou de cabeça para baixo. Depois o mêdo desapareceu, sendo substituído por uma forte pulsação de excitamento.

“Por que teria mêdo”, perguntou a si mesmo… “não fôra treinado justamente para uma emergência desta ordem?”

Estava conversando com Alimentador quando a tempestade desabou e a conversa foi interrompida bruscamente.

Esperava que Alimentador estivesse bem. Era a primeira viagem no espaço profundo do jovem.

Os filamentos que constituíam a maior parte do corpo de Falante estendiam-se por tôda a Nave. Rapidamente êle os recolheu todos, com exceção dos que o ligavam a Ôlho, Motor e Paredes. Agora o trabalho era exclusivamente dêles.

O restante da Tripulação deveria contar consigo mesmo até que a tempestade passasse.
Ôlho achatara seu corpo em forma de disco contra uma Parede e tinha um órgão de visão do lado de fora da Nave.

Para maior concentração, o restante dos seus órgãos visuais tinha sido retraído, reunido a seu corpo.

Através do órgão visual de Ôlho, Falante observava a tempestade. Traduzia a imagem puramente visual de Ôlho na direção de Motor, que dirigia a Nave ao encontro das ondas. Quase ao mesmo tempo, Falante traduzia a direção em velocidade para as Paredes que se enrijeciam para resistir aos choques.

A coordenação era rápida e segura: Ôlho medindo as ondas, Falante transmitindo as mensagens para Motor e Paredes, Motor dirigindo a Nave de frente ao encontro das ondas, e as Paredes se enrijecendo para enfrentar os choques.

Falante esqueceu todo o mêdo que podia sentir tal a rapidez de operação da equipe. Não tinha tempo para pensar. Enquanto fôsse o sistema de comunicação da Nave, deveria traduzir e expedir suas mensagens com a máxima rapidez, coordenando as informações e dirigindo a ação.

Em questão de minutos a tempestade cessou.
– Bem – disse Falante – vamos ver se houve alguns danos! – Seus filamentos haviam se embaraçado durante a tempestade; êle os desembaraçou e os estendeu ao longo da Nave, ligando os outros em circuito. – Motor?
– Estou bem – respondeu Motor. O fantástico camarada umedecera suas placas durante a tempestade, diminuindo assim as explosões atômicas no seu estômago. Nenhuma tempestade apanharia de surprêsa um astronauta experiente como Motor.
– Paredes.

As Paredes responderam uma por uma, o que levou bastante tempo. Eram quase mil criaturas magras e retangulares, constituindo tôda a superfície da Nave. Naturalmente haviam reforçado sua periferia durante a tempestade, dando resistência à Nave inteira. Uma ou duas, contudo, apresentavam alguns danos severos.

Doutor comunicou que estava perfeitamente bem. Removeu o filamento de Falante da sua cabeça, desligando-se do circuito, e foi atender às Paredes empipocadas. Feito quase todo de mãos, Doutor agarrara-se a um Acumulador durante a tempestade.
– Vamos voar um pouco mais depressa agora! – disse Falante, lembrando que havia ainda o problema de determinar onde se encontravam. Abriu o circuito dos quatro Acumuladores. – Como estão vocês? – perguntou.

Não houve resposta. Os Acumuladores dormiam. Haviam mantido seus receptores abertos durante a tempestade e estavam empanturrados de energia. Falante deu um puxão nos filamentos que os rodeavam, mas os Acumuladores não responderam. – Deixe-me experimentar! – pediu Alimentador. Alimentador passara por um mau bocado antes de plantar seus cilindros de sucção nas Paredes, mas sua “forma” estava intacta. Era o único elemento da tripulação que nunca necessitava dos cuidados do Doutor; seu corpo era capaz de se reparar a si mesmo.

Correu pelo chão sôbre uma dúzia de tentáculos e deu um ponta-pé no Acumulador mais próximo. A grande unidade cônica de energia abriu um ôlho, depois tornou a fechá-lo. Alimentador golpeou-o novamente, sem receber resposta. Rodou por fim a válvula de segurança do Acumulador e retirou o excesso de carga.
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– Pare com isso! – disse o Acumulador.
– Então acorde e responda! – disse Falante.

Os Acumuladores disseram, obviamente, que estavam todos bem, como qualquer idiota podia perceber. Tinham-se agarrado ao piso durante a tempestade.

O restante da inspeção prosseguiu ràpidamente. Pensador estava bem e Ôlho estava deslumbrado com a beleza da tempestade. Ocorrera apenas uma morte.

Impulso estava morto. Sendo bípede, não possuía a estabilidade do restante da Tripulação. A tempestade o surpreendera no meio de um corredor, atirara-o contra uma Parede rígida e partira vários ossos importantes do seu corpo. Estava além das possibilidades clínicas do Doutor.

Todos se mantiveram em silêncio durante algum tempo. Era sempre um acontecimento sério quando um membro da Nave morria. A Nave era uma unidade cooperativa, composta unicamente da Tripulação. A perda de qualquer um dos seus membros era um golpe dirigido aos demais.

Agora, sobretudo, era algo especialmente grave. Vinham de desembarcar um carregamento num pôrto situado a vários milhares de anos-luz do Centro Galático. Não havia maneira de saber onde estavam.

Ôlho arrastou-se até uma Parede e estendeu um órgão visual para fora. As Paredes deixaram-no passar, depois fecharam-se em tôrno dêle. O órgão de Ôlho avançou no espaço, bem distante da Nave, de modo que pudesse avistar a esfera inteira das estrêlas. A visão voltou para Falante que a comunicou a Pensador.

Pensador estava num canto da sala; era uma grande massa informe de protoplasma. No seu interior estavam tôdas as memórias de seus antepassados astronautas. Pensador examinou a visão, comparou-a ràpidamente com outras memorizadas nas suas células e disse: “Não existem planêtas galáticos por perto.”

Falante imediatamente traduziu a informação para os demais. Era isso que temiam.

Ôlho, com auxílio de Pensador, calculou que estavam há vários milhares de anos-luz de sua trajetória, na periferia galáxica.

Todos os membros da Tripulação sabiam o que isso significava. Sem um Impulso que acelerasse a Nave para um múltiplo da velocidade da luz, jamais retornariam ao ponto de partida. A viagem de volta, sem um Impulso, levaria mais tempo do que permitiam suas vidas.
– O que você sugere? – perguntou Falante a Pensador.

Era uma pergunta demasiado vaga para a mente liberal de Pensador. Pediu por isso que a pergunta fôsse refeita.
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– Qual seria nossa melhor linha de ação – perguntou Falante – para voltarmos para um planêta galático?

Pensador precisou de vários minutos para percorrer tôdas as possibilidades memorizadas em suas células. Nesse interim, Doutor havia reparado as Paredes e pedia alguma coisa para comer.
– Daqui a pouco todos nós vamos comer, – anunciou Falante, balançando seus filamentos com nervosismo.

Embora fôsse o segundo membro mais môço da Tripulação – smente Alimentador era mais jovem – a responsabilidade caía quase tôda sôbre êle. Tratava-se ainda de uma situação de emergência; deveria coordenar as informações e dirigir a ação.

Uma das Paredes sugeriu que bebessem e se divertissem. Esta solução irrealista foi vetada imediatamente. Era uma atitude típica das Paredes, no entanto. Eram trabalhadores excelentes e bons companheiros de viagem, mas quanto ao resto criaturas folgazãs. Quando voltassem para seus planêtas de origem, gastariam provàvelmente todo o ordenado numa farra.
– A perda do Impulso impede a Nave de manter velocidades superiores à da luz – começou Pensador sem preâmbulos. – O planêta galático mais próximo está a quatrocentos e cinco anos-luz.

Falante traduziu a informação instantâneamente por seu corpo formado de ondas.
– Duas ações são possíveis. Primeira, a Nave pode dirigir-se para o planêta galático mais próximo mediante a fôrça atômica do Motor. Isso levará aproximadamente duzentos anos. Motor poderá ainda estar vivo nessa altura, embora nenhum dos outros estarão.

Segunda, localizar um planêta primitivo nesta região, onde existam Impulsos latentes. Encontrar um dêles e treiná-lo. E fazê-lo depois impulsionar a Nave de volta para território galático.

Pensador mantinha-se em silêncio, após ter fornecido tôdas as possibilidades que pudera encontrar na memória dos seus antepassados.

Os tripulantes votaram rapidamente e adotaram a segunda alternativa. Não havia outra escolha, aliás. Era a única possibilidade que lhes dava alguma esperança de regressar a seus lares.
– Certo então – disse Falante. – Vamos comer! Penso que todos nós merecemos isso.

O corpo do Impulso morto foi enfiado na bôca do Motor, que o consumiu imediatamente, transformando os átomos em energia. Motor era o único membro da Tripulação que se alimentava de energia atômica.
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Quanto aos outros, Alimentador avançou e se empanturrou com o Acumulador mais próximo. Depois transformou o alimento numa substância adequada a cada um dos outros. Sua química do corpo transformou, alterou e adaptou, produzindo alimentos diferentes para tôda a Tripulação.

Ôlho vivia exclusivamente de uma cadeia complexa de clorofila. Alimentador reproduziu essa substância para êle, depois forneceu a Falante seus hidrocarbonatos, e às Paredes seus compostos de cloro. Para o Doutor sintetizou uma cópia idêntica de um fruto silicato que nascia no planêta nativo do Doutor.

Finalmente a refeição terminou e a Nave voltou ao normal. Os Acumuladores foram postos a um canto, dormindo serenamente de nôvo. Ôlho procurava avistar o mais longe possível, adaptando seu órgão visual a uma poderosa recepção telescópica. Mesmo durante esta emergência, Ôlho não resistiu à tentação de escrever alguns versos. Anunciou que estava trabalhando num nôvo poema narrativo, intitulado Brilho Periférico. Ninguém desejava ouvi-lo, porém, de sorte que Ôlho comunicou-o a Pensador, que memorizava tudo, bom ou mau, certo ou errado.

Motor não dormia nunca. Estando bem alimentado com Impulso, acelerou a Nave várias vêzes à velocidade da luz.
As Paredes discutiam entre si quem ficara mais bêbado durante as últimas férias.

Falante resolveu pôr-se à vontade. Soltou seu contrôle das Paredes e balançou-se no ar, seu pequeno corpo redondo suspenso por uma rêde intrincada de filamentos.

Pensou um instante no Impulso. Estranho. Impulso fôra amigo de todos e estava agora esquecido. E não era por indiferença; era porque a Nave formava uma Unidade. A perda dos membros era sentida, sem dúvida, mas a coisa mais importante para a unidade era prosseguir viagem.

A Nave corria por entre sóis da periferia.

Pensador lançou uma espiral de sondagem, calculando que a probabilidade de encontrarem um planêta de Impulsos era de quatro para um. Uma semana mais tarde encontram um planêta de Paredes primitivas. Perdendo altitude, podiam avistar os sêres retangulares e resistentes aquecendo-se ao sol, arrastando-se sôbre rochas, adelgaçando-se a si mesmas para flutuar na brisa.

Tôdas as Paredes da Nave suspiraram de saudade. Sentiam-se em casa.

Essas Paredes do planêta primitivo não haviam entrado em contato com uma equipe galática e não tinham consciência do seu grande destino: entrar para a grande Cooperação Galática.

Havia uma grande quantidade de mundos mortos na espiral, e mundos demasiado jovens para possuir vida. Encontraram um planêta de Falantes. Os Falantes haviam estendido suas linhas de comunicação por uma extensão de meio continente.

Falante observou-os ansioso, através de Ôlho. Uma onda de autocompaixão assaltou-o. Lembrou-se de casa, da família, dos amigos. Lembrou-se da árvore que iria comprar quando voltasse.

Durante um momento, Falante ficou em dúvida do que estava fazendo ali, parte de uma Nave num ponto distante da Galáxia.

Procurou libertar-se da emoção. Acabariam encontrando um planêta de Impulsos, se procurassem com afinco.
Pelo menos assim esperava.

Passaram por uma longa extensão de mundos áridos enquanto a Nave viajava pela periferia inexplorada. Depois encontraram um planêta repleto de Motores primitivos, nadando num oceano radiativo.
– Este é um território rico – afirmou Alimentador para Falante. – O Centro Galático deveria enviar uma missão de contato aqui.
– Provavelmente fará isso depois que voltarmos – disse Falante.

Eram bons amigos, acima e além da amizade comum da Tripulação. Não era apenas porque os dois eram os membros mais jovens da Tripulação, embora isso também explicasse em parte a amizade. Ambos possuíam as mesmas funções, o que favorecia uma certa relação mútua. Falante traduzia línguas; Alimentador transformava os alimentos. Fora isso, os dois se pareciam. Falante era um núcleo central com filamentos que se irradiavam;

Alimentador era um núcleo central com tentáculos que se irradiavam.

Falante pensou que Alimentador era o segundo indivíduo mais consciente da Nave. Nunca pudera compreender como eram os mecanismos conscientes dos outros.

Mais sóis, mais planêtas! Motor começou a superaquecer. Geralmente, êle era usado apenas para o lançamento e para o pouso, fora algumas manobras complicadas num grupo planetário. Agora estivera funcionando durante semanas, tanto acima quanto abaixo da velocidade da luz. O esfôrço começava a transparecer.

Alimentador, com auxílio do Doutor, improvisou um sistema de resfriamento para Motor. Era grosseiro, mas funcionava. Alimentador recombinou os átomos de nitrogênio, oxigênio e hidrogénio e para resfriarem o sistema.

Doutor diagnosticou um longo repouso para Motor. Disse que o bravo camarada não poderia suportar aquêle esfôrço mais uma semana.

A busca prosseguiu, com a boa disposição da Tripulação diminuindo gradativamente. Todos perceberam que os Impulsos eram raros na Galáxia, comparados com as férteis Paredes e Motores.

As Paredes começavam a apresentar buracos redondos em sua periferia provocados pela poeira interestelar.

Queixavam-se de que necessitariam de um completo tratamento de beleza quando regressassem às suas casas.

Falante tranqúilizou-as dizendo que a companhia arcaria com as despesas.

Até mesmo Ôlho sofria de inflamação de tanto olhar para o espaço.

Descobriram um outro planêta. Suas características foram enviadas a Pensador, que meditou sôbre elas.
Mais perto e poderiam perceber as formas.

Impulsos! Impulsos primitivos!

Tornaram a ganhar altitude para fazer os planos. Alimentador apresentou vinte e três espécies diferentes de produtos inebriantes para celebrarem a descoberta.

Durante três dias a Nave estêve inapta para funcionar.
– Todos prontos agora? – perguntou Falante, meio tonto ainda.

Curtia uma ressaca que ardia pelas suas extremidades nervosas. Que pileque ferrara! Tinha a vaga lembrança de haver abraçado Motor e de tê-lo convidado para dividir consigo sua árvore quando estivessem de volta.

Agora tremia diante dessa idéia.

O restante da Tripulação também estava bastante grogue. As Paredes deixavam o ar sair; estavam tontas demais para selar convenientemente sua superfície. O Doutor perdera os sentidos.

O pior de todos porém era Alimentador. Uma vez que seu sistema podia se adaptar a qualquer tipo de combustível com exceção do atômico, estivera provando tudo que produzia, como iodo não-balanceado, oxigênio puro ou éster supercarregado. Sentia-se realmente muito mal. Seus tentáculos, geralmente um líquido transparente, estavam manchados com riscos laranja. Seu sistema funcionava furiosamente, purgando-se de tudo, e Alimentador sofria com isso.

Os únicos sóbrios eram Pensador e Motor. Pensador não bebia, o que era algo bastante inusitado entre os astronautas, embora fôsse típico dos Pensadores, e Motor não podia beber.

Todos ouviam agora os dados extraordinários comunicados por Pensador. A partir da visão de Ôlho da superfície do planêta, Pensador concluíra da existência de construções metálicas. Apresentou a sugestão alarmante que os Impulsos primitivos haviam construído uma civilização mecânica.

– Isso é impossível – disseram três Paredes com a máxima convicção, e a maior parte da Tripulação estava inclinada a concordar com elas. Todo o metal que conheciam havia sido enterrado ou empilhado em montes enferrujados sem valor algum.
– Você quer dizer que êles constroem coisas de metal? perguntou Falante. – De um simples metal morto? O que podem fazer disso?
– Não podem fazer nada – disse Alimentador com conhecimento de causa. O metal deteriora-se constantemente. Isto é, o metal não sabe quando está enfraquecendo.

De qualquer forma, a informação parecia verdadeira. Ôlho ampliou sua visão e todos podiam ver que os Impulsos haviam construído enormes abrigos, veículos e outros artigos de uma matéria inanimada.

A razão para isto não estava evidente, mas não era mesmo assim um bom sinal. Contudo, a parte realmente dura da busca terminara. O planêta dos Impulsos fôra encontrado. Agora restava apenas o trabalho relativamente fácil de convencer um Impulso nativo.

Isso não seria muito difícil. Falante sabia que a cooperação era a palavra-chave na Galáxia, mesmo entre os povos primitivos.

A Tripulação decidiu que não convinha aterrar numa região povoada. Naturalmente, não havia razão para se temer uma recepção hostil, mas era trabalho da Equipe de Contato entrar em entendimento com os habitantes na condição de raça. Tudo que desejavam agora era um indivíduo isolado.

Em vista disso, escolheram uma região escassamente povoada e aproximaram-se dela enquanto aquêle lado do planêta estava escuro.

Quase imediatamente conseguiram localizar um Impulso solitário.

Ôlho adaptou sua vista para enxergar no escuro e acompanharam atentamente os movimentos do Impulso. Este deitou-se, passado um momento, junto a uma pequena logueira. Pensador informou aos demais que êste era um hábito conhecido entre os Impulsos quando desejavam descansar.

Pouco antes do amanhecer, as Paredes abriram-se e Alimentador, Falante e o Doutor desembarcaram.
Alimentador adiantou-se e deu um tapa no ombro da criatura. Falante acompanhou-o com um cabo de comunicação.

O Impulso abriu seus órgãos da visão, piscou e fêz um movimento com seu órgão de comer. Depois deu um salto e saiu correndo.

Os três membros da Tripulação ficaram admirados. O Impulso não esperara nem mesmo para saber o que os três desejavam!

Falante estendeu ràpidamente um filamento e apanhou o Impulso, cinqúenta pés adiante, por uma perna. O Impulso caiu no chão.
– Trate-o com delicadeza! – disse Alimentador. – Ele deve estar assustado com nossa aparência. – E sacudiu seus cabos ao pensar que um Impulso, uma das criaturas mais estranhas da Galáxia, com seus órgãos múltiplos, pudesse assustar-se com a aparência de alguém.

Alimentador e Doutor correram para o Impulso caído, apanharam-no e levaram-no para a Nave.

As Paredees fecharam-se de novo. Soltaram então o Impulso e se prepararam para conversar.

Tão logo viu-se livre, o Impulso saltou em pé e correu para o local que as Paredes haviam fechado. Bateu contra elas histericamente, seu órgão da alimentação abrindo e vibrando.
– Pare com isso! – disse a Parede. – Ela se estufou e o Impulso caiu no chão. Imediatamente ficou em pé e começou a correr.
– Segurem-no! – gritou Falante. – Ele pode se ferir.

Um dos Acumuladores acordou e rolou sôbre o caminho do Impulso. Este caiu, levantou-se novamente e começou a correr.

Falante possuía filamentos também na frente da Nave e apanhou o Impulso que correra para lá. Este começou a despedaçar os filamentos, de sorte que Falante soltou-o ràpidamente.
– Liguem-no ao sistema de comunicação! – gritou Alimentador. – Talvez possamos argumentar com êle.

Falante avançou um filamento em direção à cabeça do Impulso, emitindo um sinal universal de comunicação. O Impulso porém continuou com seu comportamento estranho, pulando de um lado para o outro. Segurava um pedaço de metal na mão e o balançava frenêticamente.

O que você pensa que êle vai fazer com isso? – perguntou Alimentador.

Impulso começou a atacar os lados da Nave, investindo contra uma das Paredes. A Parede enrijeceu instintivamente e o metal entortou.
– Deixem-no em paz – disse Falante. – Talvez êle se acalme.

Falante consultou Pensador, mas ninguém sabia o que fazer com Impulso. Ele não queria entrar em comunicação.

Tôda vez que Falante estendia um filamento, Impulso manifestava os sinais de um pânico extremo. Por enquanto, estavam num impasse.

Pensador vetou a idéia de encontrarem um outro Impulso no planêta. Considerava o comportamento dêste Impulso como típico; não ganhariam nada abordando um outro. Fora isso, o planêta só deveria ser visitado oficialmente por uma Equipe de Contato.

Caso não conseguissem entrar em comunicação com êste Impulso, jamais o conseguiriam com um outro Impulso do planêta.
– Penso que sei qual é o problema – disse Olho – subindo sôbre um Acumulador. Esses Impulsos criaram uma civilização mecânica. Pensem um momento como isso foi possível. Eles desenvolveram o uso de seus dedos, como o Doutor, para trabalhar o metal. Utilizaram seus órgãos visuais, como eu. E provàvelmente um número incontável de outros órgãos. – Ôlho fêz uma pausa para acentuar o efeito de suas palavras. – Esses Impulsos se tornaram não-especializados.

Discutiram sôbre o assunto durante horas. As Paredes insistiam que nenhuma criatura inteligente podia ser não-especializada. Era um fato desconhecido na Galáxia. Mas a evidência estava ali, diante dêles – as cidades dos Impulsos, seus veículos… Este Impulso presente, ilustrando o caso dos demais, parecia capaz de uma multidão de coisas.

Pensador apresentou uma explicação parcial.
– Este não é um planêta primitivo. E relativamente velho e deveria pertencer à Cooperação há muitos milhares de anos. Uma vez que não pertence, podemos concluir que os Impulsos que o habitam foram roubados de suas prerrogativas naturais. A capacidade dêles, sua especialidade, era impulsionar, mas não havia nada no planêta para impulsionar. E por essa razão criaram uma cultura marginal.

“Exatamente o que é essa cultura, só podemos ter uma idéia vaga. Mas apoiados na evidência dos fatos, há razão para se acreditar que êsses Impulsos não são cooperativos…”

Pensador tinha o costume de pronunciar as afirmações mais importantes da maneira mais tranqúila possível.
– E bem possível – continuou Pensador inexoravelmente que êsses Impulsos não queiram ter nada conosco. Nesse caso, as probabilidades são duzentas e oitenta e três contra uma de encontrar um outro planêta semelhante.
– Não podemos ter certeza de que êle não quer cooperar – disse Falante – antes de entrarmos em comunicação com êle. Falante achava inacreditável que uma criatura inteligente não desejasse cooperar espontâneamente.
– Mas como se comunicar? – perguntou Alimentador.

Decidiram pôr em execução uma nova tentativa. O Doutor aproximou-se lentamente do Impulso que fugiu dêle. Nesse meio tempo, Falante estendeu um filamento por fora da Nave, deu a volta nela e entrou pelo lado posterior do Impulso.

O Impulso encostou-se contra uma Parede – e Falante introduziu o filamente pela cabeça do Impulso, até atingir o centro de comunicação no seu cérebro.

Impulso perdeu os sentidos.

Quando voltou a si, Alimentador e o Doutor tiveram que segurar com fôrça seus membros, caso contrário teria arrancado as linhas de comunicação. Falante exercitou sua habilidade aprendendo a língua do Impulso.

Não era difícil. Tôdas as línguas dos Impulsos eram da mesma família e êste não fazia exceção à regra. Falante conseguiu aprender um número suficiente de pensamentos superficiais para estabelecer um sistema.

Tentou então se comunicar com o Impulso.

Este manteve-se em silêncio.
– Penso que êle está com fome – disse Alimentador.

Lembraram-se que já era o segundo dia que mantinham o Impulso a bordo da Nave. Alimentador produziu uma alimentação comum aos Impulsos e ofereceu-a.
– Meu Deus! Um bife! – exclamou o Impulso.

A Tripulação saudou alegremente pelos circuitos de comunicação ligados a Falante. O Impulso pronunciara suas primeiras palavras.

Falante examinou as palavras e pesquisou sua memória. Conhecia cêrca de duzentas línguas dos Impulsos e muitas outras variações. Concluiu que êste Impulso falava uma mistura de duas línguas.

Após ter-se alimentado, Impulso olhou em sua volta. Falante apreendeu seu pensamento e transmitiu-o à Tripulação.

Impulso tinha uma maneira estranha de enxergar a Nave. Via-a como um pandemônio de côres. As Paredes ondulavam. Na sua frente estava algo que se parecia com uma aranha gigantesca, colorida de verde e de prêto, com seu fio percorrendo a nave inteira e entrando pela cabeça de outras criaturas. Viu Ôlho como um animaizinho estranho e nu, algo entre um coelho tosquiado e uma gema de ôvo – ou qualquer outra coisa no gênero.

Falante estava fascinado pela nova perspectiva que Impulso lhe fornecia. Nunca vira antes as coisas daquela maneira. Mas agora que o Impulso as revelava, não havia dúvida que Ôlho era uma criatura bastante engraçada.

Decidiram entrar em comunicação.
– Que diabo de coisas são vocês? – perguntou Impulso, bem mais calmo agora do que durante os dois dias anteriores. – Por que vocês me agarraram? Fiquei louco por acaso?
– Não – respondeu Falante – você não é um psicótico. Nós somos uma nave mercante galática. Fomos afastados de nossa rota por uma tempestade e nosso Impulso morreu.
– Bem, e o que tenho eu a ver com isso?
– Gostaríamos que você fizesse parte de nossa tripulação disse Falante – para ser nosso novo Impulso.

Impulso refletiu longamente após terem-lhe explicado a situaçao. Falante podia perceber o sentimento de conflito no pensamento do Impulso. Não havia decidido ainda se deveria ou não aceitar aquilo como uma situação real.

Finalmente o Impulso concluiu que não estava louco.
– Ouçam uma coisa, rapazes – disse êle – não sei quem são vocês nem como isso se explica. Mas tenho que sair daqui.

Estou de licença e se não volto logo o Exército norte-americano vai se mostrar muito interessado em saber meu paradeiro.

Falante pediu a Impulso que lhe fornecesse algumas informações mais detalhadas sôbre a palavra “exército”, e passou-as a Pensador.
– Esses Impulsos travam combates pessoais – concluiu Pensador.
– Mas por quê? – perguntou Falante. – Ele admitia com tristeza que Pensador concluíra acertadamente; o Impulso não manifestava sinais de que desejasse cooperar.
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– Gostaria muito de ajudá-los – afirmou o Impulso – mas não sei de onde vocês tiraram a idéia que possa empurrar uma coisa dêsse tamanho. Seria preciso uma divisão inteira de tanques para mexer essa nave.
– Você aprova as guerras? – perguntou Falante, recebendo uma sugestão de Pensador.
– Ninguém gosta das guerras… pelo menos os que morrem nelas.
– Então por que vocês travam guerras?

Impulso fêz um gesto com seu órgão da alimentação, que Ôlho observou e enviou para Pensador.

E’ matar ou morrer. Vocês sabem o que a guerra significa, não sabem?
– Nós não temos guerras – disse Falante.
– Vocês têm sorte – comentou Impulso amargamente. Nós temos. Centenas delas.
– Claro – disse Falante. Ele tinha agora a explicação completa transmitida por Pensador. – Você gostaria de pôr fim às guerras?
– Claro que sim.
– Então venha conosco! Seja nosso Impulso!

Impulso levantou-se e dirigiu-se a um Acumulador. Sentou-se em cima dêle e cruzou seus membros superiores.
– Como é possível, santo Cristo, que eu possa acabar com as guerras? – exclamou o Impulso. – Ainda mesmo que me dirigisse aos poderosos e lhes dissesse.

– Não é preciso isso – disse Falante. – Tudo que você tem a fazer é vir conosco. Impulsionar-nos para nossa base. A Galáxia enviará uma Equipe de Contato a seu planêta. Isso terminará com tôdas as guerras.
– Com todos os diabos – replicou Impulso. – Vocês estão presos aqui, hem? Òtimo! Só assim a Terra não será invadida por monstros.

Perplexo, Falante procurou entender o raciocínio do Impulso. Dissera algo errado? Seria possível que o Impulso não compreendesse?
– Pensei que você quisesse terminar com as guerras – disse Falante.
– Claro que quero. Mas não quero que ninguém nos faça parar. Não sou um traidor. Prefiro lutar.
– Ninguém vai fazer você parar. Você vai parar simplesmente porque não haverá mais necessidade de lutar.
– Vocês sabem por que lutamos?
– E’ evidente.
– Ah, sim? Qual é sua explicação?
– Vocês, Impulsos, foram separados da corrente principal da Galáxia – explicou Falante. – Vocês possuem uma especialidade – a de impulsionar – mas não têm nada para impulsionar. Por causa disso, não possuem trabalhos verdadeiros. Vocês brincam com as coisas – metais, objetos inanimados – mas não encontram nisso uma satisfação real. Roubados de sua verdadeira vocação, vocês lutam por simples frustração.

“Uma vez que vocês encontrarem seus lugares na Cooperação Galática – e posso assegurar que se trata de um lugar importante – a luta de vocês irá parar. Por que haveriam vocês de lutar, o que é uma atividade antinatural, quando poderiam impulsionar? Por outro lado, essa civilização mecânica também terminará, uma vez que não haverá mais necessidade dela.

O Impulso balançou a cabeça, o que pareceu a Falante um gesto de confusão.
– O que é afinal êsse negócio de impulsionar? – perguntou êle.

Falante procurou explicar-lhe da maneira mais clara possível. Mas como essa tarefa estava fora de suas aptidões, só tinha uma vaga idéia do que fazia um Impulso.
– Você quer dizer que é isso que todo habitante da terra deveria fazer?
– Exatamente – disse Falante. – essa sua grande especialidade.

 

Impulso refletiu sôbre o assunto vários minutos.
– Penso que vocês necessitam é de um físico ou de um mentalista ou coisa parecida. Eu não poderia jamais fazer êsse serviço. Sou apenas um arquiteto jovem. E além disso… bem, é difícil explicar.

Falante porém já entendera a objeção do Impulso. Viu uma Impulso-fêmea nos seus pensamentos. Não, duas, três.

E percebeu também um sentimento de solidão, de distância. O Impulso estava repleto de dúvidas. Tinha mêdo.
– Quando alcançarmos a galáxia – disse Falante, esperando que sua suposição fôsse verdadeira – você encontrará outros Impulsos. Impulsos-fêmeas também. Todos os Impulsos se parecem, de sorte que você logo se tomara de amizade por êles. No que se refere à solidão na Nave – ela simplesmente não existe. Você ainda não compreendeu a idéia de Cooperação. Ninguém se sente sozinho na Cooperação.

Impulso pensava ainda na possibilidade de existirem lá outros semelhantes; Falante não podia entender por que isso o admirava tanto. A Galáxia estava repleta de Impulsos, Alimentadores, Falantes e muitas outras espécies, duplicadas ao infinito.
– Não acredito que alguém possa terminar com tôdas as guerras – disse Impulso. – Como posso saber se vocês não estão mentindo?

Falante sentiu como se houvesse sido atingido no ponto sensível. Pensador tinha razão quando afirmava que os

Impulsos não cooperariam. Seria êsse o fim da carreira de Falante? Passariam êle e os outros membros da Tripulação o resto de suas vidas no espaço, devido à estupidez de um punhado de Impulsos?

Ainda assim, Falante sentiu pena do Impulso. Deve ser terrível, pensou. A dúvida, a incerteza, nunca confiar em ninguém. Se êsses Impulsos não encontrarem ràpidamente seu lugar na Galáxia, vão acabar se exterminando uns aos outros. O lugar dêles na Cooperação era há muito uma necessidade.
– Que posso fazer para convencê-lo? – disse Falante.

Em desespêro, abriu todos os circuitos para o Impulso. Permitiu que êste visse a grosseria bonachona do Motor, o humor displicente das Paredes; mostrou-lhe as tentativas poéticas de Ôlho e a simplicidade petulante do Alimentador. Abriu sua própria mente e mostrou ao Impulso o panorama do seu planêta de origem, de sua família, a árvore que planejava comprar quando voltasse para casa.

Esses quadros contavam a história de todos êles, de diferentes planêtas, representando éticas diferentes, unidos por um laço comum – a Cooperação Galática.

O Impulso observou tudo em silêncio.

Após um momento, sacudiu a cabeça. O Pensamento que acompanhava o gesto era incerto, fraco… mas negativo.

Falante disse às Paredes para se abrirem. Elas se abriram e o Impulso olhou para fora admirado.
– Você pode sair – disse Falante. – Basta remover a linha de comunicação e ir embora.
– O que vocês vão fazer?
– Vamos procurar um outro planêta de Impulsos.
– Qual? Marte? Vênus?
– Não sabemos ainda. Fazemos votos contudo que exista um outro nesta região.

Impulso olhou para a abertura, depois para a Tripulação. Hesitou e seu rosto se contorceu numa careta de indecisão.

– Tudo que vocês me mostraram é verdade?
Não era necessário responder.
– Bem – disse o Impulso súbitamente. – Irei com vocês. Posso ser um louco varrido, mas irei. Se isto significa o que você disse – deve significar o que você disse!

Falante percebeu que a agonia da decisão do Impulso colocara-o fora de contato com a realidade. Pensava que estava num sonho, onde as decisões são fáceis e sem conseqúência.
– Só existe um pequeno problema – disse Impulso com a leviandade da histeria. – Rapazes, quero morrer se sei impulsionar alguma coisa. Vocês disseram alguma coisa a respeito de velocidades acima da luz? Olhem, eu não consigo nem mesmo correr uma milha por hora.
– Sem dúvida que você pode impulsionar, – garantiu Falante, esperando estar certo. Ele sabia quais eram as capacidades dos Impulsos; mas dêste em particular…
– Tente pelo menos.
– Claro – disse Impulso. – De qualquer forma, é possível que acorde depois disto.

Fecharam a Nave para a partida enquanto Impulso falava consigo mesmo.
– Engraçado – disse Impulso – pensei que um acampamento fôsse uma maneira excelente para aproveitar a licença e agora me acontecem êsses pesadelos!

Motor lançou a Nave para o alto. As Paredes estavam hermêticamente fechadas e Ôlho os guiava para longe do planêta.
– Estamos em pleno espaço agora – disse Falante. Ouvindo os pensamentos do Impulso, fazia votos para que sua mente estivesse inteira. – Ôlho e Pensador vão dar uma direção. Eu a transmitirei a você e você impulsiona a Nave.
– Você está louco – murmurou Impulso. – Vocês devem ter descido no planêta errado. Gostaria que êsse pesadelo terminasse.
– Você está na Cooperação agora – disse Falante desesperadamente. – Aqui está a direção. Impulsione!

O Impulso não fêz nada durante um momento. Estava lentamente acordando de sua fantasia, descobrindo afinal que não se tratava de um sonho. Sentiu a Cooperação. Ôlho para Pensador, Pensador para Falante, Falante para

Impulso, todos intercoordenados com as Paredes, e com cada um dos outros.
– O que é isso? – perguntou Impulso. – Sentiu a união da Nave, o grande calor, a intimidade realizada unicamente mediante a Cooperação.

E impulsionou.
Nada aconteceu.
– Tente de novo – rogou Falante.

Impulso pesquisou sua mente. Encontrou um poço profundo de dúvidas e temores. Olhando para dentro, viu seu próprio rosto torturado.

Pensador iluminou-o para êle.

Os Impulsos viviam há séculos com suas dúvidas e temores. Os Impulsos haviam lutado em consequencia do temor, matado por dúvida.

Eis onde estava o órgão do Impulso!

Humano – especialista – Impulso – êle penetrou plenamente na Tripulação, mergulhou dentro dela, atirou seus braços mentais em volta dos ombros de Pensador e Falante.

De repente, a Nave partiu na direção prevista numa velocidade oito vêzes superior à da luz. E continuou a acelerar.

Robert Sheckley

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