O Grito
Um grito longo e rouco trespassa o espaço cinzento espesso. Sirenes avisam os barcos da pouca visibilidade no porto. Elas, equilibram-se o melhor que podem nos saltos de salto alto, na espera do homem. Hollis street! Estranho que as putas a teham escolhido.
O grito. Continua. Os seus tentáculos infiltram-se nos peitos delas.
Ele levanta-se. Lento o gesto. É cedo. Os fanáticos do exercício, in solo ou em grupos, já correm a Young Avenue, em direção ao Point Pleasant Park. Uma das raras vezes em que o movimento não é mecánico, ela no aconchego dos lençois de flanela, adivinha-o sair. Ouve o motor do Jeep. Escondido ao olhar dos curiosos, um raminho de flores nas mãos, é fiel ao rende-vous do 19 de Março. A igreja, fica a dois passos, da sua casa, na Inlish st. Um pequeno canteiro com flores a germinar. Duas árvores que nos anos precedentes já estaria carregada de flores, guardiões da eternidade, abençoam um templo. É com ternura e uma grande saudade que ele limpa a pequena placa coberta de neve, monumento erigido á memória das duas crianças. Estranho que tenha sido o avô delas o arquitecto da igreja dos Mártires. Estranha a escolha do nome!
Depõe as flores na campa e regressa a casa, acompanhado do Grito!
Parece um homem cansado de culpas. Por isso o seu grito é calado. Ela ainda finge que dorme. Ultimamente o seu interior afirma-se. Gosta dele, como de um alimento apetitoso e indigesto. Ela ouve-o a descalçar os sapatos. O cheiro do café anuncia que se pode levantar. Admira-lhe a dignidade do seu grito silencioso. Porque ela é no berro que se exprime, quando descobre que a “Royal Dolton Doll” chamada Ana, pertencia a um grupo de cinco, que descobriu por coincidência, quando telefonou à vendedora da Birks:
– A boneca de porcelana que recebi ontem pela ocasião de St. Valentin, foi acidentada…
– Qual delas? responde-lhe a simpática sra. Foram compradas cinco.
Num gesto de raiva, parte a boneca no pensamento enquanto a depõe numa prateleira, com outros objectos.
Resolveu ir visitar a sua amiga. Uma chamada para a filha, e juntas depois de um almoço ligeiro, dirigem-se para bedford.
Vinte minutos depois, a seguir a uma série de voltas não muito desejadas, encontraram finalmente a rua. A casa não foi difícil de ser reconhecida. Os cães da Marilla começaram a dar-lhes as boas vindas duma maneira tão efusiva, que ela receou que saltassem a cerca. Propoz á Liana que seria melhor utilisarem a porta da entrada. Uma amiga da Marilla vem abrir.
– Hi, how are you? Come in, come in… My name is Lisa.
Na sala de visitas, estendida no sofá, está a Marilla, mais bonita do que nunca. Parece que a gravidez a rejuvenesceu! Colantes castanhos e um camiseiro de suede castanho também. A janela tipo catedral, deixa ver uma paisagem castanha também.
– Hi, Cleopatra sauda-a enquanto deposita um beijo vermelho como o vermelho da papoila do “remembrance day”, na face dela.
– Ana! grita ela tarde demais.
– Olha os teus lábios.
– Como não te vejo papoila nenhuma, má canadiana, desenhei-te uma com o sangue dos meus lábios.
– Um tremor gozão percorre-lhe o corpo. -brrrrrr.
Sentadas, a Marilla e a Liana falam para serem diferentes de outras ocasiões, de gravidezes, de más gravidezes, de mães, de pais…enquanto que a Ana pensa:
– Porque é que todas as mulheres quando estão grávidas pensam ter o rei na barriga? Deixa-as na conversa enquanto que anuncia
– Vou á casa de banho.
– Just on your left, diz a Marilla, tão distraída que se esqueceu que ela conhece a casa.
Quando abre a porta não tem escolha senão reparar na sensualidade do homem da fotografia, no muro aonde se encontra a sanita.
– Porque não ? Pensa ela, enquanto lhe admira o corpo bonito, dentro duma jaqueta de couro aberta, jeans, e botinas de cow boy. Um livro sobre o lavatório, intitulado de gravidez, um outro num cesto – gravidez prematura. Suspira aliviada quando depara com uma revista. Quando lhe vira a capa, não se admira, ao lêr: pais e filhos.
De novo na sala, a Marilla continua a ser o centro das atenções:
– O pé, snob no ar, diz: era um cinco mas agora é um cinco e meio.
– Really? dizem em coro as amigas.
– Sim, e parece que acontece com todas nós as grávidas. A ti não te cresceu, Ana?
– Oh, a mim cresceu-me tudo, por todo o lado.
Elas riem-se, e ficam admiradas por ela já ser mãe e mais ainda ficam quando a Marilla lhes diz que a Liana é a sua filha:
– Pensávamos que eram irmãs…
– Oh, diz a Marailla, elas já estão habituadas à perflexão que causam nas pessoas, não é assim, Liana?
A seguir tentam adivinhar o que o pequeno ser, seria. Rapaz, ou rapariga?
– A minha mãe diz que é uma rapariga, porque tenho a barriga descaída. A Marilla parece uma anunciadora do boletim metereológico, a apontar cuidadosamente os vários pontos da sua carta geográfica, ás amigas. Aqui, no meu lado esquerdo, está um movimento de braço, bla bla etc.
A Joana, a Stephanie, A Liana, ouvem a Marilla como se ela fosse a melhor contadora de lendas.
Ana desvia a conversa e pergunta se o homem da fotografia é o James Dean.
– Não, é o Paul diz ela. Quando era mais jovem, era um modelo.
Como? O teu marido? Dizem elas agora mais interessadas na fotografia do que no umbigo da Marilla.
– Podemos ir vêr?
Dirigem-se para a casa de banho e ouve-se um:
– Uau, uau, uau.
Quando voltam, a conversa concentra-se de novo, na colina da Marilla.
– Bla, bla, começamos o nosso projecto, no apartamento que a Ana tem no Algarve.
– Nós estivemos em Portugal no ano passado, diz captivada a Joana pelas origens da Ana.
– Aonde? pergunta.
Lisboa e arredores e depois o Algarve.
– Foram a Sintra?
Oh, maravilhosos castelos, suspensos no ar, diz a Joana sonhadora.
– A Marilla pensa nos pasteis de Sintra.
– Ah, se eu pudesse ter agora um. Hum!
– E os homens portugueses, que temperamento! A Joana, brinca. Não precisam de comprimidos para declancharem uma actividade sexual.
– Que tens contra os nossos homens, ralha a Marilla que tem um super-homem.
– Nada, nada, nada.
O Paul da Marilla chega e a conversa esmorenece como por encanto.
Ele não reparou que subitamente o grupo o olhou um pouco mais do que o normal enquanto que um pensamento comum as fez sorrir…
Entretanto a Marilla continua imersa no seu mundo criativo.
Sonhadora acaricia a sua colina. E prepara-se ela também para O GRITO.
Diana de Moura – Halifax, Canadá