O Rato
A história que vou contar não se passou comigo, mas com um amigo meu que vive na Dinamarca. Não a posso imaginar aqui porque o seu principal personagem, um desratizador profissional, se não estudou numa Universidade que se poderia chamar Andersenrat, assim parecia. Quando eu andava no colégio, havia à porta da “casinha”, ou seja, da casa de banho, uma freira velhíssima que compunha terços quebrados e possuía um diploma de cerzideira de meias atribuído na Suíça. São países dum grande rigor e eficiência com os quais não nos podemos comparar. Por isso, Hamlet não parece dinamarquês, ou então deu-lhe para destrambelhar.
O meu amigo, a quem chamarei Klaus, deu com um rato na cozinha. Não esperou para ver se ele estava de passagem, se era emigrante ou simples figura de lenda. Chamou o desratizador. Este era um homem alto, de calças amarelas e que bebia água a toda a hora. Trazia com ele uma garrafinha de água e abria-a com muito cuidado, não fosse sair de lá o génio da lâmpada, ou da garrafa, melhor dito.
A primeirta coisa que fez foi proibir a Klaus a entrada na cozinha enquanto decorresse a operação. Pareciam manobras militares e, como Klaus punha na estereofonia um compacto da Tannhäuser, o acompanhamento dava calafrios.
O desratizador espalhou farinha no chão da cozinha e dois dias depois sabia o peso, a idade e o tamanho do rato. A farinha deixou escritas as impressões das quatro patas e o comprimento da cauda. Pelo cumprimento da cauda soube a idade do rato, e assim por diante.
Há quem se impressione com a cauda dos ratos, por ser pelada e parecer um verme, uma espécie de parasita. Outros não gostam das orelhas, não sei porquê, decerto pelo tom róseo e sem penugem. Havia um domador de leões que tinha medo dos ratos; mesmo enjaulados faziam-no estremecer. E, no entanto, os seus quatro leões, pachorrentos, é bem verdade, obedeciam às suas ordens e temiam-no.
O rato era digno do seu inimigo. Parecia ter frequentado também um curso de tropas especiais e conhecia todos os sons e todos os cheiros da cozinha. Conhecia o pingar da torneira no lava-loiça, o leve e picante cheiro duma casca de cebola e o bolor do queijo, que o punha doido. Porém, não se aproximava da ratoeira senão até ao milímetro fatal. Voltava para trás, todo empoado de branca farinha como um pierrot, e cada vez mais o seu coeficiente de inteligência crescia. E o do desratizador, assim, assim.
– Pode crer – disse ele a Klaus – que um rato sabe da sua cozinha numa hora o que você não sabe em trinta anos. Sabe o que guarda nos armários, o que deve escolher e desprezar; sabe onde estão as tábuas podres, os esfregões usados, o sabão seco, os cotos de velas que, quando tem fome, não desdenha comer. Comer e não saborear. Para saborear há coisas mais suculentas. Óleos, manteigas, toucinhos, certos papéis, algum recheio de almofadas e (vejam bem!) canos de borracha. Um rato pode viver um ano numa cozinha e só percebermos que ele anda lá quando o cano da água de lavar a loiça se rompe e provoca uma inundação. Foi o rato que lhe abriu um buraco para aspirar e embriagar-se com os cheiros dos restos, pequenas ervilhas, gorduras e uma ou outra casca de queijo emental, ou suíço, ou gouda, que se pegou ao ditoso cano.
O desratizador, passadas duas semanas, disse:
– É um rato que tem uma dieta. Pode ser mais velho do que eu pensava, porque mantém a linha e agilidade. Come muitos cereais e não prova o açúcar.
– Talvez pense que é veneno – disse Klaus, muito desanimado. Continuava a estar privado da cozinha e até saía para tomar o pequeno almoço na pastelaria. Trazia para casa croissants e fiambre e pãezinhos doces e resistia a reparti-los com o rato. Começava a antipatizar com o desratizador.
Um rato não pensa, não precisa de pensar. Faz melhor que isso, como todo o predador. Um predador usa os sinais que a natureza lhe manda de todos os lados, e um rato da cidade, além da natureza, tem uma rede de informações prodigiosa. Tudo vibra, range, brilha, escorre, tanto as pessoas como os objectos fazem variadíssimos ruídos, cheiram de toda a maneira e, sobretudo, avisam da sua presença. O rato sabe logo se a pessoa é aleijada, se usa bengala, se sofre da bexiga, se usa sapatos ou chinelos. Sabe que onde se ouve música não há muito a temer. A música abafa a caminhada do predador, assim como as grandes famílias são mais seguras para ele. Quando nós jantávamos todos vivos à volta da mesa, a falar alto e a minha mãe a dar ordens e contra-ordens à criada de sala, havia um ratinho que se pendurava no galheteiro que estava em cima do aparador e olhava para nós como se estivesse no teatro. Parecia deliciado. E decerto se sentia em segurança, dado que o calor das discussões lhe transmitia ondas de comovida festa de família. Sabia que ninguém estava zangado e não ia acontecer nenhuma loucura como persegui-lo e derrubá-lo de cima do galheteiro.
– Mas voltando a Klaus: já tinham passado três semanas e o rato continuava acantonado na cozinha, a cozinha dele, porque era o seu território, com a cesta do seu pão, com o seu papel dos fritos e uma sertã ainda com pequenas barbatanas de peixe frito. Ele gostava de peixe frito. Klaus tinha a certeza de que ele fazia sanduíches de ovo e anchovas. Mostrai-me um rato que goste de anchovas e digo-vos onde está um bom europeu.
Aproximavam-se as férias do Verão e Klaus queria navegar no seu barco que estivera todo o ano no estaleiro, o que lhe custara uma fortuna. Mas dava o dinheiro por bem empregado porque gostava do mar como um rato gosta de queijo. Já não consigo afastar-me do assunto, o que, numa história, às vezes, é indispensável. Klaus convidou a sua ex-mulher a passar uma tarde no barco, aproveitando o primeiro sol de Junho, e esqueceu o rato e o desratizador. Quando voltasse (entretanto fez uma viagem e achou tudo muito mudado, que é o que acontece a quem faz viagens) esperava encontrar tudo resolvido e apenas lhe restava pagar ao desratizador e tomar conta outra vez da cozinha. Mas as coisas não se passaram assim. Nada tinha mudado e o rato continuava a andar por cima da farinha e estava cada vez mais inteligente.
– Que é que eu faço? – disse Klaus. – Estou tão aborrecido que ainda me caso outra vez com a minha ex-mulher, ou vou meter-me no museu dos vikings a contar os pregos dos barcos um por um. Acho que o rato e eu acabamos por nos entender, se você deixar.
– Isto não é possível. – O desratizador não estava em si de tão contrariado. – Eu tenho que fazer o meu serviço. É para isso que me pagam.
– Eu pago-lhe na mesma.
– Mas não me pode pagar se eu não fizer aquilo para que fui chamado. Tenha paciência e espere.
Klaus, como não podia servir-se da cozinha e estava cansado de comer arenque fumado, aceitou um convite da ex-mulher para jantar lá em casa. Primeiro duas vezes por semana, depois todos os dias. Isto deu como resultado reatarem as relações antigas e, de bons amigos que eram, tornaram-se ainda melhores. Já não se lembravam porque se tinham separado; provavelmente eram muito novos quando se casaram e não faziam outra coisa senão encontrar defeitos um no outro. Era um jogo do empurra, e aquilo não parecia nada bem. Mas quando se trata de amor, cada um faz o que quer porque se pensa que o amor, como na guerra, permite tudo. Ora, até o pacto de Genebra estabelece que na guerra nem tudo é permitido. Mas como não há um pacto de Genebra para o amor, cada um faz como entende.
O tempo em que Klaus esperou a morte do rato foi um tempo de razoável felicidade. Ele e a ex-mulher tornaram-se companheiros inseparáveis e até arranjaram emprego na mesma zona da cidade. Aqui tenho que dizer que no Brasil não se diz zona por ser o domínio das prostitutas e gente assim. Mas aqui pode dizer-se zona à vontade, e bicha e veado, que ninguém fica a olhar para nós como se estivéssemos a cometer uma terrível indiscrição.
Entretanto, vou-vos dizer quem era Klaus, o meu amigo. Era arquitecto e tinha saído de Portugal quando da guerra das colónias; era, portanto, um emigrante político. Era um pacifista, como se vê pela história do rato a que chegou a dar um nome e a querer que o desratizador falhasse nos seus intentos. Mas o desratizador até aos domingos ia ver o que se passava na cozinha de Klaus.
– O rato está mais gordo, vê-se pelo rasto que deixa na farinha. E também está mais esperto. Bebe a água da torneira e põe-se debaixo para apanhar a gota que cai de quarenta em quarenta segundos. Às vezes, ele vai inspeccionar o armário das provisões e quarenta segundos depois lá está para receber a gota de água, bem certeira, na boca aberta.
– É um prodígio – disse Klaus. E a ex-mulher repetiu:
– É um verdadeiro prodígio. – Tinha amadurecido e sabia que repetir o que um homem diz é a chave do sucesso no casamento. Agora arranjava-se mais e penteava-se no cabeleireiro, de vez em quando, e punha rolos no cabelo fino, dum loiro esbranquiçado. Klaus lembrou-se: tinha-se separado por causa da cor do cabelo dela. Parecia manteiga fervida. Mas agora não se importava. Falavam muito um com o outro, do rato e doutras coisas. Ela tinha uma graça que Klaus nunca suspeitara.
– Klaus – disse ela (o nome dele era Cláudio Pinto, mas mudara para Klaus) – podíamos ir para a neve, no Inverno.
– Mas neve é o que não falta aqui – disse Klaus, muito surpreendido e assustado porque o tempo das viagens já ia longe. Agora preferia ouvir música e ficar quieto.
– Pois sim. Mas não temos montanhas. A neve sem montanhas não parece neve. Suja-se logo e torna-se em gelo escorregadio. Eu gostava de ver a neve nas montanhas e os pinheiros carregados e os coelhos a aparecer nas tocas num dia de sol.
A ex-mulher estava a ficar muito romântica, e Klaus deu por isso. Expusera-se demais e tinha medo do que podia acontecer. Faltava-lhe a esperteza do rato que sabia parar a tempo, um milímetro antes da ratoeira. Pensando nisso, voltou a casa e espreitou para dentro da cozinha. Ali estava um efeito de neve muito confortável, com toda a ranca farinha espalhada pelo chão. E as patinhas do rato estavam impressas por cima como se fosse uma forma de escrita. Talvez fosse uma forma de escrita, ele era bastante inteligente para isso. Sentiu admiração por ele. “É um rato como deve ser” – pensou.
Isto era um grande elogio. Entretanto, a ex-mulher de Klaus, que tinha dois filhos dum primeiro casamento, juntava dinheiro e dizia:
– É para quando formos velhos. Os velhos precisam de ter dinheiro, senão ninguém quer saber deles.
Toda a gente tinha regalias sociais, havia hospitais para curar as pessoas e outros para convalescer. Mas a ex-mulher continuava a dizer que era preciso ter dinheiro para quando a velhice chegasse. Sentia-se sempre insegura, por mais cartões de crédito que tivesse, e Klaus aborrecia-se com isso. Um dia parou diante da estátua de Kierkegaard, que devia ter sido um homenzinho enfezado, e pensou que ele se parecia com o rato. Não um rato de laboratório mas de cozinha ou, se quiserem, de biblioteca. Como escapara ao casamento, intitulando-se um sedutor cheio de manhas, era duma esperteza de rato. Klaus olhou para ele, no entardecer escuro da cidade, e lembrou-se que ele morrera no mesmo dia em que se lhe acabou o dinheiro.
– Meu bom Soren, és mesmo um tipo com quem se pode contar. Parece que a sobrecasaca não te serve, mas é só porque és meio corcunda e gostas de parecer ainda mais corcunda- A tua sedução está em saberes ser pior do que és. Como o rato da minha cozinha. Acho que vou voltar para lá.
Mas a ex-mulher não deixou. Estava cada vez mais prestável e os filhos dela ajudavam-na a ser prestável. Tratavam Klaus por pai e deram-lhe uma carteira em pele de lagarto pelo Natal. Ele fingiu-se agradecido, mas é preciso muito mais para um homem ficar agradecido. Ia para o fiorde e o vento soprava na água como se fosse derrubá-la. Não se derruba a água, ela não tem pés nem raízes: todavia, sustenta-se como se os tivesse.
Um dia, desratizador encontrou-o na rua e foi falar com ele. Estava entusiasmado, ainda que isso só se percebesse porque o lado esquerdo do bigode tremia. Ele disse:
– Tenho uma boa notícia para si. Estive ontem na sua cozinha e o rato estava morto. Agora já me pode pagar.
– Como morreu? – Klaus sentiu uma dor no estômago e outra na perna direita. As emoções não escolhem lugar. Morreu com veneno ou foi electrocutado?
– Nada disso. E, sabe? Não acasalava, e por isso não trouxe uma fêmea com a ninhada. Eu não diria que era um rato velho, mas talvez fosse. Tinha já os bigodes brancos. De qualquer modo, deu-me que fazer. Há dois anos que estava na sua cozinha e não deixou pedra sobre pedra. Nem um grão de arroz. Tinha uma dieta muito equilibrada, apesar de tudo. Estava manco, talvez uma artrose, talvez isso. É preciso avisar os vizinhos.
Klaus ficou desolado. Tinha casado com a ex-mulher e vivia na casa dela com os filhos dela que pareciam duas morsas e que continuavam a chamar-lhe pai. Não podia imaginar Kierkegaard a viver com duas morsas na mesma casa. Que esperto que ele tinha sido! Andou durante um tempo pensativo e um dia em que, por acaso, viu o desratizador num centro comercial, perguntou-lhe:
– Como é que eu podia comprar um rato?
Ele tirou do bolso uma agenda preta, dessas que têm junto uma máquina de calcular, e folheou-a com profunda atenção:
– Só daqui a três anos é que tenho um rato disponível.
– Como? – disse Klaus, estupefacto.
– Não imagina a quantidade de homens que querem um rato na cozinha. – O desratizador coçou o queixo e disse: – Homens como você, que me chamaram para matar um rato e que foram vítimas das consequências, as consequências, senhor Klaus! É disso que eu vivo e não de matar ratos. É um ofício mal pago e que não dá nem para a água. – Tirou a garrafinha do bolso e bebeu um trago. Tapou-a rapidamente, não fosse sair de lá um génio. E não se sabe o que seriam as consequências.
Agustina Bessa Luís