O Sino de Atri
Acabo de ler um conto de Aquilino Ribeiro intitulado “O Bombo”, a história de um cavalo tratado sem justiça por um dono bruto, que por sua vez cedo se encontra também sujeito a circunstâncias difíceis num sistema cruel e injusto onde a justiça é paga pelo preço da virtude onde quem é rico toca o bombo e que é pobre se torna nele.
O Conto fez-me lembrar de um outro conto escrito por James Baldwin também sobre o tema da falta de justiça e um cavalo. Este conto passa-se numa cidadezinha na Itália chamada de Atri.
Segundo essa história, nessa cidade de Atri, algures na Itália, houve um dia um rei que entendeu comprar um bom sino, o qual mandou colocar numa torre numa praça ao centro da cidade de Atri. Penduram-lhe uma longa corda que quase tocava no chão, isso para que todos o pudessem tocar, mesmo as crianças.
“Isto é o sino da justiça.” Explicou o rei.
Por fim, quando estava tudo já pronto, o povo de Atri teve festa grande. Toda a gente veio para o centro da cidade para ver o tal sino. Era um lindo sino, sim senhor! Estava tão bem polido que quase dava a impressão de ser tão luzidio e amarelo como o próprio sol.
“Seria bom ouvir o som dele. Deve ser magnífico!” disseram as pessoas.
Depois quando por fim o rei compareceu, julgaram que era ele que ia tocar o sino. Toda a gente ficou à espera do que ele iria fazer. Mas o rei não tocou não o sino. Ele nem sequer chegou a tocar na corda. Quando ele chegou à torre, parou, levantou a mão e disse:
—Minha gente, povo meu, estais a ver este lindo sino? Este é o vosso sino; mas vocês não o devem tocar, a não ser em caso de necessidade. Se alguém precisar que justiça seja feita, que venha e que puxe esta corda, para que os juizes sejam convocados e resolvam o caso a favor da justiça. Pobre ou rico, jovem ou velho, todos terão o direito de tocar este sino, mas só para casos de corrigir qualquer falta de justiça e mais nada.
Passaram-se muitos anos depois disso. Várias vezes se ouviu o sino de Atri tocar para que os juízes fossem convocados a resolver este ou aquele dilema. Muitas faltas de justiça foram corrigidas. Muita gente má foi punida. Por fim, depois de tanto uso, as fibras da corda começaram a ficar estragadas ao ponto de se desfiarem todas, e a corda se tornar tão curta, tão curta que mesmo só alguém de estatura alta podia no fim chegar até ela.
“Não, isto não está bem,” admitiram os juízes. “Uma criança que precise que justiça lhe seja feita nunca mais conseguiu tocar na corda.”
Assim, logo decidiram comprar uma corda nova para que todos mais uma vez, incluindo as crianças, pudessem tocar o sino.
Infelizmente, por mais que tentassem, não encontraram corda alguma em Atri; pelo menos que fossem longa bastante para repôr a velha. Tiveram que mandar vir uma do outro lado da montanha, mas isso levaria dias, senão semanas antes que chegasse. O que aconteceria a todos aqueles que entretanto se dirigissem ao sino para que se lhes fizessem justiça?
“O que fazer e não fazer?” Pensaram.
“Eu vou tratar disso,” afiançou um homenzinho que por ali andava. Em nenhum tempo, ele correu ao seu quintal e da vinha que lá tinha retirou um pedaço que com folhas e tudo amarrou ao resto da corda, assim de novo tornando possível que todos, até as crianças pudessem tocar esse sino.
“Perfeito!” disseram os juízes, “Até que a nova corda chegue isso é bem bom.”
Ora, na colina mesmo por cima da cidade vivia um homem que havia sido um valente e nobre cavaleiro no seu tempo. Tinha andado por muitos lugares, corrido meio mundo, e companheiro nessas campanhas tinha sido um forte e fiel cavalo que ainda possuía.
Esse cavaleiro com a idade, contudo, passou a não mais se interessar por feitos valorosos, por nobreza de valores, por façanhas de virtude, antes tornou-se avarento, só pensando em ouro, maneiras de o conseguir ou de o não gastar. Gradualmente vendeu tudo o que achava que não precisava e só vivia para conseguir mais ouro. No fim só o que tinha era o cavalo e com ele foi viver para um casebre junto com os seus sacos de ouro, toda a sua preocupação e zêlo. Deixou-se por isso de importar pelo cavalo que abandonou à sua sorte no estábulo velho e frio, onde passava o seu dia à dia com muita pouca comida e falta de conforto.
“Estou farto deste cavalo,” disse o velho um dia, “ele só me custa dinheiro para o manter. Ninguém o quer comprar assim magrizela e doente como está, vou antes pô-lo à solta. Ele que coma a erva na berma da estrada, e se morrer, bem ainda melhor para ele.”
Desta forma, o velho cavalo foi posto à solta e daí em diante passou a procurar a erva para comer por entre as pedras do caminho e bermas das estradas. Como era velho e doente, manquejava e fazia uma triste figura. Os rapazinhos ao vê-lo atiravam-lhe pedras e corriam atrás dele para se divertirem. Os cães ladravam para ele e davam-lhe dentadas quando se aproximava das casas e quintas onde viviam. Não havia ninguém, ninguém mesmo que tivesse qualquer dó dele.
Num dia quente de Verão, quando toda a gente se tinha acolhido a casa e as ruas estavam desertas, o cavalo conseguiu chegar até à entrada de Atri, ali onde estava a torre e o sino da justiça. Não havia ninguém ali devido ao calôr que fazia, por isso o cavalo conseguiu avançar sem que o espantassem, o batessem ou lhe atirassem pedras. Cheio de fome aproximou-se do centro onde de longe, apesar do problema de vista, avistou o pedaço da vinha com folhas tenras ainda — acabado de colocar na corda aquela manhã. Lentamente, e sôfregamente o cavalo aproximou-se. Estendendo o pescoço pôs-se a comer das folhas tenras da vinha. Chegou a um ponto, porém, em que teve que aplicar mais força para conseguir uma folha. Assim puxou, e ao puxar fez com que o sino da justiça começasse a tocar. O povo da aldeia toda ouviu o som. Parecia dizer:
Pobre de mim, pobre de mim
venham, venham!
Será justo que o meu dono
O meu dono
Fizesse isto a mim?
O meu dono
O meu dono,
Bom não é
Bom não é.
Não me trata bem
Nada bem
Nada bem!
Os juízes ouviram o sino. Depressa se prepararam para mais uma sessão de tribunal e apesar do calor insuportável dirigiram-se para o centro da cidade. Ao chegar à praça notaram o velho cavalo.
“Este é o cavalo daquele cavaleiro avarento que mora ali em cima. Ele pede por justiça, está se vendo. O velho não foi muito bom para ele, isso não foi! Que justiça lhe seja feita.” Disse um dos juízes.
Mais gente veio ter à praça e calados confirmavam a falta de justiça, e afirmaram para os juízes o terem observado o cavalo abandonando pelo dono, enquanto esse estava em casa a contar o seu dinheiro e fazer cálculos pouco se importando pela sorte daquele que lhe tinha sido um fiel amigo.
“Tragam esse homem avarento aqui–que se venha explicar,” gritou um juíz.
Quando o avarento chegou os juízes disseram:
— Tu usaste este cavalo muitos anos e ele foi para ti um bom cavalo. Sem ele não terias conseguido a fortuna que conseguiste. Por isso, homem, a nossa sentença é que metade da tua fortuna seja usada para que ele tenha abrigo e comida, incluindo um pasto onde ele possa comer à vontade para o resto dos seus dias. Isto, homem a nossa decisão ou o tu perderes tudo o que tens.
Sem outro remédio, o velho avarento desde essa altura em diante teve que se desfazer de parte do seu dinheiro, isso para que o cavalo que ele deixara ao abandono fosse tratado com justiça—tivesse sempre fartura em sua frente, um estábulo em condições e um vasto prado de erva verde e apetitosa. Essa a justiça de Atri para um pobre, velho e acabado cavalo que um dia por sorte também tinha tocado o sino de Atri.
Conto traduzido de um conto relatado por James Baldwin (1841-1925) fundador da companhia de livros escolares the American Book Company.
Silvério Gabriel de Melo – Vogelbach, Alemanha