A Memória Suspensa
José Carlos de Almeida, 42 anos, licenciado em Filosofia e em Direito, actualmente professor numa Escola Secundária.
Publicou dois manuais de filosofia, uma banda desenhada em co-autoria, um volume de poesia (Metalonímias, Ed. Limiar, Porto), Prémio de Revelação da APE.O conto que publicamos foi enviado à Ficções como proposta de colaboração.
A Memória Suspensa
De repente, começou a temer a morte. À medida que, sem querer, lhe iam ocorrendo lembranças passadas há muito tempo, temeu que se tratasse duma espécie de balanço antecipado, a súbita consciência plena da sua história, o livro completo ou quase a completar para fecho de contas, a sensação de que nada havia para a frente, que o futuro se tinha esgotado e amarrotado perante o peso cada vez maior do passado. Foi por isso que começou a pensar em direcção a coisa nenhuma, tentando evitar constantemente a memória do passado, querendo apenas pensar sobre o futuro, como se ele, afinal, fosse ainda uma caixa de surpresas e esperanças recompensantes. Como se essas imagens do futuro lhe insuflassem uma nova vida e esconjurassem a morte. Por isso deu início a um processo lento de apagamento da memória. Abandonou a casa e o emprego, mudou de cidade, deixou para trás os livros, o café e os amigos. Abandonou a família. Deu um novo corte ao cabelo e deixou crescer a barba, como sempre desejara.
Deslocou-se para o interior. O interior do país, não de si mesmo. Mas na altura, olhando o rosto e os modos dos seus compatriotas achou melhor mudar de país. Sentia, como eles, o peso da história. E isso incomodava-o. Mudou de país. Assim fez. Escolheu um país ao acaso. Durante a viagem vendeu o carro a uma família de camponeses que lhe deu abrigo por umas noites, enquanto pensava melhor na sua decisão. Quando vendeu o carro percebeu que, inconscientemente, estava a dificultar o seu regresso. Que não queria regressar. Nunca tinha andado a pé e decidiu que era isso que queria fazer. Primeiro, hesitava entre os caminhos, quando chegava a um cruzamento, depois deixou de hesitar. Apenas sabia que de manhã queria enfrentar o sol e à tarde queria caminhar sentindo-o a bater nas suas costas. Nos dias mais enevoados fazia uma paragem e dormia. O seu único consolo era saber que ia deixando a sua história para trás de si como uma cobra que larga a sua pele. Por isso não parava de caminhar.
Chegado ao país que lhe coubera em sorte acabou por reparar, apesar dos milhares de quilómetros de distância da sua casa, que havia muitos pormenores que evocavam a sua terra e o seu passado. Por essa razão, não perdeu muito tempo e pôs-se de novo a caminhar. Atravessou o mar. Durante várias semanas viveu no porão de um navio mercantil. Conheceu gente que apenas conhecia de ouvir dizer. Não os entendia pois falavam línguas estranhas. Mas era isso que ele procurava. Sentir-se absolutamente estranho. Mas nenhum lugar lhe era completamente estranho e, por esse facto, não parava em parte alguma. Apenas o tempo suficiente para recuperar forças e fazer-se de novo à estrada. Finalmente desfez-se dos seus documentos, lançando-os numa ponte. Já vira muitas vezes essa cena no cinema, e se o fazia desse modo era porque seria a melhor maneira de esquecer todos os filmes que vira. E das circunstâncias em que os vira. O seu olhar tornou-se bondoso e aprendeu a convencer as autoridades. Não inspirava nenhum perigo. Por fim, esqueceu-se do seu nome. Também era verdade que não precisava mais dele para nada.
Ninguém precisava do seu nome. Ele não precisava do seu nome. Não queria ouvir mais o seu nome. E ele próprio já se começava a esquecer de si próprio. Muitas vezes tinha que se sentar à beira do caminho, quando sentia que aquilo que sobrava de si mesmo, se atrasara. Até que percebeu que o que pretendia era precisamente o inverso. E começou a apressar o caminho e a encurtar os períodos de descanso. Aprendeu a largar-se de si mesmo. Como isso era importante!… Atravessou de novo os mares e alguns continentes. O que viu nunca vira. Mas não se demorava a ver. Atravessava as cidades mais populosas de uma forma quase imperceptível. Evitava parar nas cidades. As montras e os espelhos das cidades podiam ser fatais. Se alguém se demorava mais tempo a olhar para si, partia logo a correr. Temia ser reconhecido. Ou reconhecer no olhar do outro, olhares ainda alojados no fundo da sua memória.
Não se queria ver a si mesmo, embora sentisse que não se reconheceria. Mas não queria correr riscos. Só os correria quando já não sentisse qualquer risco. Por isso escolhia os campos. Preferia os caminhos mais estreitos. Os atalhos.
Quando, por acaso, escutava alguém a falar, apercebia-se que continuava a atravessar países. Até que um dia chegou a uma cidade completamente desconhecida. Achou que era um bom lugar para ficar. Nada do que via à sua volta lhe era familiar. Pela primeira vez, nada lhe dizia alguma coisa. Que local estranho, mas agradável, pensou. Pela primeira vez sentia-se completamente vazio. Entretanto, porque ganhara esse hábito, continuava a dar grandes passeios pela cidade, a passo vigoroso, grandes passadas, de forma apressada, quase louco, não ligando a nada à sua volta. Caminhando, apenas caminhando. O que fez nos primeiros dois dias que chegou à cidade, caminhando dia e noite, repetindo os lugares, as avenidas, as ruas, os becos, os jardins. Para ter a certeza de que nada lhe suscitava qualquer lembrança. Por fim, já extenuado, resolveu entrar numa casa. Bateu à porta e mandaram-no entrar para a sala. Uma mulher e duas crianças apareceram-lhe pela frente. Olhavam para ele, incrédulas. Pela primeira vez, desde há muito tempo, o homem olhava para si próprio e reparou em si mesmo. A roupa esfarrapada, quase descalço, as longas e sujas barbas, a magreza acentuada do rosto. Libertava-se dele um cheiro fétido. Mas a mulher e as crianças sorriram para o vagabundo. Tinham passado quase dois anos. Eles não sabiam o que dizer.
– Não me perguntem nada. Tive um dia esgotante.
E dito isto, o homem foi-se sentar no sofá, exactamente onde se sentava todos os fins de tarde quando regressava a casa, exausto e triste.
José Carlos Almeida