Ele e Ela
A Júlio César Machado
Meu velho amigo: – Aqui tens a história que ontem me contou, ao separarmo-nos de ti depois de jantarmos juntos, aquele sujeito que tu conheces.
Eu tinha chegado de um porto de França em companhia de uma alemã, que entrevira em Paris, e com quem me encontrei depois a bordo do paquete que tinha de nos trazer ao Tejo. Era uma senhora de maneiras muito graves e de fisionomia perfeitamente distinta, sincera e despresumida, como quasi toda a gente dessa bela raça germânica, que floresce em todos os climas como na sua pátria, e aceita toda a convivência como a da sua família.
Desembarcámos no Terreiro do Paço. Ela vinha tão abatida e alquebrada pelos efeitos de uma viagem tempestuosa no grosso mar da Gasconha e da Mancha, que eu determinei-me, contra os usos do país a que me recolhia, a oferecer-lhe o meu braço para passearmos por um momento à réstea vivificadora do sol de Lisboa no mês de Janeiro.
Soube então que a minha simpática dama se encontrava só na capital, e tinha de partir para o Porto, assim como eu, no dia imediato. Falámos por algum tempo, ela das suas saudades, eu das minhas recordações, até que a acompanhei numa carruagem ao hotel de Bragança, onde ficámos de reunir-nos na manhã seguinte, para seguir no caminho de ferro para a cidade das camélias.
À hora aprazada fui encontrar-me efectivamente com ela e achei-a pronta para partir, radiante de saúde, vestida com um trajo de primavera, tendo um ramo de flores junto do rolo do seu édredon, e mostrando-se maravilhada da suave brandura do clima e da engenhosa convenção que levava os habitantes a usarem paletot, com o fim de fazerem acreditar uns aos outros e a quem viesse de fora que também por cá se tinha inverno.
Saímos a pé pelo braço um do outro, e fomos almoçar a um café, fazendo horas para chegar a Santa Apolónia a tempo de entrar no trem e partir.
Achámo-nos no vagão, acompanhados unicamente de um respeitável ancião, o sr. S. M., que lia filosoficamente um número do Diário de Notícias no canto do compartimento oposto àquele em que nós ficámos um defronte do outro.
Estava com efeito uma bela e donosa manhã sem calor nem frio, sem nuvens no céu, sem lama na terra e sem pó no ar.
De um lado a frescura das laranjeiras e o reluzente viço das hortas que bordam a estrada até o Carregado, e do outro o límpido cristal do Tejo em plena majestade iam-nos acompanhando como um sorriso e um afago da natureza em hora de bom humor.
A minha companheira de viagem tinha remoçado cinco anos com este brando acolhimento do amorável país do seu exílio. Estava buliçosa como um estudantinho, tinha desemolhado o seu ramalhete à força de o respirar com frenesi, até deixar ver toda a alvura dos seus pequeninos dentes com a infantil alegria de uma felicidade inteiramente desanuviada, e era muito bonita, assim contente e alegre.
Pelas quatro horas da tarde estávamos perto de Aveiro e principiava a desenrolar-se aos nossos olhos a esplêndida paisagem do norte de Portugal. As campinas estavam virentes e viçosas como em plena primavera, o sol inclinava-se para o ocaso entre uns ténues vapores de opala e de ouro, respirava-se a brisa fragrante das ondas e havia no ar como um fluido de melancolia e de saudade. Era a plácida morbidez de uma tela de Correggio.
A jovem alemã, que eu tinha defronte de mim, havia tirado o chapéu e recostado para trás a sua bela cabeça, aureolada por uma espécie de vaga irradiação proveniente do azul dos seus olhos e da expressão dos seus lábios arqueados num sorriso triste como o dos sonhadores, dos namorados e dos poetas.
Eu atirei fora um charuto que ela me permitira acender, e preguntei-lhe como lhe parecia a paisagem que íamos vendo.
– Ideal murmurou ela, quasi num suspiro.
Este laconismo deixou-me entender que estava com uma verdadeira apreciadora do belo, uma dessas criaturas privilegiadas em quem a contemplação dos grandes espectáculos da natureza entumece o coração e supita a palavra fazendo bailar as lágrimas nos olhos. Entendi que não devia perturbar o seu pensamento, a sua ilusão talvez, ou por ventura o seu êxtase, e pus-me a olhar silenciosamente para ela.
Ao cabo porém de meia hora não pude resistir à tentação de lhe dizer:
– Que horas estas para dois entes que se amassem!
– É verdade, confirmou ela.
– Como deve ser bom, nestes momentos em que a saudade vaga e indefinida nos inunda como um banho de recordações, de esperanças e de afectos, ter junto de nós um honrado e leal coração que nos entenda e nos ame, e poder a gente casar ternamente com o hino do crepúsculo, o hino da sua alma! Dá-me licença que a ame…
Ela fitou-me com um olhar penetrante. – … por cinco minutos? terminei eu – ou por um quarto de hora?… daqui até se pôr o sol? No fim desse prazo recebe cada um os protestos que adiantou, retira as juras que fez, e fica senhor de si como dantes. É como quem joga a tentos.
– Assim, pode ser, disse-me ela rindo, mas verá que se aborrece antes de chegar ao meio da partida…
– Porquê?
– Porque não faz uma vasa.
– Quem sabe? Conforme o lado para que ficarem os trunfos.
– Demos então as cartas.
– Eu principio. Conto trinta anos de idade, sou pobre e tenho o coração ocupado, mas deu-me Deus um génio apaixonado. . . sincero! Entendo eu que uns dedos fininhos, cor-de-rosa, elegantemente tratados e perfumados são feitos para receber de quando em quando um beijo; que um olhar inteligente e suave deve descer ao fundo da nossa alma, se nós temos uma alma pura, e dessedentar-se nela como uma pomba em um lago; que a elegância, o espírito e a educação de uma mulher amável devem em todo o tempo receber o culto da admiração e do reconhecimento de um homem de bem, porque é certamente para os homens de bem que Deus permitiu a amabilidade às mulheres honestas…
– Mas é amizade o que me está dizendo e o que eu mais prezo! E a única pessoa que conheço em Portugal, e já ninguém poderá agora evitar que seja o meu primeiro amigo… Vou-lhe fazer também as minhas confidências. Tenho contraído grandes encargos de coração. Acredita que seja possível amar-se por cartas muito tempo?
– O amor em cartas, objectei-lhe eu, é como um jantar de que não nos oferecem senão a lista. Nada obsta a que seja o mais sumptuoso, mas não é por certo o mais nutriente … No entanto como em tais banquetes dizem que é a imaginação quem prepara as iguarias mais delicadas…
– Eu creio que sou amada…
– Por alguém que está longe! a quem escreveu esta manhã uma carta de consolação, de resignação e de esperança… uma carta que dentro de oito dias o há-de fazer chorar, e que ele há-de trazer por muito tempo junto do coração como uma santa relíquia… E em troca desta carta há-de mandar-lhe outra escrita ardentemente com as lágrimas do coração e com o sangue das veias, a qual, antes e depois de se saber de cor, será lida e relida todos os dias entre a oração da manhã e o piedoso beijo deposto no retrato de sua mãe. Veja que ideal ventura! o prazer de amar sem ter do amor o que há nele mais impertinente e mais prosaico: as imperfeições que a convivência descobre e multiplica! E, depois, dentro de um ou dois anos, o prazer de tornarem a ver-se! Aparecer-lhe mais bela, porque a saudade e a esperança poetizam, melancolizam, tresdobram a beleza; e encontrá-lo mais velho, e portanto mais expressivamente homem e mais expressivamente simpático! tê-lo finalmente ao seu lado…
(E, nisto, passei para o lado dela, e sentei-me no mesmo sofá em que ela se achava.)
– Ouvi-lo, continuei eu, ouvi-lo falar-lhe da ausência e do futuro comum, pondo-lhe aos pés o seu amor, o seu nome e a sua liberdade! Possa Deus reuni-los cedo e não o matar a ele de felicidade na hora suprema em que a vir, sendo-lhe permitido, em paga do seu amor constante, beijá-la na fronte longamente e inebriar-se com a certeza de ser amado pela mulher mais adoraveImente meiga, mais terna e mais simpática!
Chegado a este ponto, e falando-lhe já, insensivelmente, com muito mais veemência e afogo do que se emprega para conversar, peguei-lhe nas pontas dos dedos, levantei a mão que ela tinha caída no regaço e pousei os lábios no debrum da luva.
Ela então levantou o cabazinho de viagem, que estava colocado entre nós ambos, segurou-o nos joelhos, desafivelou a correia que lhe segurava a tampa, e dando-me uma laranja que tirou de dentro, disse-me com a gravidade indulgente e bondosa de um enfermeiro ou de um médico:
– Prescrevo-lhe o regime refrigerante.
– Por Deus, me parece que estava precisando da receita! tornei-lhe eu, pondo-me a rir.
E, voltando para o lugar que primeiramente ocupava defronte dela, principiei a descascar a laranja e a morder com apetite nesse fruto, que não era por certo o fruto proibido.
– Sim, senhor? ia-me dizendo no entanto a minha graciosa companheira, baralhou bem as cartas e arranjou bom jogo!
– Ah! então confessa . . .
– Confesso-lhe que sim.
– Posso oferecer-lhe da minha dieta? preguntei eu, dando-lhe metade da laranja.
Ela separou um gomo.
– Quando acabar, podemos continuar.
– Continuo imediatamente, cortei eu logo, debruçando-me na portinhola para cuspir uma pevide que tinha nos beiços.
Senão quando a corrente do ar cortado pela locomotiva levou-me da cabeça o meu chapéu.
Preciso abrir para este objecto perdido um parêntese, de cuja substância Deus me livre que se soubesse! Tinha sido feito em Paris por – Pinaud & Amour – esse bonito chapéu tão flexível, que se meteria dentro de um sobrescrito! Era de casimira azul como a minha jaqueta de viagem, forrado de azul-claro com debrum pespontado de seda preta. O próprio Amour me tinha dito ao vender-mo por vinte francos – Cela vous coiffc à merveille
– e eu tinha tido a criminosa fraqueza de o acreditar! Aquele chapéu não era para mim somente um chapéu, era um elmo e um arnês. Não me considerava simplesmente coberto quando o punha, considerava-me também armado. Queres que te confesse a verdade? Eu não me teria nunca atrevido a apertar os dedos da minha alemã, nem a beijar-lhe apaixonadamente a luva, se o não trouxesse na cabeça, e era realmente muito mais com o talento dos srs. Pinaud & Arnour, do que com o meu próprio, que eu contava para me fazer passar junto dela por um homem de espírito !
Os cabelos despenteados pelo vento tinham-me caído para cima dos olhos; compreendi que estava ridículo, não podendo esconder este ar sumamente tolo de todo o homem a quem de repente desaparece o chapéu na asa de um tufão.
Ela ria às gargalhadas, as quais me caíam na cabeça… na cabeça não – pelas costas abaixo! – como torrentes de água nevada.
O sr. S. M., de quem confesso que me tinha completamente esquecido, e que continuava sempre a sua viagem no nosso compartimento, apiedou-se de mim, e, lançando generosamente a mão à rede da carruagem, baixou nos seus braços uma caixa de chapéu do tamanho de um gasómetro, e disse-me assim:
– Tenho aqui com que lhe valer!…
Entendi que rabearia um castor inteiro para fora daquela toca ambulante, e ia conter com um gesto a benevolência do meu delicado companheiro, quando ele me observou, rebatendo o meu susto com um sorriso:
– Não é o que cuida! Está cá dentro o objecto que lhe convém.
E dizendo isto, sacou da chapeleira, suspenso por uma aparatosa borla de retrós preto, um barrete de veludo ornado de amores-perfeitos bordados a matiz.
Hesitei por um instante entre aceitar o barrete, o que era hediondo, e confessar-lhe medo, o que era pueril. Revesti-me finalmente de todo o meu valor e estendi a dextra para o inocente carapuço, que estava sendo na mão do sr. S. M. gládio da suprema justiça, alfange exterminador da minha pecadora vaidade. Fechei em seguida os olhos como quem vai lançar-se em um abismo, peguei no barrete com ambas as mãos, levantei-o à altura do rosto, deixando-lhe a borla pendente, entreabri os olhos e vi o monstro boquiaberto… Tornei logo a cerrar as pálpebras, e meti a minha infeliz cabeça no seu novo envólucro!
Estava consumado.
A minha gentil companheira deu-me o golpe de misericórdia inclinando-se para mim, pegando-me em ambas as mãos e dizendo-me entre duas gargalhadas:
Valor! acredite… que o amo.
Respondeu-lhe o silêncio da morte. O barrete de veludo, circundado do matiz dos amores-perfeitos, cuja borla me caía como o crepe funerário de uma lança ao longo da orelha esquerda, era o túmulo e o epitáfio das minhas ilusões dêsse formoso dia!
Ser amado, tendo na cabeça um barretinho de veludo com sua borlazinha ao lado, pedindo para cima da outra orelha a pena de pato ramalhuda e majestosa, insígnia burocrática do guarda-mor pontual e do tabelião zeloso! Ser amado, e ouvi-lo assim dizer nessa hora tremenda pela boca mais engraçadamente zombeteira a que Deus permitiu a momice da provocação! Que havia de retorquir eu em tão horrorosa conjuutura? Mover-me para fazer bambolear sobranceira ao meu coração aquela borla fatal como o espanador dos meus afectos juvenis? ajoelhar-me aos pés dela e pôr-lhe nojosamente no regaço aquela cabeça do feitio e da fazenda de uma afrontosa almofada de costura, ou de uma ignóbil pregadeira de alfinêtes?!?
Assim os perdi pois, para todo sempre, a ambos: a ela e a ele; a mais encantadora alemã que meus olhos têm visto e o mais bonito chapéu que em minha cabeça tenho pôsto!
Encerra esta pequena história a imagem da felicidade e por isso ta dedico a ti, meu querido Júlio, a quem a desejo mais completa e mais perfeita. O que é desgraçadamente a fortuna senão esse chapéu que um pé-de-vento arrebata, e esse amor que a presença de um barrete extingue?
Ramalho Ortigão