Não custa nada imaginar que uma nova arte está para nascer
Se eu tentasse entender o que hoje se chama de arte contemporânea -que, aliás, tem um número indeterminado de definições-, teria que me ater a dois fatores fundamentais: a arte e a técnica.
Aliás, esses são os fatores inevitavelmente presentes em todas as manifestações artísticas, quaisquer que tenham sido os rumos que elas tenham tomado.
Para me fazer entender melhor, devo me referir a alguns movimentos altamente significantes da arte ocidental que marcaram época e definiram o futuro dessa arte.
Um dos exemplos do que digo foi a fase da arte constituída pela pintura mural, quando a expressão criativa se confundia com o próprio processo de elaboração da superfície pintada, no muro.
Nessa etapa da pintura, tanto a matéria pictórica quanto a cor nasciam no mesmo material que constituía a parede. Como o próprio nome está dizendo, essa arte era própria do muro, ela nascia no muro, da terra, dos detritos, do pó colorido, enfim, de tudo aquilo que constituiria a parede de uma capela, do mural de um convento. Uma coisa dependia da outra. Não havia, consequentemente, a expressão pictórica autônoma, fora da parede.
Surgiu então a tela, o que significou por si só uma revolução da parte pictórica que duraria por séculos. Se você levar em conta que, para realizar a pintura mural, era necessário o muro, imagine o que significou a descoberta da pintura a óleo, que, por sua vez, possibilitou pintar sobre superfícies autônomas, pintura que não dependia da parede, dando nascimento ao que se passou a chamar tela.
Como a tela não tem que estar inevitavelmente pendurada na parede, surgiu a possibilidade de o pintor realizar tantas telas quanto quisesse, onde lhe fosse permitido. Isso deu origem aos colecionadores de arte e aos museus, que passaram a exibir e a manter em seus acervos dezenas e até mesmo centenas de obras pictóricas. Como se não bastasse, esse fato fez nascer o mercado de arte, que deu um impulso extraordinário às realizações pictóricas.
Além do mais, a pintura a óleo possibilitou o aperfeiçoamento técnico da pintura, emprestando-lhe o caráter realista nunca obtido antes. Não posso dizer se foi esse caráter realista que deu origem à fotografia -a verdade, porém, é que a capacidade que a fotografia possibilitava, não de imitar a imagem real, mas de captá-la, determinou uma verdadeira revolução na arte da pintura. De certo modo é daí que nasce a pintura impressionista, que determinaria uma mudança radical na história da pintura.
A partir de então, em vez de pretender copiar fielmente a realidade exterior, a pintura, por assim dizer, passa a inventá-la. De fato, uma paisagem de Monet não tem qualquer propósito de retratar o mundo objetivo tal como ele se apresenta à lente fotográfica, pelo contrário, os recursos pictóricos passam a ser usados para exprimir a experiência subjetiva no mundo real.
Nasce uma nova pintura que quer ser, ela mesma, uma expressão outra do mundo objetivo. Não por acaso Cézanne afirmava que “a maçã que eu pinto não é maçã, é pintura”. Mas o impressionismo foi apenas o início de uma transformação que mudou drasticamente a arte do século 20. Aquela frase de Cézanne trazia nela embutida uma mudança radical que começa com o cubismo de Picasso e Braque.
Como tudo o que estivesse no quadro se tornaria pintura -isto é, arte-, introduziram na tela tudo o que se poderia imaginar: envelope de carta, recorte de jornal, areia, arame e o que mais lhes desse na telha. Pouco depois, Marcel Duchamp afirmava: “Será arte tudo o que eu disser que é arte”. E, então, expôs em Nova York um urinol produzido industrialmente assinado com o pseudônimo de R.Mutt. Estava aberto o caminho para o vale-tudo. Por isso mesmo as Bienais internacionais expõem tudo o que se possa imaginar. A conclusão inevitável é que o que até aqui se chamou de arte já não o é.
Mas, assim como no Renascimento, surgiu uma nova linguagem artística que mudou a história da arte. Assim, não custa nada imaginar que, em função das novas tecnologias, uma nova arte esteja para nascer.
NOTA DA EDIÇÃO
Ferreira Gullar, morto aos 86, de pneumonia, no domingo (5), ditou esta última coluna para a neta Celeste na cama do hospital.
Com pouco fôlego, teve de fazer pausas para descansar. “Quando eu perguntei se preferia terminar outro dia, ele disse que não, porque não sabia o que poderia acontecer”, afirmou Celeste.
“Ele me falou uma vez: ‘Eu adivinho as coisas’. Acredito que sim. Então ficamos aguardando essa nova arte que nascerá da tecnologia. Qual será?”