O artista surge não da loucura, mas apesar dela
O Instituto Junguiano, em homenagem à dra. Nise da Silveira, promoveu uma série de debates, no Rio, sobre a sua obra generosa e inovadora no campo da psiquiatria. Tive nisso uma participação mínima porque o chofer encarregado de levar-me até o local do evento desconhecia as ruas de Botafogo e, por essa razão, rodou comigo quase uma hora sem encontrar o endereço. Terminei chegando lá, com a ajuda de um casal que, vendo-me perdido, prontificou-se a me ajudar.
Tudo bem, lá cheguei, pedi desculpas e falei um pouco sobre Nise, de quem fui amigo nos idos dos anos 1950. Conheci-a graças a Mário Pedrosa, nosso grande crítico de arte, cuja casa eu frequentava junto com outros escritores e artistas.
A dra. Nise, recém-formada em psiquiatria, foi trabalhar no Centro Psiquiátrico Nacional, que ficava no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio. Como não se adaptou ao tipo de tratamento psiquiátrico da época (choques elétricos, por exemplo), o diretor do hospital, para não demiti-la, encarregou-a da ocupação terapêutica dos internados, ou seja, orientá-los na limpeza dos banheiros, dos quartos e estimular as brincadeiras durante o recreio.
Sucede que ali trabalhava um jovem pintor —que se tornaria conhecido anos depois— chamado Almir Mavignier, que sugeriu a inclusão, na ocupação terapêutica, do trabalho artístico: pintura, desenho, cerâmica. Ela topou com entusiasmo e, em breve, naquele ateliê surgiram artistas de surpreendente capacidade criativa.
Nise mostrou essas obras a Mário Pedrosa, que se empolgou com o talento de alguns daqueles pacientes e escreveu sobre a extraordinária experiência que ali se realizava. Os demais críticos de arte reagiram: doido não faz arte. Eu, que começava a escrever sobre arte, também me empolguei e passei a visitar o ateliê do Engenho de Dentro.
Mas eis que um dia, próximo do Natal, a dra. Nise pergunta aos seus pacientes o que queriam de presente. Emygdio de Barros, um dos gênios da turma, respondeu: “Quero um guarda-chuva”. Ela se surpreendeu e se perguntou: “Por que ele quer um guarda-chuva se vive aqui dentro, onde não chove?” E concluiu: “Já sei, ele quer ir embora do hospital”.
Perguntou a ele, que confirmou: queria ir para casa. Pedrosa, ao saber disso, ficou preocupado, pois Emygdio iria parar de pintar. Disse isso à dra. Nise e inventou de fazer uma exposição dos quadros dele para vendê-los. Com o dinheiro apurado, compraria telas, pincéis e tintas para ele levar consigo. A exposição foi feita, mas ninguém comprou nada. Mário, então, comprou cinco telas e, com esse dinheiro, adquiriu o material de pintura que Emygdio levou para casa. Mais tarde, no dia meu aniversário, Mário me deu de presente uma das telas de Emygdio, que tenho comigo até hoje.
Passaram-se uns dois anos quando alguém bateu à porta do consultório da dra. Nise, no Centro Psiquiátrico Nacional. Ela abriu a porta e quem apareceu à sua frente foi Emygdio, de paletó, chapéu e uma maleta na mão.
—O que aconteceu, Emygdio? —perguntou ela, surpresa.
—Estou voltando para o hospital. Em minha casa não consigo pintar.
E assim voltou ele a trabalhar no ateliê onde se inventara pintor para a alegria de todos nós. Ao completar 80 anos, tempo limite para permanecer internado, Nise conseguiu para ele um lugar num asilo de idosos, onde foi viver os últimos anos de sua vida.
Dra. Nise se apaixonou pelas obras daqueles artistas que hoje integram o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por ela em 1952 para preservar não apenas aquelas criações artísticas, mas também o que significavam para ela como expressão do que há de insondável na mente humana.
Costumo dizer que não é a loucura que gera o artista; pelo contrário, o artista é artista apesar da loucura. Tanto isso é verdade que, dentre dezenas de pacientes que trabalharam naquele ateliê, só alguns criaram verdadeiras obras de arte.