Memória curta

Memória curta

Não sei ao certo quando esse meu problema de memória começou. Não me lembro. Só sei que com tenra idade minha cabeça encheu-se e começou a transbordar. A cada memória nova que tinha, uma antiga tinha que sair. Mais ou menos parecido como quando recebemos aquelas mensagens do computador: “espaço insuficiente no disco” e daí temos que apagar alguns arquivos velhos para salvar os novos.

Com a minha memória, entretanto, não era assim tão simples, uma vez que não era eu a escolher o arquivo a ser deletado, o acontecimento a ser esquecido. As vezes era coisa sem importância como uma piada, um filme ou um sonho, as vezes compromisso importante. As vezes coisa recente, as vezes diletas memórias de uma passado longínquo.

No começo, confesso, enfrentei grandes problemas, mas depois com o passar dos tempos e tendo criado um método que se baseava em associações e anotações comecei a levar uma vida tão normal quanto possível. Isso se pudermos considerar normal uma vida ditada por cabeça tal qual a minha, formada de um mosaico de memórias aleatórias.

É lógico que procurei a medicina, mas médico algum, brasileiro ou estrangeiro conseguiu sequer me presentear com um diagnóstico, muito menos tratamento. Se era doença, era eu o primeiro enfermo dessa natureza.

A escola, tive que abandonar e me dedicar a atividades mais rotineiras, à que pudesse me acostumar, habituar-me. Coisas que depois de algum tempo já fazia por instinto. Como um cão.

É claro que não foi uma vida das mais fáceis, mas julguei haver sinas piores. Isso até que a conheci.

Era sem dúvida a flor mais bela que já havia nascido no meu canteiro e a mais perfumosa. Apaixonei-me de imediato e me dediquei de corpo e alma. Não chegamos a passar muito tempo juntos, mas as memórias contidas nesse curto período me eram as mais caras, ainda que por causa delas tivesse tido que enfrentar sérios problemas. Tal quando comecei a esquecer das pessoas, mesmo as de mim mais próximas, ou quando me esqueci por completo não só meu endereço, mas todos os caminhos de minha própria cidade. Era como se tivesse me mudado de país e tudo e todos eram estranhos, exceto ela.

Teria esquecido de tudo e morreria satisfeito se só dela me lembrasse, mas antes que com doces lembranças eu pudesse encher o meu disco rígido cerebral, a perdi. Levada de mim ela foi por uma doença rápida e implacável, não como a minha, mas não menos desconhecida. Um dia estava bem e no outro amanhecera morta. Seu rosto, de traços suaves, a pele alva como cal e seu corpo coberto pelas flores que preenchiam os espaços vazios do caixão, eram minhas últimas recordações.

Essas memórias, reconheço, as queria apagar, mas como já bem disse, não cabia a mim tal escolha. Tal domínio sobre o que ficava e o que saia de minha cabeça era a outrem reservado.

Meu próximo passo foi, no entanto, decisão toda minha. Admito que talvez tivesse agido diferente não fosse ter acordado naquele dia e percebido com profunda dor, que o rosto que me aparecia em sonhos e emoldurado na parede do meu quarto já não tinha mais um nome. Me esquecera do nome dela e com certeza teria esquecido tudo mais sobre nós dois, caso não tivesse com um tiro no peito, tirado minha própria vida.

Travesso da Jubé

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