Máquina de Amar
Estava acordado há exatamente oitenta e cinco horas e trinta e oito minutos. Não serei tão preciso quanto aos segundos, que pareciam passar com uma velocidade assombrosa, mais rápido que o som ou mesmo a luz. Os olhos vermelhos e as pupilas dilatadas indicavam que, além de sono, Pedro estava sob efeito de cafeína e estimulantes. Não poderia parar agora, não quando tudo estava quase no fim. Quase pronto, salvo alguns parafusos, porcas e retoques finais.
Sobre a mesa, as inúmeras ferramentas que usava estavam espalhadas, juntamente com a trigésima oitava xícara consecutiva e fumegante de café, para a qual ele se dirigia e bebia um longo gole a cada bocejo. A mão esquerda segurava uma chave de fenda, e a direita alisava o aço frio no qual trabalhava.
Um amor. De aço inoxidável, fibras de carbono e inteligência artificial primitiva.
Olhou para o relógio pela enésima vez, enquanto as caixas de som do computador estouravam na voz do jurássico David Bowie. Sexta-feira, duas e vinte e três da manhã. Ruas lotadas de voluptuosas prostitutas, musculosos encrenqueiros e abastados festeiros. Todos aproveitando o início do fim de semana. Sexo, drogas e rock ‘n’ roll. Pedro tinha todas as opções, excetuando-se a primeira. Por enquanto.
Provara o amor de uma prostituta pela primeira vez aos dezesseis. Sozinho, partira para a noite, depois que a mãe se entorpeceu de soporíferos e desabou na cama, praticamente em coma. E lá foi ele, provar do etéreo sabor do sexo. O sabor doce que todos falam e que a masturbação afirma ser a melhor das sensações. Se, com apenas uma canhota era capaz de se atingir tamanho êxtase, o que se dirá de uma vagina por completo? Pagaria o que fosse necessário, e tudo seria apenas dele por algumas horas.
Pegou o dinheiro da bolsa da mãe, e, com os pensamentos de uma noite de completa loucura e luxúria, partiu para a penumbra da capital urbana.
Não foi difícil encontrar o produto. Ruas apinhadas, produtos a mostra para todos os gostos. Dos dez aos cem: meninas cheirando a leite, com maquiagem carregada e vocabulário chulo, cobrando uma prata por minuto de sexo oral em um canto obscuro; mulheres de vinte e poucos anos com aspecto de quarenta, disputando lugar com travestis, puxando facas e tesouras na briga pelo melhor ponto da esquina, vestindo apenas roupa íntima, usando cílios falsos, loções vagabundas e batons borrados; velhas, magras, gordas, novas.
Parou, pensou e analisou. Recebeu propostas de homens e mulheres, de crianças e vovós. Recusou todas. Continuou andando, apreensivo, as mãos suando. Medo. Medo do desconhecido, medo da escuridão. Primitivo medo, que só conseguia superar com um abajur.
Uma delas se aproximou. Não mais de vinte e cinco. Cabelos cacheados, pele morena, lábios carnudos e tingidos de vermelho. Levantou a blusa, pôs os seios à mostra. Trinta reais, meia hora. Cinqüenta, uma hora. O preço.
Ele aceitou. Pagou rapidamente, e, juntos, foram para o motel.
Tamanha decepção! Seios lindos, perfeitos, mas só. Pela escuridão e pelo pouco tempo, não teve a oportunidade de ver as cicatrizes quando ela elevou a blusa na rua. Grandes e gritantes, percorrendo todo o corpo da mulata. Vinham de cima a baixo, do umbigo ao dedão. Grandes e escandalosos, tornavam o toque a pele áspero. Mas ele não pensou nisso. A pele era o menor de seus problemas.
Ela o acariciou. Nem com amor nem com prazer. Com obrigação. A obrigação de quem foi paga para fazer aquilo acontecer. Não, o senhor Pênis não queria nada menos que carinho. Não quis acordar ante a mão suada e friorenta, com unhas postiças e cicatrizes escandalosas da prostituta. Ele simplesmente se recusava.
A puta ajoelhou-se, abaixou-lhe as calças e, mesmo sem progresso, enfiou o senhor Pênis em sua boca. Pedro não gostou. Não era como os filmes pornôs prometiam. Ele não gemia, com as mãos na nuca, e nem ela o acariciava como os diretores dos filmes mandavam que as atrizes fizessem. Ela simplesmente continuava ali, como se tivesse lambendo um dedo cortado. Sem amor, sem tesão. Sem nada. Só obrigação.
Já foi dez minutos, meu filho! Como é que é, vai ou não vai? – ela perguntou, impaciente, levantando-se e cruzando os braços.
Pedro levantou as calças, e, amedrontado, correu.
Foi embora do motel, voltou para casa, caiu na cama, afundou o rosto no travesseiro e chorou. Deixou a prostituta sem ação e a consciência pesada. Será que, no fim das contas, era como os gays que aprendeu a repudiar desde a infância? Não achou que aquilo fosse verdade, e creditou todo o fracasso de sua empreitada ao nervosismo. Tentaria de novo. Esperaria mais um pouco, até que a mãe ganhasse mais dinheiro. Dessa vez, tudo iria acontecer maravilhosamente bem. Ele tinha certeza.
Não aconteceu.
Dessa vez, uma loira, catorze ou quinze anos, pele macia e olhos azuis, sorridente. Como um anjo. Mas nem toda a beleza que Pedro demorara quase quarenta e cinco minutos escolhendo fez com que o senhor Pênis levantasse e fosse à luta. Pedro, desacreditado, voltou para casa.
Só tinha prazer quando usava as próprias mãos. Tentou mais três vezes, e, em todas, não teve êxito. Uma velha, uma gorda e um travesti. Pelos cálculos, gastou quase mil pratas em três meses, e não teve um minuto sequer de prazer.
Foi quando percebeu que o problema não era ele. Eram elas. As putas, machos e fêmeas. Elas não tinham amor. Tinham só obrigação. Essa era a diferença.
Resolveu investir em si mesmo. Entrou em um programa de reeducação alimentar, começou a praticar exercícios físicos e procurou um dermatologista para acabar com o problema de acne que o perseguia desde o início da puberdade.
O ânimo durou dois meses. Dois meses de fracasso. A mudança na alimentação o deixava irritadiço, os exercícios não surtiam efeito e a acne nunca lhe pareceu tão grotesca. “Antes de melhorar, tudo piora”, era o que diziam o nutricionista, o professor da academia e o dermatologista. Mas Pedro não se convenceu. Largou tudo, desistiu. Ninguém o notava. Fingiam que não existia, que era um ser insignificante. Como um cão manso. Todos sabem que está lá, mas não incomoda ninguém.
Passou os próximos anos solitário, escondido do mundo em seu quarto cada dia mais escuro e sujo, jogando RPG’s online e criando avatares de homens poderosos. Pelo menos no mundo virtual seria conhecido. Faria fama, ficaria rico.
Pelo menos.
A mãe morreu. A irmã teve um filho. A III Grande Guerra teve início. O mundo viu a queda da América do Norte, detonada por bombas chinesas. As pirâmides de Gizé finalmente cederam ao peso do tempo. As favelas cariocas ficavam cada dia maiores, sufocando o espaço do asfalto.
Pedro não viu nada disso. Vinte e dois anos depois, tudo o que ele sabia se resumia aos números de ataque, defesa e magia de seu avatar.
E robótica.
Pedro estudava robótica pela internet quando se cansava de seu jogo. Começou com cinco ou dez minutos por dia, lendo artigos sobre como construir seu próprio porta-lápis de metal e vendo matérias sobre R2-D2 e C3PO. Com o passar do tempo, foi se aprofundando nos assuntos. Aprendeu a construir uma luva térmica, uma câmera de vídeo, a reprodução de uma pata de cachorro, e também de um pé humano. Descobriu sobre inteligência artificial, sobre moldes e sobre metal inoxidável. Agora, até mesmo saía de casa para comprar seus produtos, ou roubá-los na calada da noite. O dinheiro que ganhava com a venda de armas e roupas excedentes ao seu avatar mal o sustentava.
Fazia seus projetos lentamente. Ainda não eram seu vício. O jogo, sim. Não desgrudava dele.
Em uma das inúmeras campanhas no RPG, ele conheceu WHITE_WIZARD. Uma bela avatar, de formas avantajadas e olhar safado. Começou a conversar. Ele se apaixonou. Fez declarações de amor, falando que queria conhecê-la, casar-se com ela e ter filhos. Não no mundo virtual, mas sim no real. Migraram para a sala de conversação, onde trocaram fotos. Ela era realmente bela, parecida com o avatar. Ele não. Era gordo, com olheiras profundas, barba mal-feita e rosto de marginal.
Depois desse dia, WHITE_WIZARD nunca mais apareceu no mundo virtual.
Ele não se conformava. Ela tornara-se sua obsessão. Passava as madrugadas, os dias, as tardes e as noites vagando pelas planícies do mundo virtual em busca dela. Subia montanhas no dorso de dragões, consultava feiticeiros das trevas que o empobreciam com promessas de devolvê-la em três dias. Nada adiantava, ela não aparecia. Nunca mais apareceu.
Então lhe veio a idéia. De súbito, enquanto olhava para a foto dela. Teria ela, só para ele. E ela sim seria diferente das putas que aprendeu a odiar. Ela lhe daria amor.
Começou com o projeto, que durou cerca de dois meses. Dois meses de uma compulsão crescente, fazendo-o até mesmo deixar de lado seu mundo virtual e fantástico.
Tudo estava quase pronto. Faltavam apenas os detalhes. Detalhes impertinentes, que o fizeram ficar acordado por pouco mais de três dias seguidos. Polimento aqui, desenho ali, lâmpadas, parafusos, porcas, pregos e buchas. Não faltava muito agora. WHITE_WIZARD estava quase pronta. Com suas asas brancas, seu vestido longo, suas botas azuis e, na cintura, sua espada embainhada e sua lira. Tudo de metal, feito com perfeição e pintado com precisão. Nem mesmo o sono fazia-o tremer o pincel ou errar na textura do polimento.
Afinal, um amor não pode ser feito de qualquer jeito.
Coçou os olhos, espreguiçou-se. Deu a última polida nos lábios – a parte mais importante – e, afastando-se, viu finalmente toda a beleza de sua obra.
Tinha os cabelos no lugar, pintados de branco, os olhos como duas bolas brilhantes de luz, que tinham um tom de ciano semelhante à da menina-dos-olhos da original. Cerca de um metro e sessenta e cinco, magra e atraente. O olhar safado fora perfeitamente reproduzido, e o rosto tinha cinco expressões diferentes: seriedade, alegria, gargalhada, timidez e prazer. Não tristeza. Nunca tristeza. Essa era uma palavra que não existia, não para WHITE_WIZARD. Tudo o que vinha dela era feliz.
Puxou o cabo USB que vinha da cabeça de sua amada e conectou-a no computador.
O quadro de opções abriu-se. Agora seria fácil. Tinha tudo ali, ao alcance das mãos. Sua própria criatura, seu próprio amor, à mercê de suas vontades, sorrindo quando necessário, sentindo prazer quando ele quisesse. E nunca triste, nem raivosa, nem frígida. Seu próprio Frankenstein, mas não rebelde como o original. Programada para amar. Para amá-lo.
Clicou em “Ligar Inteligência Artificial”.
– Olá. Pedro. Sou. WHITE. WIZARD. A. Suas. Ordens.
A voz era metálica, intercalada, mas ainda assim era linda. Os lábios moviam-se com precisão, e o barulho interno das roldanas mal era notado.
– Menu. De. Opções. Aberto. Escolha. Uma. Opção.
Ele obedeceu. Acabara de ligá-la, e a criatura já lhe dava ordens.
– Opção. Escolhida. Comando. De. Voz. Ativado. Aproxime-se. Do. Alto. Falante. E. Diga. Claramente. Sua. Ordem.
– Claro que sim… – ele sussurrou, um sorriso abrindo-se em seus lábios, mostrando os dentes amarelados e cariados pelo tempo.
Aproximou-se. Pigarreou. A voz sairia clara, para não deixar nenhuma sombra de dúvida. Finalmente, sua ordem seria ouvida.
– Me ame.
Claramente. Limpidamente. Única e exclusivamente.
Esperou, enquanto a inteligência artificial processava a informação.
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
Tudo bem, ele pensou. Problemas acontecem. Abaixou o volume da caixa de som, pigarreou novamente e, encostando os lábios no alto-falante, falou com a voz mais clara que possuía.
– Me ame.
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
– Me ame!
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
– ME AME! ME AME! ME AME!
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
– ME AME, SUA MERDA DE MÁQUINA! É TÃO DIFÍCIL ASSIM?
– Comando. Não. Identificado. Tente. Novamente.
Gritou, puxando os cabelos dos lados da cabeça com força. Não, pirar não era a solução.
Respirou. Fechou os olhos. Relaxou. Contou até dez. Tentou novamente, como ela ordenara.
– Me ame.
Esperou, apreensivo. Todos os cálculos feitos, todo o tempo perdido. Não. Não podia falhar. Não depois de tanto tempo.
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
Dessa vez o grito ensurdecedor veio acompanhado de agressividade. Jogou a máquina no chão, mas ela nem ao menos pareceu sentir. Continuou olhando-o com aqueles olhos ciano, estáticos e belos, esperando uma ordem de seu mestre.
Ele foi para um canto, agachou-se, o rosto entre as mãos, as lágrimas escorrendo-lhe.
– Aproxime-se. Do. Alto. Falante. E. Diga. Claramente. Sua. Ordem. – ouviu-a dizer, num sussurro metálico.
– ME AME! – ele gritou, enlouquecido. – EU SÓ QUERO QUE VOCÊ ME AME!
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
Era inútil.
Enraivecido, pegou a cadeira do computador, e, segurando-a no ar, jogou-a com toda a força no corpo da máquina. A cadeira quebrou-se com estrépito, fazendo voar pedaços de madeira podre para todos os lados, mas o aço continuou inoxidável. Com um pequeno arranhão na lataria, talvez, mas nada que comprometesse sua beleza ou estrutura interna.
Chorou mais, enquanto o robô mandava-lhe dizer claramente a ordem no alto-falante.
Arrastou-se até ela, as lágrimas ainda molhando seu rosto. Mas não chorava mais de tristeza. Ao invés disso, um sorriso sádico estampara-lhe o rosto. Se fosse visto pelos antigos padres e pastores, diria que estava possuído por alguma entidade demoníaca. Mas ele não acreditava em demônios que não os de seu RPG. Aquele sorriso era de lucidez, de brilhantismo. Uma grande idéia lhe viera, e ele a usaria.
Chegou perto da máquina, e, rasgando-lhe toda a roupa e tirando a sua própria, penetrou-a. Estava estuprando-a, tomando o controle. Não importava o quanto ela falasse ou ordenasse algo. Ele estava sobre ela, enquanto ela estava murmurando o mesmo som entediante. Mas ele não se importava. Parecia não ouvir nada. Não ouvia nada.
Com o tempo, o estupro pareceu-lhe menos interessante. Frivolidade por parte dela, talvez. Tudo o que ele sabia era que o bom e velho senhor Pênis resolvera hibernar. Novamente. Tentou reanimá-lo de alguma forma. Não conseguiu.
Desesperado, jogou toda a culpa em sua parceira. Gritou-lhe insultos, enquanto ela, pacientemente, dizia que o comando não fora identificado.
Tentou de todas as formas convencer-se de que todas eram o problema. Ele era normal, perfeitamente normal. Era culpa delas. Elas nunca lhe deram prazer.
Ele faria outra. Sim, melhor do que essa. Dedicaria mais tempo e atenção à nova, daria todo o amor que ela merecia e que não dera à primeira. Faria com que tudo fosse diferente. Seria amado como merecia.
Depois, a lucidez tomou conta dele.
Não adiantava tentar. Seria a mesma coisa. O mesmo círculo vicioso. Nem mil anos de trabalho lhe dariam amor verdadeiro. Ele não sabia o que era aquilo. E morreria sem saber.
Quando se jogou da janela do seu apartamento, caiu abraçado à sua criação imperfeita. O mergulho vertiginoso fê-lo morrer instantaneamente, quebrando seu crânio e despejando pedaços de cérebro e sangue na rua chuvosa e poluída.
A máquina teve apenas um amasso na lataria, e, quando os primeiros policiais chegaram, ela ainda sussurrava.
– Comando. Não. Identificado. Por. Favor. Tente. Novamente.
Lucas L Rocha