Narciso (Tradução de José Lima)
Narciso não me amava realmente. Preferia a minha irmã. (Quando saíamos em grupo, só tinha olhos para ela, só se ria com as graças dela, só dançava com ela.) No entanto, foi comigo que casou. Por causa do meu nome. Apenas por causa do meu nome. Chamo-me Rosa. Rosa dos Campos. Ridículo, não é? (A minha irmã teve mais sorte: baptizaram-na Clara. Porém, esta vantagem veio a tornar-se no principal obstáculo na sua vida amorosa. Ela, que só tinha olhos para Narciso, que só ria com as graças dele, e que só dançava com ele quando saíamos em grupo, não aceitou bem que o nome fosse o único obstáculo ao casamento deles. Ridículo, não é?) E no entanto foi a evidência que determinou a escolha do meu marido: Um Narciso do Prado não se casa, ainda que a ame, com uma Catarina, uma Sofia, nem mesmo com uma Clara, como a minha irmã. Escolhe para noiva uma Violeta, uma Margarida ou então uma Rosa; uma Rosa, como eu.
E foi assim que a Rosa dos Campos que eu era se tornou na Rosa do Prado que agora sou. O meu nome, desde que casei, nunca mais me pareceu ridículo. Aceitei-o como se aceita uma coroa, a recompensa pelos anos de paciência passados só a contemplar Narciso quando ele só tinha olhos para a minha irmã; a ver Narciso dançar quando ele só dançava com a minha irmã; a rir apenas das graças de Narciso quando ele só as dirigia a minha irmã, ainda que estivéssemos em grupo.
Não foi por uma qualquer cega fidelidade aos jogos de palavras que Narciso casou comigo. Foi antes devido à sua total devoção à botânica. Na verdade, Narciso tem apenas uma paixão, uma única, mais devoradora ainda do que uma simples paixão: as suas flores. Foi a elas que sacrificou a minha irmã, a minha irmã Clara. Poderia tê-la amado, tê-la amado loucamente, apaixonadamente. Mas Narciso não era homem para mudar de paixão. Narciso sabia o que queria. Narciso sabia o que não queria.
Narciso não queria que a imagem de Clara se insinuasse, ainda que inconscientemente, nos seus pensamentos todos concentrados numa epistaminia, numa estivação ou num calículo. Narciso não queria que a imagem de um estame reclinado, de uma antera apicifixa ou de um cálice tubular se insinuasse, mesmo inconscientemente, nos seus pensamentos todos concentrados num beijo que desse a Clara, numa carícia que fizesse a Clara.
Narciso quis as flores, apaixonadamente. E então aceitou a mulher, mas moderadamente. (Clara, despeitada, deixou a Europa.)
E foi assim que eu, Rosa do Prado, me pude insinuar, graças ao meu nome, no coração da paixão de um homem. Mas permaneci na sua periferia, pois era parco o amor de Narciso por mim.
Pouco me importava, já que para ele eu era, ou pelo menos assim o acreditei nessa altura, a mulher ideal.
Hoje, sei tudo sobre a bractéola, o ginóforo e a ginândria, sobre o eleuterógeno, o perianto. Sei essas coisas e muitas outras. Mas pouco se me dá. Hoje, não me servem de nada.
Narciso e eu vivíamos juntos. Era tudo o que contava para mim. Vivíamos juntos, mas a seu modo. Várias vezes por dia saía da estufa ao fundo do jardim onde trabalhava, chegava a casa para aí passar uma hora, cinco ou vinte minutos, mais raramente uma noite; as noites, Narciso dedicava-as principalmente à caça. Era na sua opinião o melhor momento para acabar com os caracóis e as lesmas que, atraídos pela humidade, saíam dos esconderijos para atacar as suas plantas. A maior parte das vezes Narciso voltava para casa de mãos a abanar e furioso por não ter podido experimentar os diferentes venenos à base de metaldeído tramados contra os seus inimigos. Quando regressava com os primeiros alvores do amanhecer, servia-lhe uma grande tigela de café, acompanhado de tostas com manteiga e um pedaço de chocolate preto e acho que ele ficava contente.
Para não falhar nenhuma das suas visitas a casa, e muitas vezes aparecia de improviso, postava-me junto à janela, um livro de botânica nos joelhos. Vigiava cada uma das suas chegadas. Vigiava-o de dia, vigiava-o de noite. Narciso comia e sorria-me. Lia e sorria-me. Mudava de camisa e sorria-me. Penso que me sentia feliz. Não, não penso, tenho a certeza de ter sido feliz.
Mas isso era dantes. Antes era feliz. Mesmo que ele comesse e saísse de novo. Lesse e saísse. Mudasse de camisa e saísse. Era feliz ao vê-lo chegar. Era feliz ao pensar no seu próximo regresso.
Às vezes, Narciso voltava da estufa com uma flor de presente, uma flor só para mim. A primeira que me ofereceu, lembro-me perfeitamente, foi uma drosera aliciae. Nunca tinha visto nenhuma e sentia-me um pouco ansiosa pois, apesar de Narciso me ter dito “é uma planta para principiantes, vais ver, é fácil”, temia decepcioná-lo por não saber ocupar-me dela. As plantas carnívoras exigem realmente, e por mais que o meu marido dissesse o contrário, uma atenção muito especial, uma atenção de longe superior à que eu dedicava aos gerânios que floriam quase sem a minha ajuda no beiral da janela.
Tinha tanto medo de não ter “mãos verdes” que os gerânios eram as únicas flores que me arriscava a plantar. E se a minha drosera aliciae murchasse? E se eu não conseguisse estar à altura do meu nome, daquilo que o meu marido esperava de mim? E se ele descobrisse a minha incompetência, o que aconteceria?
Dediquei pois toda a atenção à minha drósera, à transparência das suas centenas de pérolas peganhentas, outras tantas ciladas aos insectos que se arriscavam a poisar nas suas folhas. Esperava com impaciência o sol que ela parecia apreciar, palpava a humidade do composto várias vezes ao dia, verificava a sua consistência, a sua porosidade, arejava conscienciosamente a sala para evitar os bolores e, verificando ao fim de algumas semanas que a minha drósera digeria bem as moscas, as minhas angústias foram-se atenuando. E desapareceram quase por completo quando consegui a minha primeira estaca radicular.
Orgulhosa deste sucesso, pude aceitar os presentes de Narciso sem tremer. Ofereceu-me outras dróseras, fáceis de cuidar, como a capensis, a anglica ou a filiformis. Eram bonitas, muito mais bonitas do que a nepentes que mais tarde vim a receber como presente e que comecei a preferir. É certo que com estas novas carnívoras Narciso me encorajava a progredir na escala das dificuldades, pois que as nepentáceas exigem um maior domínio da técnica botânica. Vi nisso portanto um sinal de reconhecimento, quase um sinal de amor; mas não era apenas por isso que a minha preferência ia para elas. É que o modo como apanhavam os insectos me calhava melhor.
As moscas desapareciam como por encanto no fundo dos funis formados pelas folhas compridas. Caíam simplesmente no fundo de um poço com paredes escorregadias que os impediam de voltar a subir. Era isso que eu apreciava, que a morte sobreviesse longe do meu campo de visão; com as dróseras era impossível. Mesmo que nem sempre assistisse ao lento cerrar das folhas viscosas envolvendo as vítimas, não podia escapar ao espectáculo desses bichos decompondo-se debaixo dos meus olhos dias a fio e era coisa que não me agradava. As nepentáceas capturavam discretamente, secretamente, passivamente. A passividade delas convinha-me. Suportava-a melhor.
Das estacas caulinares às mergulhias, dos fungicidas às auxinas de enraizamento, as minhas plantas multiplicavam-se e um dia também o meu ventre cresceu. Narciso, mais frequentemente que de costume, vinha dormir comigo. Destapava a minha pele esticada e desenhava nela flores, sempre diferentes.
Das mais raras às mais comuns, as mais belas flores carnívoras enrolavam-se à volta do meu umbigo. Sentia-me orgulhosa da minha byblis liniflora, da darlingtonia california, mas deu-me um ataque de fúria no dia em que Narciso me quis enfeitar com uma dionaea muscipula, vulgarmente conhecida por dionéia caça-moscas. Era para mim insuportável, e todos me compreenderão, ver a armadilha das mandíbulas de tal planta escancarada sobre o meu ventre. Narciso, não querendo contrariar-me, abandonou a ideia. Foi a primeira vez que o senti zangado comigo, mas foi coisa de pouca dura.
No fim da gravidez, perdeu todo o interesse em desenhar plantas carnívoras na minha barriga. Obstinava-se a pintar exclusivamente narcisos. Gostava demasiado deles para não estar convencido de ter aí semeado algum. Tinha razão. Mas o pequeno Narciso morreu à nascença.
Se a criança tivesse sobrevivido, será que eu ainda aqui estaria agora? Durante muito tempo pensei que não. Mas agora que conto o que se passou, já não estou assim tão certa. A sua presença não teria podido mudar o curso das coisas.
Narciso deve ter ficado ressentido por eu não lhe ter dado a sua flor. Instalou-se definitivamente na estufa e apetrechou-a de modo a nunca mais ter necessidade de voltar a casa.
Deixei então de sentir a energia, a vontade de me ocupar das minhas plantas. Começaram a aparecer umas pequenas manchas de bolor acinzentadas, depois uns pequenos fungos escuros, que acabaram por se instalar definitivamente nas minhas dróseras, nas nepentáceas, nas serraceneáceas. Os pulgões, as cochonilhas-lapa atacavam-lhes as folhas. E eu deixava-os à vontade. Narciso já não estava ali para apreciar a saúde das plantas e para me felicitar, pouco me importava que morressem. De nada me serviria lutar a golpes de insecticida e de quintozeno para as manter em vida. Era de mim que devia ocupar-me. E ocupar-me de mim, era cuidar de Narciso. Decidi consagrar à tarefa todas as minhas energias.
Narciso aceitava com um murmúrio as refeições que lhe levava sem que mo tivesse pedido. Aproveitava cada uma das minhas curtas visitas para dar uma vista de olhos ao trabalho dele, e com o correr do tempo reparei no desaparecimento progressivo de todas as suas plantas carnívoras. Ao fim de um mês, não havia uma única na estufa.
Que teria Narciso feito delas, era coisa de que não fazia a mínima ideia. Mas, tendo observado que nenhum embrulho, nenhum caixote, tinha saído da estufa, que ninguém dos correios tinha vindo buscá-las para as entregarem a outros apaixonados da botânica, acabei por concluir que se tinha desembaraçado delas enterrando-as. Quando e onde as teria enterrado? Não procurei sabê-lo, concentrava-me unicamente na intensidade do sofrimento que o devia habitar e que o tinha levado a sacrificar a sua preciosa colecção. Uma colecção que ele prezava mais do que tudo no mundo. Não percebo nada de psicologia, mas agradava-me pensar que através deste gesto ele se infligia um castigo por ter deixado morrer o seu pequeno Narciso; um castigo por ter sido capaz de criar plantas e não aquele botão de gente. Agradava-me pensar que deixara de me considerar a única culpada. E agradava-me, evidentemente, imaginar que o desaparecimento de todas aquelas carnívoras significava o fim de uma paixão. Acabei assim, à força de me comprazer nas minhas pobres análises psicológicas, por me persuadir que encontraria para Narciso outra paixão em substituição daquela: eu.
Sabia que o meu trabalho de sedução seria longo e fastidioso, mas pouco me importava. Não tinha mais nada, nada de melhor, para fazer.
Narciso permanecia encerrado na estufa, voltando a sua atenção para plantas mais clássicas, mais fáceis de cuidar do que as carnívoras. Ensaiava culturas in vitro,quimeras periclinais, enxertos, toda a espécie de enxertos – à inglesa, de coroa, de placagem, de incrustação, de ganzepe… – experimentando-os em todo o tipo de plantas que tivesse à mão: arbustos, cactos, roseiras, citrinos. A estufa era enorme, perfeitamente alimentada em água e aquecida, e longos anos de actividade intensa tinham aumentado os seus recursos vegetais. Narciso não tinha descanso, passava de uma planta a outra, mas sem nunca se consagrar inteiramente a uma ou a outra. Uma dispersão que me oferecia, pensava eu então, a ocasião de levar a cabo os meus planos. Era apenas uma questão de perseverança. E isso não me faltava.
Levava as refeições a Narciso três vezes por dia. Ele olhava, cheirava, provava, saboreava, comia, lambia o prato até à última migalha, mas permanecia silencioso. Silencioso também face aos meus esforços vestimentares, face aos meus novos penteados, face às minhas discretas tentativas de sedução. Permanecia silencioso, até ao dia em que, estávamos no mês de Abril, reparando na minha gola branca a realçar o verde do vestido, o seu olhar se iluminou. Disse: “Não está mal”. “Não está mal”, eram as primeiras palavras que ele me dirigia há cerca de um ano.
De regresso a casa, olhei-me no espelho. Olhava-me com os olhos dele: a minha cara surgiu-me imediatamente como um botão de rosa emergindo de uma corola. Compreendi que a minha vitória passaria por esta imagem que lhe desse de mim, e decidi conformar-me. Iria tornar-me na sua flor entre as flores, aquela a quem se dedicaria inteiramente. Nunca mais abandonei aquela gola e acentuei o aspecto florido das minhas roupas. Bordava-as de flores campestres, recortava os bolsos em forma de sol e cosia trevos, centáureas ou boninas a servir de botões. Talhava as orlas dos vestidos em ondas largas e profundas, pespontava espessuras de várias camadas de tecido como um acolchoado de folhagem. Ridículo, dir-me-ão, ou mesmo loucura, haverá quem pense. Mas não é verdade que Narciso tinha desposado uma Rosa, uma rosa a que deveria assemelhar-me para adquirir o estatuto de mulher ideal? Foi seguindo esta lógica que, passo a passo, e não unicamente graças à costura, me fui aproximando do meu objectivo.
Não o devia ter feito. Mas não o sabia ainda. Devia ter-me ido embora. Mas não o quis. Hoje quereria, mas já não o posso fazer.
A costura ocupava o meu tempo. Todos os dias me levantava impaciente, com pressa de apanhar o breve relance que Narciso lançaria aos meus novos achados. Aos poucos, foi renascendo entre nós a confiança. Continuava a falar pouco, mas a minha presença deixou de o importunar e pude, pouco a pouco, ir aumentando a duração das minhas visitas.
Certa tarde, quando lhe levei o chá, em vez de sair passados poucos minutos, decidi sentar-me e tomar uma chávena. Tinha amadurecido longamente o meu gesto, não era nenhum acto impulsivo. Tinha escolhido cuidadosamente o dia e o momento para me mostrar tão audaciosa. Nessa manhã, Narciso tinha-se regozijado, deixando escapar um breve “oh”, com o êxito de um enxerto complexo numa orquídea. Isso augurava um dia de bom humor, que poderia utilizar em meu proveito; e, tal como previra, Narciso não se opôs à minha iniciativa. Pude assim ficar uma hora inteira, sentada, a vê-lo trabalhar. Encorajada por este primeiro avanço, repeti a experiência no dia seguinte e nos dias que se seguiram, prolongando de cada vez a duração das visitas. Assistia agora a todas as operações de propagação que Narciso efectuava nas suas árvores de fruto, sentada na cadeira de vime que ele instalara para mim no centro da estufa. Via-me assim entronizada no meio de uma floresta de pereiras japonesas, de ameixeiras, de macieiras anãs e de cerejeiras cultivadas em floreiras. Fora-me dado o lugar de uma rainha e sentia-me rainha.
Mas apenas rainha de dia, pois, ao cair da noite, voltava sozinha para casa. Graças ao meu posto de observação privilegiado, tornei-me perita em enxertos e em porta-enxertos – M27, M9 para as macieiras; Myrabolano 29-C, Marianna 26-4, Brompton, para as ameixeiras; Colt e Santa Lúcia para as cerejeiras. Observava Narciso a deslocar os vasos em função da orientação do sol, a acentuar o nanismo das árvores enxertando-as não a 10 mas a 30 centímetros do colo, a praticar enxertias de borbulha e enxertos laterais à inglesa.
Assistia a tudo em silêncio. Nada tinha a dizer, e muito menos a aconselhar. Hoje, digo a mim própria que deveria ter sugerido a Narciso que tentasse novas experiências. Gostaria de ver como teria resultado o enxerto de uma nespereira eriobotrya japonica no espinheiro crataegus monogyna, ou o da pereira nashi no marmeleiro cydonia oblonga. Lamento não lho ter pedido, não me ter sabido impor. Mas tinha medo de cometer algum erro, de ter de voltar ao ponto de partida. Um ponto bem mais invejável do que este que agora ocupo. Mas não o sabia então. Como poderia tê-lo adivinhado? Uma terça-feira, seis meses atrás… Nem sei como hei-de explicar… Costumava sair da estufa ao fim da tarde para ir preparar o jantar. Mas nesse dia, nessa terça-feira, quando quis levantar-me da minha cadeira de vime para ir embora, não consegui fazê-lo. Levantei-me e voltei a cair no assento. As minhas pernas, ou antes os meus pés, não me respondiam, deixara de os sentir. Levantei-me uma vez mais, para mais uma vez me afundar na cadeira, como que paralisada. Estava paralisada. Gritei, gritei com toda a força, para que Narciso me ouvisse, viesse em meu socorro, descolasse os meus pés do solo, me ajudasse a andar. Mas quando se aproximou de mim, ajoelhou-se, palpou-me os calcanhares, a barriga das pernas, depois ergueu a cabeça e disse-me com um sorriso: “Não é nada, está tudo bem”.
Desde esse fim de tarde, nunca mais deixei a minha cadeira de vime. A paralisia progredia lentamente, atingindo as coxas, a bacia, o busto e depois o pescoço. Hoje, consigo mexer um pouco a cabeça, mas por quanto tempo ainda?
Queria que Narciso cuidasse de mim, que cuidasse exclusivamente de mim e, desde essa terça-feira, o meu desejo realizou-se finalmente. Narciso passava todo o seu tempo ao pé de mim, ou melhor ainda tinha Narciso a meus pés. Vaporizava-os com um betume de cicatrização e todos os dias pela manhã, pelo menos durante os primeiros dias, contava as raízes que me nasciam nos dedos dos pés e nos calcanhares. Examinava as modificações na minha pigmentação. A minha pele enverdecia e em breve começaram a romper dos poros umas pequenas folhas. Assaltava-me muitas vezes o temor de que Narciso recorresse à enxertadeira, à podoa ou à serpete para rectificar os meus rebentos, mas não. Limitou-se a usar fitas de polietileno para atar os meus braços e os prender melhor acima da cabeça. O meu crescimento era rapidíssimo, ramificando-me sem que nenhum parasita, nenhuma doença viesse perturbar o meu desabrochar. Fui vítima apenas de uma subida prematura de seiva. Narciso ficou inquieto, receou pelos meus renovos, mas não foi nada de grave.
Há oito dias, depois de ter retirado o plástico com que me cobre durante a noite, Narciso saiu.
Desde então, nunca mais voltou.
Há oito dias que Narciso se foi embora.
É Primavera e sinto que vou florir.
Narciso não estará aqui para me ver. Narciso foi-se embora. (Terá sido aquela carta que o carteiro enfiou debaixo da porta a causa da sua partida?) Apercebo-me de uns fiozinhos rosados no topo dos gomos do cotovelo. Amanhã vou florir. (Narciso leu a carta a chorar. De alegria, pareceu-me. Não, na verdade acho que era mesmo de alegria.) Amanhã vou florir e aqui estou eu, especada como uma parva. Não sei sequer o que vai surgir de mim. Rosa canica ou multiflora? Lilás, amendoeira com flores prunus persica? Dália, peónia ou cerejeira? Narciso não me disse nada. (Deixou cair o envelope da carta, esquecido a meus pés. Foi com dificuldade que consegui reconhecer a letra de Clara, minha irmã Clara, pois as pálpebras mal se podem abrir).
Amanhã darei uma flor, talvez duas. Mas mais não, tenho demasiada sede. Estou a secar. O gota a gota não funciona.
Ontem caíram-me dois dedos da mão esquerda.
Nasceu-me um fungo na narina direita, que me impede de respirar.
Narciso partiu. Nunca mais voltará.
Narciso sabe o que quer; Narciso sabe o que não quer.
Sabe que quer uma mulher, arrebatadamente.
Tinha de abandonar a sua flor. Evidentemente.
Brigitte Martinez