O Passa-Paredes (Tradução de José Lima)
Havia em Montmartre, no terceiro andar do 75-A da Rua d’Orchampt, um excelente homem chamado Dutilleul que possuía o dom singular de passar através das paredes sem o menor incómodo. Usava lunetas, uma pequena barbicha preta, e era funcionário de terceira classe no Ministério dos Registos. No Inverno ia para o emprego de autocarro, e quando chegava o bom tempo fazia o trajecto a pé, sob o seu chapéu de coco.
Dutilleul acabara de entrar no quadragésimo-terceiro ano quando teve a revelação do seu poder. Certa noite, surpreendido no vestíbulo do pequeno apartamento de solteiro por uma curta falha de electricidade, pôs-se a tactear nas trevas e, assim que a corrente voltou, viu-se no patamar do terceiro andar. Como a porta estava fechada por dentro, o incidente fê-lo reflectir e, desafiando as objecções da razão, decidiu-se a entrar como tinha saído, passando através da parede. Esta estranha faculdade, que parecia não responder a nenhuma das suas aspirações, não deixou de o contrariar um pouco e, no sábado seguinte, aproveitando a semana inglesa, foi ver um médico do bairro para lhe expor o caso. O médico pôde verificar ser verdade o que lhe dizia e, depois de o ter examinado, descobriu a causa do mal num endurecimento helicoidal do revestimento estrangular do corpo tiroideu. Receitou-lhe o excesso de trabalho e, à razão de dois comprimidos por ano, a absorção de pó de pireta tetravalente, mistura de farinha de arroz e de hormona de centauro.
Depois de tomar um primeiro comprimido, Dutilleul guardou o medicamento numa gaveta e não pensou mais no caso. Quanto ao excesso de trabalho, a sua actividade de funcionário regulava-se por usos que em nada se prestavam a qualquer excesso, e as horas livres, consagradas à leitura do jornal e à colecção de selos, tão-pouco o obrigavam a um imoderado dispêndio de energia. Ao fim de um ano, tinha pois mantido intacta a faculdade de passar através das paredes, mas nunca a utilizava, a não ser por inadvertência, sendo pouco dado a aventuras e refractário aos transportes da imaginação. Não lhe aflorava sequer a ideia de entrar em casa de outro modo que não fosse pela porta e só depois de devidamente aberta com intervenção da fechadura. Poderia talvez ter envelhecido na paz dos seus hábitos sem sentir a tentação de pôr à prova os seus dons, não fosse um acontecimento extraordinário ter vindo subitamente perturbar-lhe a existência. O Sr. Mouron, sub-chefe da repartição, chamado a outras funções, foi substituído por um tal Sr. Lécuyer, que tinha a palavra breve e um bigode à escovinha. Desde o primeiro dia, o novo sub-chefe não viu com bons olhos que Dutilleul usasse lunetas de corrente e barbicha preta, e tratava-o ostensivamente como uma velharia importuna e algo indecorosa. Mas o mais grave é que se propôs introduzir no serviço reformas de uma certa envergadura e destinadas a perturbar a quietude do subordinado. Havia já vinte anos que Dutilleul começava as cartas pela fórmula seguinte: “Em referência à estimada carta de Vª Exª de tantos do corrente e tendo presente a nossa troca de correspondência anterior, tenho o prazer de informar Vª Exª…” Fórmula essa que o Sr. Lécuyer entendeu substituir por outra com um ar mais americano: “Em resposta à sua carta de tantos do tal, temos a informar que…” Dutilleul não pôde acostumar-se a estes termos epistolares. Mau grado seu, voltava à sua maneira tradicional, com uma obstinação maquinal que lhe valeu a inimizade crescente do sub-chefe. A atmosfera do Ministério dos Registos tornava-se-lhe quase penosa. De manhã, dirigia-se para o trabalho apreensivo, e à noite, na cama, acontecia-lhe frequentemente ficar a meditar um quarto de hora inteiro antes de pegar no sono.
Desalentado por esta determinação retrógrada que comprometia o sucesso das suas reformas, o Sr. Lécuyer relegara Dutilleul para um cubículo meio às escuras, contíguo ao seu gabinete. Tinha por entrada uma porta baixa e estreita que dava para o corredor e que exibia ainda em letras maiúsculas a inscrição: Arrecadação. Dutilleul aceitara de ânimo resignado esta humilhação sem precedentes, mas em casa, ao ler no jornal o relato de um qualquer episódio sanguinolento, surpreendeu-se a imaginar o Sr. Lécuyer como sendo a vítima.
Um dia, o sub-chefe irrompeu pelo cubículo dentro empunhando uma carta e desatou aos berros:
– Volte-me a escrever esta porcaria! Volte-me a escrever esta porcaria inqualificável que desonra o meu Serviço!
Dutilleul quis protestar, mas o Sr. Lécuyer, a voz tonitruante, tratou-o de manga de alpaca rotineiro, e, antes de sair, amachucando a carta que tinha na mão, atirou-lha à cara. Dutilleul era modesto, mas tinha o seu brio. Ao ficar só no seu reduto, teve uma pontada de febre e, de repente, sentiu-se possuído pela inspiração. Levantando-se da cadeira, entrou na parede que separava o seu gabinete do do sub-chefe, mas com cautela, de maneira a que do outro lado emergisse apenas a cabeça. O Sr. Lécuyer, sentado à secretária, a caneta ainda nervosa, mudava uma vírgula no texto de um funcionário, apresentado para aprovação, quando ouviu tossir no gabinete. Levantando os olhos, descobriu com assombro indescritível a cabeça de Dutilleul, colada na parede como um troféu de caça. E a cabeça estava viva. Através das lunetas de corrente, dardejava sobre ele um olhar de ódio. E ainda por cima, a cabeça desatou a falar.
– O senhor – disse ela – é um patife, um grosseirão e um malandro.
Boquiaberto de horror, o Sr. Lécuyer não lograva desviar os olhos desta aparição. Finalmente, saltando do cadeirão, precipitou-se para o corredor e entrou a correr no cubículo. Dutilleul, de pena na mão, estava instalado no lugar habitual, numa atitude tranquila e laboriosa. O sub-chefe observou-o demoradamente e, após balbuciar umas palavras, voltou para o gabinete. Ainda mal se tinha sentado e a cabeça reaparecia na parede.
– O senhor é um patife, um grosseirão e um malandro.
Só durante esse dia, a temida cabeça apareceu vinte e três vezes na parede e depois, nos dias que se seguiram, a igual cadência. Dutilleul, que adquirira um certo à-vontade neste jogo, já não se limitava a invectivar o sub-chefe. Proferia ameaças obscuras, clamando por exemplo com uma voz sepulcral, pontuada de risadas verdadeiramente demoníacas:
– Bicho-mau! Bicho-mau! Levas com um pau! (risos). Anda aí um arrepio a descornar o lacrau! (risos).
Ao ouvir isto, o pobre sub-chefe ficava um pouco mais pálido, um pouco mais sufocado, e os cabelos eriçavam-se-lhe na cabeça e corriam-lhe pelas costas horríveis suores de agonia. No primeiro dia, emagreceu meio-quilo. Na semana seguinte, além de começar a derreter a olhos vistos, apanhou o hábito de comer a sopa com o garfo e de fazer a continência aos polícias. Ao começar a segunda semana, uma ambulância foi buscá-lo a casa e levou-o para uma casa de saúde.
Dutilleul, liberto da tirania do Sr. Lécuyer, pôde voltar às suas queridas fórmulas: “Em referência à estimada carta de Vª Exª de tantos do corrente…” No entanto, sentia-se insatisfeito. Havia nele qualquer coisa que se insurgia, uma nova necessidade, imperiosa, que não era nada menos que a necessidade de passar através das paredes. É certo que o podia fazer facilmente, por exemplo em casa, e aliás não deixava de o fazer. Mas quem possui dons tão brilhantes não pode satisfazer-se durante muito tempo em exercê-los num objecto medíocre. Passar através das paredes, não podia aliás constituir um fim em si. É o ponto de partida de uma aventura, que pede um seguimento, uma sequência e, em suma, uma retribuição. Dutilleul comprendeu-o muito bem. Sentia uma necessidade de expansão, um desejo crescente de se realizar e de se ultrapassar, e uma certa nostalgia que era como que o apelo do outro lado da parede. Infelizmente, faltava-lhe um objectivo. Procurou inspiração na leitura do jornal, particularmente nas secções da política e do desporto, que lhe pareciam ser actividades dignas, mas apercebendo-se finalmente que não ofereciam qualquer saída para quem passa através das paredes, voltou-se para os casos do dia que se revelaram extremamente sugestivos.
O primeiro assalto que Dutilleul levou a cabo foi num grande estabelecimento de crédito da margem direita. Depois de atravessar uma dúzia de paredes e de divisórias, penetrou nos diversos cofres-fortes, encheu os bolsos de notas e, antes de se retirar, assinou a pilhagem a giz vermelho, com o pseudónimo de Bicho-Mau, com uma rubrica bastante bonita que no dia seguinte todos os jornais reproduziram. Passada uma semana, o nome de Bicho-Mau gozava de uma extraordinária celebridade. A simpatia do público ia sem reservas para o prestigioso assaltante que tão admiravelmente escarnecia da polícia. Todas as noites dava sinal de si com nova façanha levada a cabo em prejuízo ora de um banco, ora de uma joalharia ou de algum rico particular. Em Paris como na província, não havia nenhuma mulher um pouco sonhadora que não alimentasse o fervente desejo de pertencer de corpo e alma ao temível Bicho-Mau. Depois do roubo do famoso diamante de Burdigala e do assalto ao Crédito Municipal, realizados na mesma semana, o entusiasmo da multidão atingiu o delírio. O Ministro do Interior teve de se demitir, arrastando na queda o Ministro dos Registos. No entanto, Dutilleul, que se tornara num dos homens mais ricos de Paris, continuava a comparecer pontualmente na repartição e falava-se nele para receber os louros académicos. De manhã, no Ministério dos Registos, o seu maior prazer era escutar os comentários que os colegas faziam às façanhas da véspera. “Este Bicho-Mau”, diziam, “é um homem formidável, um super-homem, um génio.” Ouvindo tais elogios, Dutilleul corava de embaraço e, por trás da luneta de corrente, o olhar brilhava-lhe de amizade e reconhecimento. Um dia, esta atmosfera de simpatia fez com que se sentisse tão confiante que achou não poder manter o segredo por mais tempo. Com um resto de timidez, observou os colegas reunidos à volta do jornal que relatava o assalto ao Banco de França, e declarou num tom modesto: “Sabem, o Bicho-Mau sou eu.” Uma risada enorme e interminável acolheu a confidência de Dutilleul, a quem puseram, por troça, a alcunha de Bicho-Mau. À tarde, ao sair do Ministério, era objecto de incessantes piadas dos colegas e a vida parecia-lhe menos bela.
Alguns dias mais tarde, Bicho-Mau deixava-se apanhar por uma ronda nocturna numa joalharia da Rua de la Paix. Tinha deixado a sua assinatura no balcão e pusera-se a cantar uma canção de bêbados, estilhaçando várias vitrinas com uma taça em ouro maciço. Ter-lhe-ia sido fácil enfiar por uma parede e escapar desse modo à ronda nocturna, mas tudo leva a crer que queria ser preso e provavelmente com o único objectivo de espantar os colegas cuja incredulidade o deixara mortificado. Estes, com efeito, tiveram uma grande surpresa, quando os jornais do dia seguinte publicaram na primeira página a fotografia de Dutilleul. Lamentaram amargamente terem ignorado o camarada genial e prestaram-lhe homenagem deixando crescer uma pequena barbicha. Alguns, levados pelos remorsos e a admiração, tentaram mesmo deitar a mão à carteira ou ao relógio de estimação dos amigos e conhecidos.
Haverá certamente quem considere que o facto de se deixar apanhar pela polícia para deixar espantados alguns colegas revela uma grande leviandade, indigna de um homem excepcional, mas a mola aparente da vontade tem muito pouco a ver com uma tal determinação. Renunciando à sua liberdade, Dutilleul pensava ceder a um orgulhoso desejo de desforra, quando na verdade estava simplesmente a escorregar pela encosta do destino. Para um homem que atravessa paredes, não se pode falar de uma carreira de certa importância sem pelo menos uma vez ter passado pela cadeia. Assim que Dutilleul entrou na prisão da Santé ficou com a impressão de ser mimado pela sorte. A espessura das paredes era para ele um verdadeiro presente. Logo no dia a seguir à prisão, os guardas descobriram pasmados que o preso tinha espetado um prego na parede da cela e que nele pendurara um relógio em ouro pertença do director da prisão. Dutilleul não pôde ou não quis revelar como é que tal objecto entrara na sua posse. O relógio foi devolvido ao dono e, um dia depois, reencontrado à cabeceira do Bicho-Mau juntamente com o primeiro volume d’ Os Três Mosqueteiros retirado da biblioteca do director. Além disso, os guardas queixavam-se de apanhar pontapés no traseiro, sem que pudessem explicar quem lhos dava. Era como se as paredes tivessem, já não ouvidos, mas pés. A detenção do Bicho-Mau durava há uma semana, quando o director da Santé, ao entrar de manhã no gabinete, encontrou em cima da mesa a carta seguinte:
“Senhor Director. Em referência à nossa conversa de 17 do corrente e tendo presente as instruções gerais de Vª Exª de 15 de Maio do ano passado, tenho o prazer de informar Vª Exª que acabo de terminar a leitura do segundo volume d’Os Três Mosqueteiros e que conto evadir-me esta noite entre as onze e vinte e cinco e as onze e trinta e cinco. Com os protestos da minha elevada consideração, Bicho-Mau.”
Apesar da cerrada vigilância de que foi objecto essa noite, Dutilleul evadiu-se às onze e meia. Conhecida do público na manhã seguinte, a notícia suscitou por toda a parte um entusiasmo magnífico. Apesar de tudo, tendo levado a cabo um novo assalto que elevou ao cúmulo a sua popularidade, Dutilleul parecia pouco preocupado em se esconder e circulava em Montmartre sem a mínima precaução. Três dias após a sua evasão, foi preso na Rua Caulaincourt no Café do Sonho, pouco antes do meio-dia, quando bebia um vinho branco limão na companhia dos amigos.
Reconduzido à Santé e fechado a sete chaves numa masmorra sombria, Bicho-Mau escapou nessa mesma noite e foi dormir ao apartamento do director, no quarto de hóspedes. No dia seguinte pela manhã, por volta das nove horas, tocou a chamar a criada para lhe trazer o pequeno-almoço e deixou-se surpreender na cama, sem resistência, pelos guardas entretanto alertados. Ultrajado, o director mandou postar uma sentinela à porta da masmorra de Dutilleul e pô-lo a pão seco. Cerca do meio-dia, o preso foi almoçar a um restaurante vizinho da prisão e, depois de ter tomado o café, telefonou ao director.
– Está? Senhor Director, bem sei que é embaraçoso, mas há pouco, quando saí, esqueci-me de trazer a sua carteira, de maneira que me vejo num aperto aqui no restaurante. Quererá ter a bondade de mandar cá alguém pagar a conta?
O director acorreu em pessoa e exaltou-se ao ponto de proferir ameaças e injúrias. Ferido no seu orgulho, Dutilleul evadiu-se na noite seguinte para nunca mais voltar. Desta vez, tomou a precaução de cortar a barbicha preta e substituiu a luneta de corrente por óculos de tartaruga. Um boné desportivo e um fato aos quadrados grandes com calças de golfe remataram a transformação. Instalou-se num pequeno apartamento da Avenida Junot, para onde, antes de ser preso pela primeira vez, tinha mandado levar uma parte da mobília e os objectos de maior estimação. O brado da sua fama começava a cansá-lo e depois da passagem pela Santé, mostrava-se um pouco afectado quanto ao prazer de atravessar paredes. As mais espessas, as mais orgulhosas, pareciam-lhe agora meros biombos, e Dutilleul sonhava em mergulhar no âmago de alguma pirâmide compacta. Ao mesmo tempo que ia amadurecendo o projecto de uma viagem ao Egipto, levava uma vida das mais tranquilas, dividida entre a colecção de selos, o cinema e as demoradas passeatas por Montmartre. A sua metamorfose era tão completa que passava, glabro e de óculos de tartaruga, ao lado dos seus melhores amigos sem que o reconhecessem. Só o pintor Gen Paul, a quem não passava despercebida nenhuma mudança na fisionomia de um velho morador do bairro, acabara por desvendar a sua verdadeira identidade. Certa manhã em que se encontrou cara a cara com Dutilleul na esquina da Rua do Abreuvoir, não pôde impedir-se de lhe dizer no seu calão rude:
– Com que então, de albarda toda apinocada a ver se deixas à nora a judite – o que mais coisa menos coisa significa em linguagem corrente: estou a ver que te vestiste todo elegante para despistar os inspectores da judiciária.
– Ah! -murmurou Dutilleul. – Reconheceste-me!
Isso perturbou-o e decidiu apressar a partida para o Egipto. Foi na tarde desse mesmo dia que se apaixonou por uma beldade loira com quem se cruzou duas vezes na Rua Lepic com um quarto de hora de intervalo. Esqueceu imediatamente a colecção de selos e o Egipto e as pirâmides. Por seu turno, a loira tinha-o olhado com bastante interesse. Não há nada que diga tanto à imaginação das jovens de hoje como as calças de golfe e um par de óculos de tartaruga. Cheira a cineasta e faz sonhar com cocktails e noites californianas. Infelizmente, a beldade, soube-o Dutilleul por Gen Paul, estava casada com um homem brutal e ciumento. Este marido desconfiado, que aliás levava uma vida airada, deixava a mulher sozinha entre as dez da noite e as quatro da manhã, mas antes de sair tomava a precaução de a encerrar no quarto, com duas voltas à chave, e todas as persianas fechadas com um cadeado. Durante o dia, vigiava-a de perto, chegando ao ponto de a seguir pelas ruas de Montmartre.
– Sempre ali debaixo dos faróis. É o género de traste que não admite que lhe deitem a luva à lambisgóia.
Mas o aviso de Gen Paul apenas serviu para inflamar Dutilleul. No dia seguinte, ao cruzar-se com a jovem na Rua Tholozé, ousou segui-la até uma leitaria e, enquanto ela esperava que a servissem, disse-lhe que a amava respeitosamente, que sabia tudo: o marido malvado, a porta à chave e as persianas, mas que nessa mesma noite estaria no quarto dela. A loira corou, a bilha de leite tremeu-lhe na mão, e, os olhos húmidos de meiguice, suspirou tenuemente: “Infelizmente, caro senhor, é impossível.”
Na noite desse dia radioso, por volta das dez horas, Dutilleul estava de sentinela na Rua Norvins e vigiava um robusto muro de vedação, atrás do qual se encontrava uma casita de que apenas conseguia ver o catavento e a chaminé. Abriu-se uma porta no muro e um homem, depois de a ter fechado cuidadosamente à chave, desceu em direcção à Avenida Junot. Dutilleul esperou até o ver desaparecer, muito ao longe, na curva da descida, e contou ainda até dez. E então atirou-se, entrou na parede com um passo atlético e, sempre a correr através dos obstáculos, penetrou no quarto da bela reclusa. Ela acolheu-o arrebatada e amaram-se até altas horas.
No dia seguinte, Dutilleul defrontou-se com a contrariedade de umas violentas dores de cabeça. A coisa não tinha importância e não seria por tão pouco que ia faltar ao encontro marcado. No entanto, tendo por acaso descoberto umas pastilhas espalhadas no fundo de uma gaveta, tomou uma pela manhã e outra à tarde. À noite, as dores de cabeça eram suportáveis e a excitação fê-lo esquecê-las. A jovem esperava-o com toda a impaciência que as recordações da véspera tinham despertado nela e amaram-se, dessa vez, até às três horas da manhã. Quando se ia embora, Dutilleul, ao atravessar as divisórias e as paredes da casa, teve a impressão de um arranhar desacostumado nas ancas e nos ombros. Porém, não lhe pareceu caso de maior. Aliás, foi só ao penetrar no muro de vedação que teve a nítida sensação de que lhe resistia. Tinha a impressão de se mover numa matéria ainda fluida, mas que se tornava pastosa e ganhava, a cada um dos seus esforços, maior consistência. Tendo conseguido enfiar o corpo todo na espessura da parede, apercebeu-se que não conseguia avançar mais e lembrou-se aterrorizado das duas pastilhas que tinha tomado durante o dia. Essas pastilhas, que pensara serem aspirina, continham na realidade o pó de pireta tetravalente receitado pelo médico um ano antes. O efeito do medicamento, acrescendo ao excesso de actividade, manifestava-se daquele modo repentino.
Dutilleul estava como que paralisado no interior da parede. E ainda hoje lá está, incorporado na pedra. Os noctívagos que descem a Rua Norvins à hora em que o rumor de Paris se aquieta, ouvem uma voz abafada que parece vir do além-túmulo e que tomam pelo lamento do vento que assobia nos cruzamentos da Butte. É o Bicho-Mau Dutilleul que lamenta o fim da gloriosa carreira e se queixa dos amores demasiado breves. Certas noites de Inverno, pode acontecer que o pintor Gen Paul, sacando da sua guitarra, se aventure na solidão sonora da Rua Norvins para levar ao desgraçado prisioneiro a consolação de uma canção, e as notas, escapando-se dos dedos entorpecidos, penetram no coração da pedra como gotas de luar.
Marcel Aymé