O Turista Acidental
Harry colocou o jantar no microondas para esquentar. Ao ligar o forno, uma dor terrível no dente o fez arrancar bruscamente o cabo da tomada. -Não pode ser!- Acabara de voltar do dentista, mas não conseguia lembrar de nada. Fora dopado, por certo.
Ouviu ruídos na porta da frente, derrubou o copo de cerveja e saiu como louco pelos fundos. Correu para a lavanderia, lá tinha uma caixa de ferramentas. Procurou desesperadamente um alicate e colocou um pedaço de espelho quebrado no peitoril da janela. Arrancou o dente recém obturado -Vou matar aquele desgraçado- largou sobre a bancada e correu. Saltou o muro que dava para a casa de trás. Caiu de mau jeito e torceu o pé.
O cachorro fincou firmemente os dentes no seu calcanhar. Com o outro pé desferiu um golpe certeiro, levantou-se e saltou a grade frontal da casa. Ouviu uma explosão surda. Reconheceu o estampido das balas inteligentes.
Um entregador de pizza acabara de chegar à casa ao lado.
Empurrou o rapaz com firmeza, mostrando a mão no bolso da jaqueta, como se tivesse uma arma. Este se mostrou tranqüilo e não esboçou nenhum sinal de resistência.
– Pode levar o levitador, mano.
Costurou pelo trânsito congestionado até alcançar a rodovia.
Logo estava na periferia da cidade. Tomou um estrada secundária e dirigiu-se para uma pequena ponte. Parou na cabeceira da ponte, inutilizou os circuitos de energia do veiculo, não queria ser rastreado, e arrastou-o para debaixo da ponte.
Os levitadores só funcionam em ruas e estradas graças a circuitos eletromagnéticos embutidos no concreto. Cansado pelo esforço, abriu a caixa térmica e viu que tinha uma pizza e refrigerante. Ao abrir a garrafa, o líquido explodiu devido à pressão do gás. Harry riu do susto e voltou-se para a pizza que, embora um pouco mexida, ainda estava quente. -Que fome, cara.- Mastigava com cuidado, com o lado bom da boca inchada e dolorida.
Sentou na terra ressecada, terminou a pizza e depois descansou um pouco. Tentava recapitular cada minuto do dia. Como sempre fazia, escolhera o dentista ao acaso, marcara uma hora no mesmo dia e fora. “Meu nano comunicador deve estar grampeado, ou estavam me seguindo”. Colocaram um dentista deles para me implantar um dente com localizador de coordenadas. O circuito eletrônico foi ativado pelo vazamento de radiação do forno de microondas, a porta deve estar com defeito. Por isso doeu. Mas porque todo esse trabalho? Podiam simplesmente me matar ali ou me seqüestrar. Harry passou a suspeitar de seus próprios camaradas, estava confuso.
Em 2035, faz dez anos, os movimentos libertários tomaram o poder e conduziram o mundo a um regime de plena liberdade econômica, quase sem governo. Sem o peso da burocracia do estado a economia se desenvolveu como nunca. Foi assim nos primeiros anos.
Logo as premissas baseadas na boa vontade dos homens começaram a mostrar suas debilidades. A luta pelo poder de fato, pouco a pouco, tomou conta do ambiente empresarial. Sem um poder regulador acima delas, as empresas descobriram rapidamente atalhos para o lucro. O ótimo do indivíduo não é o ótimo do grupo.
Os indícios de que aquela organização econômica iria colapsar ainda eram tênues, mas estavam lá. A população dos grandes blocos econômicos vivia em uma onda de esplendor econômico, mas os paises periféricos já sentiam os primeiros sinais que prenunciavam a crise. Levaria duas décadas para a que a desagregação atingisse os mais ricos, mas era necessário agir agora, antes que fosse tarde.
– Com está Megan ?
– Estou bem, amor. O que houve? Me dá um beijo.
– Estão atrás de mim.
– Quem?
– Não creio que seja o pessoal da Lotar, acho que é gente da Dark Star.
– Porque você acha que a sua editora está atrás de você?
Harry explicou o que ocorrera na cidade na noite anterior e como chegara até o litoral.
-Você sabe que a Nebula Corporation é dona da Editora Lotar.
Tem um boato por aí que eles compraram a Dark Star.
Provavelmente querem o seu software.
– Porque uma mega corporação como a Nebula iria querer um software de análise literária?
– Meu amor, sua inteligência é desse tamanho, mas a sua ingenuidade é maior. O seu programa pode ser alterado para analisar o mercado de qualquer produto. A Nebula deve querer seu programa para enfraquecer os concorrentes. Estão se degladiando por monopólios desde que os mercados mundiais foram desregulamentados.
– Eles podem muito bem criar um software igual ou melhor que o meu.
– Claro que sim, Harry. Só que você levou anos para desenvolver e treinar o programa. Eles não querem esperar, é mais rápido comprar.
– Os consumidores não vão aceitar monopólios.
– Não seja idiota, Harry. Eu trabalhei toda a minha vida para grandes corporações. O consumidor não conta, a luta é entre elas, uma quer derrubar a outra. As condições agora são favoráveis a monopólios, ao contrário do que os políticos pregam. É mais fácil e mais barato destruir os concorrentes e herdar um mercado cativo eterno do que competir. O consumidor vai fazer o que? Sentar e chorar?
– E a mão invisível?
– Não me faça rir. Você é especialista em sistemas complexos e sabe muito bem como a coisa funciona.
– Infelizmente eu sei, mas a gente sempre acredita que o bem triunfará.
– Você acredita. Eu não; não sem uma boa luta.
– Você está certa. Algumas empresas estão até criando forças para-militares, vamos acabar voltando ao feudalismo.
Feudalismo cibernético, que tal?
– Não é hora para piadas. Não tem graça―.Anotou um número em um papel
– Harry, telefone para este número de um equipamento público.
É um jovem de confiança que vai implantar um dente em sua boca. O dente tem um chip de memória com espaço suficiente para guardar os fontes do seu programa. Agora vá e não volte, não podemos nos ver mais, por uns tempos. Não esqueça da senha, quando encontrá-lo pessoalmente pergunte se ele já leu “Marimbondos de fogo”. Ele saberá do que se trata. Se cuida, adeus. Te amo.
Harry foi a um terminal público de acesso à Internet-III, acessou um servidor de anonimato e foi redirecionado para os computadores do seu escritório, de onde copiou e apagou todos os dados referentes ao seu programa de inteligência artificial.
Durante o demorado processo tentava entender o que Megan lhe dissera. Se fosse assim não poderiam matá-lo, quem iria alterar o programa? Levariam anos para entender os fontes.
Além disso eles só tinham os fontes da primeira versão. A versão nova, a 2.0, muito mais poderosa, ainda estava em testes pré-homologação. “Será que alguém está tentando me mandar um recado?”.
Enciclopédia Britânica edição 2045
Poética – Programa de computador desenvolvido pela equipe chefiada por Harry Smith no MIT destinado à análise literária. É um programa de criatividade artificial que analisa obras literárias. Ao contrário de seus similares, que fazem uma análise acadêmica, o Poética faz uma análise mercadológica e diz, com 95% de certeza, quantos exemplares serão vendidos de uma determinado livro. A previsão é regional, já que os gostos e costumes, embora globalizados, ainda variam de um local para outro conforme a cultura e o gosto popular. Para chegar a este espantoso resultado, o programa “aprende” durante um período o gosto popular, pela inserção de obras em sua memória e análise das estatísticas de venda. Outros dados históricos e sócio-econômicos alimentam o programa, cujo algoritmo patenteado é guardado a sete chaves pela editora Dark Star que detém a licença exclusiva de uso do sistema. O software, muito criticado nos meios artísticos e acadêmicos, trouxe lucros monumentais à Dark Star.
Poética, Arte – Obra de Aristóteles…
Com um novo dente implantado na boca, transferiu os dados para a memória do dente e tomou um navio cargueiro para o Brasil. Foi como ajudante, não pagaria passagem e ninguém faria perguntas. De lá tentaria obter informações e entender o que estava acontecendo.
A vida no navio não era fácil, além do trabalho pesado, da comida ruim e do clima de desconfiança generalizado, havia criminosos a bordo que matavam e roubavam por alguns trocados. Harry sempre levara uma vida espartana, sem luxos e, embora tivesse doutorado e trabalhasse em pesquisa, tinha uma aparência rude e treinamento militar. Soube se impor e desenvolveu um certa camaradagem com os tripulantes, mas, se necessário, sabia como matar um homem usando apenas as próprias mãos. Era um navio velho, a hélice, ressuscitado de um cemitério de navios, depois da publicação da lei “mares abertos” que permitiu o uso de qualquer tecnologia, não apenas magnetohidrodinâmica. Mais uma “vitória” dos que pregavam a liberdade econômica plena.
Harry, por influência de Megan , se envolvera com uma organização política clandestina que tinha ramificações e alianças pelo mundo. Assim que chegou ao porto de Santos, procurou seu contato, indicado por ela.
– Muito prazer, meu nome é Robert.
– Muito prazer, Harry
– A partir de agora seu nome será Joseph. Jamais mencione o seu nome verdadeiro nem o nome da sua namorada para ninguém, entendeu? Vamos comprar uma máquina fotográfica e uma camisa florida. Você é um turista canadense. Não gostam muito de americanos por aqui.
– Gostei daquela Cannon, sempre quis ter uma. A camisa, estou fora.
– Você vai dirigir as operações na América Latina, disse Robert, atento à reação de Joseph. Pedimos desculpas pelo incidente do dente, mas tínhamos que trazê-lo de forma segura, com poucas explicações.
-Ótimo, Então vamos abrir uma editora de guias de viagem, para combinar com a câmara.-Respondeu escondendo seu espanto, não era de demonstrar emoções.
A rede subversiva operava em camadas independentes. A primeira era apenas fachada. Joseph viajava constantemente pelos paises latino-americanos para editar e atualizar seus guias : Bogotá Econômica para Brasileiros; Buenos Aires, idem. Virou uma espécie de garoto propaganda do negócio, sempre com a Cannon no pescoço. Um bigodinho fino e a calça branca completavam o ar de cafajeste latino. Vendidos a preço reduzido, os guias se tornaram populares, mas o negócio não dava lucro. Não era o objetivo.
A segunda camada, uma rede clandestina que comercializava informações e contra-informações para as empresas do mundo.
Joseph criou o esquadrão Mitnick, em homenagem ao hacker Kevin Mitnick, cuja missão era penetrar nas redes de computadores das grandes corporações para roubar informações e segredos tecnológicos que eram repassados aos concorrentes mais fracos. Uma espécie de Robin Hood digital.
Era a principal fonte de recursos financeiros.
Joseph alterou o Poética para analisar notícias e prever o comportamento da bolsa e dos mercados por análise fundamentalista, combinada com análise gráfica. Era possível monitorar a tendências do mercado e influir onde fosse necessário.
– É a pata invisível; quando as empresas saem da linha, chutamos algumas bundas―.Dizia Joseph, em alusão à teoria de Adam Smith.
Chutar bundas era um eufemismo para descrever ações como a explosão do Tokamak da Honda, no Japão. Sabotagem feita para parecer acidente, impediu o monopólio de energia na região. O “acidente” favoreceu a proliferação dos reatores de fusão a frio que, embora mais seguros, tinham capacidade de geração muito menor. A rede subversiva conseguiu difundir, entre a população, a falsa idéia que um acidente em um Tokamak de grande porte poderia criar um buraco negro e destruir o planeta e, com isso, provocar medo.
Para rodar o Poética, Joseph necessitava de um supercomputador. A engenhosidade de seus pupilos foi posta a prova e o resultado foi o DOOM 3000, composto por 2048 consoles playstation VIII interligados por dark-fiber, com sistema operacional LinuxGrid. Nada a dever para os computadores da antiga NASA, comprada, a preço de banana, pela American Airlines & Space.
A terceira camada, dividida em células, era uma rede de sabotadores que agia quando outras medidas se mostravam ineficazes, como no episódio da Honda. Parte dos recursos operacionais vinham de atividades ilegais das células, como roubos a empresas e bancos, sempre com intuito principal de manter o equilíbrio de forças.
Ao final de quase duas décadas, as operações do grupo subversivo tinham evitado o aniquilamento da concorrência mais fraca ou mais honesta. A estrutura montada e a capacitação das pessoas envolvidas formavam a espinha dorsal do que poderia vir a ser um governo global.
A população já começava a sentir os efeitos econômicos da luta prolongada entre as corporações que, mais e mais, empregavam a violência para melhorar seus negócios. Havia uma crescente aprovação pela população ao movimento subversivo. A idéia de uma revolução em escala planetária já não era um sonho.
-Joseph, boas notícias. Sua namorada chega amanhã. Ela vem para a grande marcha, finalmente chegou a hora.
Quase sem palavras Harry sentiu que uma lágrima poderia rolar. Mas não rolou. Não havia lugar para sentimentos. Não tinha o direto, dezoito anos longe da mulher amada era um preço pequeno a pagar. E os que morreram, os que foram torturados? Logo estaria com Megan , para sempre.
Em dois dias, seguiriam rumo à estação Finlândia para um reinício simbólico.
F Andrade