Reflexões de uma Galinha

Reflexões de uma Galinha

 – Irineu! Ô, Irineu! Tá na hora de acordar e acordar os outros, também! – diz dona Carijó.

Irineu e Carijó. Esses eram os nomes do galo e da galinha do Rancho Alegria, cujo dono era o jovem Manoel.

Irineu não foge à rotina: sacoleja e depois ajeita as bonitas penas. Lava os redondos olhos. Escova o duro bico amarelo. Apruma a respeitável crista. E, finalmente, o principal: faz o sagrado e necessário gargarejo – mistura de água e sumo da casca de romã – para deixar as cordas vocais sempre saudáveis e afinadas. Gargarejo cuidadosamente preparado por sua zelosa esposa, dona Carijó. Irineu sai, emproado igual militar: peito pra frente, pescoço ereto, barriga retesada. Daí a pouco, todos ouvem as poderosas e rítmicas batidas das suas asas e o seu bonito canto. Devagarinho a fumaça espreguiça-se por sobre as chaminés das casas da vizinhança noticiando que seus moradores acordaram.

Dona Carijó, por sua vez, também, não foge à sua rotina de dona-de-casa. Vida dura aquela sua; principalmente, o cuidar dos doze filhos, todos da mesma idade. Invejava, algumas vezes, a vida do marido: só cantar. Cantar e namorar. Namoros passageiros, como chuva de verão, quase que se podia dizer consentidos, aos quais ela fazia vista grossa, para evitar um conflito familiar. Porém, dona Carijó sabia que Irineu não podia ver uma franguinha, que logo era aquela arrastação de asas sem fim. Verdade seja dita: ele era realmente bonito. Galão índio legítimo, coxas bem grossas, peito largo, penas avermelhadas, esporas afiadas e brilhando de tão limpas. Irineu sempre bem falante. E o seu canto, então? O mais lindo! Era ouvir o seu canto, e muitas da sua espécie demonstravam descontrolada inquietação. Até hoje, depois de tanto tempo casada com Irineu, isso acontecia com ela, para quem o véu da sensualidade há muito se descortinara. Imaginem com as outras, então.

Certamente – pensava dona Carijó – fora por Irineu reunir todas essas qualidades que o pai dela, falecido há algum tempo, a empurrara para o lado daquele imponente galo recém-chegado. Não só a empurrara para ele, mas a ele concedera o mais almejado título do terreiro: Rei. Ela era uma franguinha ainda, na flor da idade, porém tinha lá o seu charme especial e um corpinho muito bem feito! Tinha de reconhecer: era uma carijozinha vistosa. No início, amizade. Depois namoro, noivado, casamento e, hoje, aquele mundaréu de pintinhos. Tais recordações – tão boas – faziam bem à sua alma. Enquanto pensava, preparava uma reforçada vitamina de minúsculos insetos para a pintaiada que já estava para acordar.

Aproveitou para dar uma olhada lá fora. Como sempre, lá estavam os dois: Manoel e o seu galo – dela também – Irineu. O agricultor gostava de Irineu. Os homens não deixam de ser engraçados com suas manias: uns gostavam de gatos, outros de cachorros, outros de passarinhos. Manoel gostava mesmo era de galos. Fosse onde fosse – à venda, à cidade, à casa de alguém – fazia-se acompanhar do seu fiel guarda-costas de penas. Até conversar com Irineu conversava. Pedia-lhe e dava-lhe conselhos. Era Irineu pra cá, Irineu pra lá. Até de “filho” Manoel chamava Irineu. Por isso, os humanos achavam que Manoel não regulava bem do juízo. Para ele, era Deus no Céu e Irineu na Terra, coisa até compreensível para dona Carijó, mas além do entendimento humano. Eles eram, realmente, pele e pena. Esse desmedido apego, às vezes, dava à dona Carijó até ciúme.

De uns tempos para cá, o Rancho Alegria parecia estar enfrentando as dez pragas que acossaram o Egito em tempos bíblicos. Era uma danação atrás da outra: primeiro, os gafanhotos que puseram fim às plantações. Depois, os ratos, que destruíram os grãos armazenados. Apareceram também cobras que mataram grande parte das criações. Mais: cupins e formigas cabeçudas, com seus exércitos frenéticos e superorganizados. Até o clima, que era estável, desandou: ora chuva demais; ora chuva nenhuma. Assim, as pragas se sucediam.

“A situação não estava boa”. Foi o que a própria dona Carijó, como quem não quer nada, ciscando daqui e dali em volta do homem e do galo, ouvira Manoel falar, em conversa reservada, com Irineu. Manoel não sabia mais o que fazer. Confidenciara a Irineu que até as panelas que sempre foram cheias estavam se esvaziando a cada dia. A família e ele próprio já não agüentavam mais o pobre cardápio: chuchu com abobrinha. No almoço e no jantar. Todos os dias. Por todos esses problemas e aborrecimentos, andava meio macambúzio.

Certa feita, dona Carijó estava almoçando, sossegadamente, uma suculenta minhoca com os filhos, quando viu Manoel andando em sua direção. Teve um pressentimento horrível. Seu coração gelou: lembrou-se, de imediato, da conversa de Manoel com Irineu, dias antes. O instinto maternal dá o aviso aos filhos: fujam! Ela própria tenta correr, mas Manoel já havia conseguido apanhá-la. Apavorada, procura de todas as formas libertar-se, porém o que representa a força de uma galinha frente à força bruta de um homem? Nada, absolutamente nada. Nada também foi o que o marido Irineu pôde fazer para ajudá-la. O que ele fez – ainda bem! – foi apenas retirar os filhos dali, para que não testemunhassem o pior: o muito provável assassinato da mãe, a morte daquela que, para ele, era a esposa sempre devotada! Desespero de todos.

Indiferente ao pavor dos galináceos, Manoel passa pela cozinha, agarrando firmemente o que seria dali a pouco o almoço da família. Naquela crise, um grande reforço, sem dúvida. Dona Carijó presa pelas canelas e de cabeça para baixo. Para toda aquela família era uma questão de sobrevivência. Para ela, uma situação vexatória, incômoda e pra lá de preocupante: sua morte – quase certa – garantindo a vida de todos eles. O sangue indo todo para a cabeça, dificultando a respiração. Mesmo assim, ela consegue ver em cima do fogão a água borbulhando, a água fervente que seria utilizada para seu último banho. Sobre a pia, bucha e sabão para limpar ainda mais seu corpo, que, àquelas alturas, estaria desnudo, bem peladinho: sem uma pena sequer. Vergonha não sentiria, pois quando isso acontecesse, já estaria morta. Melhor assim do que passar por mais esse vexame…

Na área contígua à cozinha, dona Carijó vê um prato no piso com um pouco de vinagre. Vinagre ou limão, que o crescente nervosismo não lhe deixara distinguir, mas a utilidade era a mesmíssima: não deixar que o seu sangue coagulasse. Ela seria, certamente, saboreada ao molho pardo.

Lá fora – local em que seria sacrificada – com as asas devidamente imobilizadas, está indefesa. As asas cruzadas sobre as costas a deixava desequilibrada, com as pernas trôpegas como se estivesse bêbada. Para não cair, agachara-se. Ouviu o barulho da faca na pedra de amolar. “A faca deve estar sempre bem afiada para não judiar da criação”, assim diziam os humanos. Terrível angústia! Dona Carijó sente seu coração disparar e tem a sensação de que ele se mudou: do macio e confortável peito para o rijo e apertado pescoço. Sua língua está cada vez mais seca, e o bico, semi-aberto. Seus olhos começam a marejar.

Manoel vem em sua direção com a faca em punho. Decidido. Dona Carijó pensa no marido e nos filhos: vê-los… nunca mais! Como é que seus pintainhos sobreviveriam sem a sua atenta vigilância? Esse pensamento aumenta a angústia. As galinhas, quase todas, são boas mães: sempre rodeadas pelos muitos filhos, dificilmente perdem a paciência e estão sempre dispostas a tudo para defendê-los. Numa fração de segundo, recorda-se de toda sua vida: desde a complicada e arriscada operação de quebrar a casca do ovo até o momento em que fora agarrada pelo Manoel. E, ali estava ela, prestes a afogar-se numa banheira de variados temperos.

Manoel aproxima-se. Pisa sobre as canelas da galinha e com a faca começa a pelar o seu pescoço. Uma dor atroz, acrescida de um medo como nunca sentira. Dona Carijó não agüenta: defeca. Que vergonha, pensa. Era preciso ter coragem, não desanimar, pois “a esperança é a última que morre”. Estava acostumada a ouvir essa frase dita pelos humanos para consolarem-se uns aos outros quando a situação não ia lá muito bem. Naquele desespero, agarra-se a essa frase e dela faz a sua bandeira de luta para tentar afastar aquela friagem que lhe percorre o corpo. Como por milagre, a voz da patroa Graça se faz presente, em tom de súplica:

– Manel, mata otra, num mata ela não! Tadinha da bichinha. Ela tá cum nóis há tanto tempo…

Graças à boa patroa, certamente, não iria morrer. Estaria salva, então? O patrão, nessas polêmicas questões doméstico-familiares, sempre costumava concordar com a esposa. Um grande alívio toma conta de sua alma, por alguns instantes. Angustiante expectativa, que cai por terra com a resposta de Manoel:

__ Muié, o que que eu posso fazê? Me diga, que eu faço! Num tem otro jeito. As otras galinha que nóis têmo é tudo mais nova: tão botano ovo, tão chocano… A carijó aqui é a mais véia, nem botá mais num tá botano…

Reforça a justificativa dada, em seguida:

– Se a situação num tivesse tão feia, ocê acha que eu ia fazê isso? Eu tambéim tô com o coração partido de tê que fazê isso cum ela. Galinha botadera das boa! Chocadera responsave como ela eu nunca vi: num largava o ninho de jeito nium. Essas de agora só qué ficá zanzando, pra baxo e pra cima. Elas num téim néim idéia do que é ser uma galinha responsave iguar a essa nossa carijó. Nóis todos devemo muito a ela.

Com um sentido suspiro, arremata:

– Coitada!

Diante de tão contundentes argumentos, diz Graça, entre conformada e triste:

– Intão dexa eu sair pra lá, porque eu num posso cum sangue…

Será que ouvi direito? Ela disse “sangue”… Meu Deus, vou morrer mesmo! Dona Carijó, ouvindo aquele triste veredicto, pensa na morte cada vez mais próxima! Imaginara, sempre, que iria morrer de velhice, de alguma peste ou do fatal gogo. Mas morrer daquele jeito? Assassinada e depois comida pelos seus tão estimados donos? Isso nunca passara pela sua cabeça de galinha.

Imaginava-se, agora, sendo devorada pelo casal de agricultores e pelos seus filhos. As crianças, certamente, brincariam com o osso do seu peito em forma de V. Cada qual pegaria, com força, um lado do osso de forma a deixar o vértice daquele quase triângulo para cima. Quando o osso se quebrasse, quem ficasse com a parte maior teria seu desejo secreto realizado. Essa era a brincadeira.

Alguns ossos seriam chupados, prazerosamente, por Manoel, que depois lamberia os beiços, todo satisfeito. Isso dona Carijó já o vira fazer depois de ter almoçado a saudosa e doze vezes comadre Pena. Agora era chegada a sua vez: pés e asas – partes preferidas pela patroa Graça – seriam chupados, também, até ficarem branquinhos. Coxas, sobrecoxas, costelas, pescoço, tudo, tudo seria devorado. O que sobrasse – se sobra houvesse, pois parecia que a fome resolvera hospedar-se, por tempo indeterminado, no Rancho Alegria – seria repassado ao enorme perdigueiro Leão, de muito boa cepa, cobiça de muitos. Até você, Leão, que eu tinha na mais alta estima?!… Enganei-me com todos vocês, pensava dona Carijó. Inenarrável a sua desilusão.

A dor dessa desilusão de dona Carijó soma-se à dor física: Manoel segura com mais força o seu frágil pescoço. Falta-lhe o ar. Dona Carijó está quase sufocada. Seu desespero fica ainda maior, pois está imobilizada. Pensa: – Será que ele mudou de idéia? Em vez de cortar meu pescoço, vai quebrá-lo? Qual a forma menos pior para se morrer? Na verdade, tais questões não tinham qualquer importância. O certo era que, dali a pouco, estaria, irremediavelmente, morta!

A dúvida sobre como iria morrer – se com a jugular cortada, ou com o pescoço quebrado – esvai-se quando dona Carijó sente as pancadas desferidas com as costas da faca em seu pescoço para ajuntar ali todo o seu sangue. Não restava, agora, nenhuma dúvida ou esperança: teria, mesmo, a jugular cortada pela faca afiada de Manoel. O seu final próximo, muito próximo, sem dúvida.

Manoel encosta a lâmina em seu pescoço. Dona Carijó sente a lâmina fria e afiada. Tão afiada quanto as esporas do seu amado galo índio, que o digam aqueles que ousaram desafiar sua autoridade monárquica. A pressão do aço aumenta contra a sua carne. É o meu fim… – pensa.

– Joana! Ô, Joana! Eu já estou saindo pra trabalhar – avisa Francisco, sacolejando o corpo de sua mulher, que ainda dormia e tinha o rosto molhado de suor.

Joana – dona-de-casa, morena jovem e bonita, boa parideira, o sétimo filho já estava quase com os pés no estribo dessa corcoveante vida – abre os olhos e fecha aquele terrível pesadelo que tivera. Joana ainda consegue ver seu marido todo arrumado – para ela, um galã de cinema – passar a mão no violão, abrir a porta da sala e ganhar a rua naquela noite de domingo. Francisco é cantor de um famoso e bem freqüentado bar: Bar Alegria.

A bonita morena levanta-se ainda meio adormecida e ainda um pouco atordoada. Olha-se no espelho e vê seu corpo. Nenhuma pena, graças a Deus! – pensa aliviada, enquanto passa as mãos no rosto, alisa os cabelos e esfrega os braços para certificar-se que era ela mesma, e não dona Carijó que estava ali. Após esse simples exame, exclama decidida:

– Exceder na galinhada? Eu? Nunca mais!

Volta para a cama. A cortina de seus grandes olhos negros volta a baixar-se lenta, muito lentamente…

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