Se Te Toco é Porque Gosto de Ti
Houve um tempo em que tínhamos dezassete anos. Oh, que belo tempo, o nosso, as saudades dele! O que não nos permitimos hoje, fazíamos então, sem razão. Assusta a ligeireza daquilo tudo, agora que, por cima do ombro, vemos com olhos em lágrimas o que fazíamos no nosso tempo. Não há agora margem para qualquer manobra desviante, mas então havia. Aquilo era de dia e de noite. No Verão, então! O desnudar com intentos belos, somente. Na praia, quantas e quantas vezes não nos despíamos todos e nus, como anjos, nos fazíamos ao mar. Tão inocentes. Tão felizes, os corpos uns nos outros. Tocavam-se os corpos e nós éramos livres. Hoje, estamos votados ao exílio da vergonha. Vergonha é a palavra. De uma praia no ocidente, que não precisa de ter espaço, apenas tempo, o tempo dos nossos dezassete anos, dessa praia, onde o sol sempre nos ajudou a ser jovens, escapámos a salto para uma prisão, que é um exílio, dito dourado. Na vergonha julgamos viver mais felizes, mas estamos insuportavelmente apertados. Há dias em que isto está tão quente, tão viciado, tão podre, que me apetece pôr termo a tudo. Não sob a forma de suicídio, que, para ser eficaz e renovador da espécie, teria de ser em grande escala, implicando um tão grande número de pessoas que se tornaria impraticável. Plano esplêndido, mas impraticável, porque cumplicidade nenhuma se prestaria a ele – perdem-se as cumplicidades quando estamos ratos.
Quero muitas vezes acabar com isto, saindo daqui, fugindo, depressa, olhando em volta apenas para me certificar de que não sou acompanhado por qualquer camarada que um dia se tenha também desnudado comigo. Quero ir para outra terra sozinho, abandonar esta. Fazendo-o, acabaria por arruinar as memórias dos meus dezassete anos e, bem vistas as coisas, prefiro ter de respirar ar rarefeito e conservar aqui na cabeça um filme antigo e viçoso, de que sei que sou o principal autor, a ter de procurar uma terra que não existe e deixar pelo caminho partes do filme, para, não encontrando a terra prometida, e sei que a não encontro, ter meio de saber encontrar o caminho de regresso ao exílio. Nada consigo. Não há outra banda. Há isto e é tudo.
Entenda-se que não estou louco. Que não digo que não estou por já estar. Não tenho sequer medo de ficar louco. Tenho os cinco sentidos bem medidos e uma força e determinação muito grandes. Não sou dos que se deixam abater, como o pobre que na semana passada gritou um dia inteiro, agarrado à almofada com que cobria a cabeça, e, antes que se despisse todo e, sem prestar contas a quem aqui está, se pôs a exibir partes do corpo que me escuso de nomear. Teve um fim trágico, como é evidente. Mal as carnes se intrometeram no enlevo com que querem que levemos a vida, foi abatido e enterrado, sem que entre as acções transcorresse mais do que meia hora.
Quanto a mim, nada do que me é hostil me degrada. Não me fortalecendo, não me abate. Mesmo se o oxigénio que nos é administrado, com a atenção devida perante o bem escasso que ele agora é, parece, as mais da vezes, ar rarefeito, mesmo se à minha frente matam um homem que berra e se livra das vestes e me pedem que seja eu a enfiá-lo, bem encoberto, nos alvéolos cor-de-rosa que cobrem o que outrora designávamos por céu, coisa que faço, sem tragédia – não me vergo. Sinto-me forte e conservo a sanidade mental suficiente para escrever o que estou escrevendo, numa reprodução do que vi e senti quando não vivia na vergonha, quando tínhamos dezassete anos e um desmazelo que era a liberdade a falar por nós.
Nesse tempo… Ai, tristeza desmedida! Não é fácil falar dele. Esse tempo terminou sem revolução. Não houve revolução. Antes tivesse. Houve um chá dançante, durante mais de quinze anos. Se quero ser preciso devo dizer que foram dezasseis anos e três meses. Ao cabo deles, uma lei escrita e aprovada por um comité de sábios, cuja legitimidade dimanava da nomeação pelo então escol de legisladores nomeados pela administração de cada cidade, nomeada pelo auto-proclamado governador do território, que tomou o poder na sequência de um espectacular golpe palaciano no ano em que fiz 18 anos. A lei dizia que as cidades tinham de por cobro ao destempero que grassava. E nisto começou a instalação dos alvéolos por sobre os edifícios, mesmo os mais altos, rarefazendo o ar, a construção de altas paredes de cimento entre cada rua da cidade, de maneira a apartar as pessoas e prevenir diatribes. Três pancadas. Veio a construção de enormes fábricas de têxteis, o enjaulamento de milhares de mulheres responsáveis, nelas, pela fabricação de mantas, gabardinas em materiais sintéticos, por forma a facilitar a lavagem, camisolas, luvas, meias, botas, casacos, sobretudos, cachecóis, mais botas e mantas e camisas vermelhas e azuis, com estrelas brancas nos bolsos.
Encasacaram a maralha, foi o que foi. Agora, imagine-se o que são os corpos encasacados, os mesmos corpos que se iam e vinham numa praia livre, livres. Livres quer dizer sem o esconjuro da norma. Quer dizer corpos no mundo como nunca no mundo houve corpos. Uma coisa alumiada. Corpos que pediam corpos para aliviar neles uma vérmina inconcebível. Corpos com desejo nascituro, que é, sabe-se, desejo morto, que saciar uma fome é matá-la. Desejo, ainda assim. Com a escolha a que ele nos obrigava, vazávamos o que nos convinha, do modo mais mesquinho que há, que é o de meter um corpo à frente de outro, numa competição sem mesura. Está bem de ver que acabávamos sempre por ficar sob a pele escamando o que sobrava do desejo, tal havia sido, e era sempre, a velocidade que punhamos no empenho.
Isto no tempo dos dezassete.
Depois, os dias que acabaram por matar o corpo. Ele aparecia por toda a parte, ganhou foros de pandemia e as pessoas, já se sabe, não gostam de pandemias. A pandemia traz a morte e só a morte não nos serve. O corpo tornara-se isso mesmo. A morte encarnada. Morria-se do corpo. Os corpos invadiram as praias dos nossos ocidentais dezassete anos. Milhões de corpos, sujos, demonizados, carregados de aromas pérfidos, atiraram-se aos nossos olhos, primeiro, às pernas e aos pés, depois. E depois ao corpo todo. Eram corpos e corpos, sem refrega, com uma maldade que os corpos nem sabiam que carregavam, dias e dias nisto, as horas todas que os dias já nem tinham. Os céus cobriram-se de corpos flutuando, como jamais se vira. O corpo do horror e a lei escrita e aprovada por um comité de sábios.
Acabou-se. Agora há uma jaula. Não há desnudamentos intoleráveis. Agora, como me traz aos olhos lágrimas qualquer espécie de afecto. Agora, que carência ter se não há remédio para ela? Estou disposto, disposição sincera, a conservar as memórias. Certo, também, de que me privo do que já tive em abundância porque da abundância fiz, sim, fiz, fizemos todos, claro que fizemos, uma bomba H. Vivo aqui comigo, nesta vergonha enfaixada em muito tecido, sem formas, sem tacto. Uma visão medonha. Nunca mais se é o que se foi num tempo nosso.
Bruno Horta, 24 anos, natural de Beja, jornalista freelancer.