Pólvora
Alienei-me, confesso.
Na semana em que saiu a lista do Janot, seguida da nojeira da Carne Fraca, catei o filho pequeno e fui assistir “A Grande Muralha”, de Zhang Yimou.
A verdadeira muralha, construída para dar ocupação à mão de obra ociosa e trabalho forçado aos fora da lei, não protegeu a China dos mongóis, mas sobreviveu como símbolo da superpotência oriental.
A da película serve de argumento para uma trama esdrúxula. Yimou já foi melhor…
Europeu mercenário arrependido, amigo de um chicano espanhol sem caráter, aprende o valor da solidariedade graças ao altruísmo de uma guerreira chinesa esquálida, com quem não troca nem um aperto de mão.
A cada 60 anos, monstros alienígenas, mistura de besta-fera com crocodilo, avançam contra a barreira para se alimentar de humanos. Um exército camicase segura o tranco, a fim de evitar que os demônios devorem os chineses, ganhando sustança para dizimar o resto da humanidade.
A primeira aparição da matilha é tão exagerada, que logo bateu o enfado que sempre me acomete nesses filmes estilo video game, onde o mesmo programa de computação gera bilhões de soldadinhos que se debatem numa guerra fria.
“Star Wars”, “Guerra dos Mundos”, “O Senhor dos Anéis”, a lista não tem fim, todos se valem desses combates pretensamente grandiosos, que entediam o espectador com baixas de trilhões de pixels.
Que saudade de “Spartacus”, “Glória Feita de Sangue” e “Barry Lyndon”. Das reconstituições de Kubrick das Legiões Romanas, das trincheiras da Primeira Guerra e do heroísmo patético das frentes de batalha do Século 18. Que falta do Kagemusha de Kurosawa, dos samurais de carne e osso, pintando de sangue vales brumosos. Ou mesmo de Alien, o bicho-papão de Ridley Scott, que primava por se esconder.
Com gastos em tecnologia inversamente proporcionais ao tempo dedicado à concepção dos diálogos, os filmes se tornaram escravos do exibicionismo gratuito do Vale do Silício. O cinema acabou, só sobrou o game design.
Em vez de impactar, a comodidade replicante do mundo virtual produz efeitos risíveis. Dei de gargalhar, quando vi a quantidade de cachorros loucos que o mocinho ia enfrentar. Nem El Cid morto, amarrado ao cavalo, levantaria o moral da tropa.
E a carolice ímpar das películas?! É de apavorar. Em “A Última Esperança da Terra”, Charlton Heston espantava o terror dos zumbis, nos braços parrudos de Rosalind Cash, atriz afro-americana, dona de um cabelo black power pra lá de empoderado. Mas Will Smith, no remake “Eu Sou a Lenda”, enfrenta apocalipse idêntico sem encostar uma unha em Alice Braga.
Ninguém trepa, ninguém ama, ninguém morre à vera. É tudo bonequinho, ataque de totó. O famigerado algoritmo, que transforma todo internauta em tendência e toda ficção em marasmo.
Só tive um minuto de epifania. Foi quando imaginei Brasília cercada pela muralha. Que filme daria. De quatro em quatro anos, Godzillas com foro privilegiado, sedentos pelo financiamento de campanha, desceriam do Planalto Central para arrancar nacos da saúde pública, promover carnificinas com alunos de escolas estaduais, destruir pontes inacabadas, beber o esgoto in natura de barracos sem saneamento e vomitar carne podre na população local.
2018 vem aí. Cadê a pólvora?