Daniel

daniel

SENTIDOS

O crepúsculo inicia a sua longa jornada,
Por entre batalhas perdidas e vencidas,
Por caminhos que levam ao nada,
Entre memórias à muito esquecidas…

O desejo prepara as suas garras
Para com elas desejar guerrear
A invencível força das amarras
Segurando no solo quem deseja voar…

O fogo deseja gravar na pele
O amor desaparecido na areia.

Nenhuma chama de puro mel
Docilmente queima, nem incendeia

O coração frio de tanto sofrer…
A minha vida é um curto resumo.
Aparentemente acabei por me perder,
Aparentemente, já não tenho rumo.

A ÚNICA…

As lágrimas incessantes do meu coração aberto
Mancham a minha alma com nódoas ardentes,
Das quais, por muito que tente, não me liberto,
Nem da solidão, que em mim, sussurra entre dentes:

“Foste derrotado, foste indesejado e cuspido ao chão…
Caíste nos teus joelhos quando a esperança se foi!
Deixa-te estar assim, prostrado, lacrimoso, em oração,
Pois sabes que não é a ferida da carne que te dói!”

Nunca me perderei mais no que poderia ter sido…
Não quero mais desperdiçar esta vida insignificante!
Posso ter sido injustamente derrotado, vencido,
Mas isso não fará de mim um eterno errante!

Aceito o meu passado para poder possuir um futuro,
Não lamento o ontem em detrimento do amanhã!
No desejo de ter um coração de pedra, forte e duro,
Eu sei perfeitamente, que de pedra, ele nunca será…

LUAR

O que desencadeia o estimulado
Sabor de frutos destruídos?
As acalmias de um mar transtornado
São música para os ouvidos

De quem na praia se senta
Olhando para além do mundo…
O ondular é a foz que aguenta
As lágrimas de um rio moribundo

Que corre sem ter onde correr,
Que respira sem ter ar,
Que vive porque vai morrer,
Que grita porque não sabe falar…

Pelo recanto do olhar felino
Se vislumbram as emoções…
As vozes são o cantar de um sino
Que harmoniza as recordações

Da ondulação suave e pacifica
Que presentemente se faz sentir…
A sombra é audácia magnífica
Que combate o inexistir…

Disperso, exausto, sem alento
No íntimo do meu vazio peito,
Eu sonho alto o meu tormento,
Alegórico fruto do mar desfeito,

Que frequenta o meu coração
E minha alma preenche…
Sou desprovido de visão,
Cego na maré que enche

O areal de lágrimas solitárias,
O corpo de desabafos sentidos,
A mente de lembranças sedentárias,
A alma de desejos esquecidos…

Em breve o sono me levará
A um sonho, pesadelo ou festa…
Terei paz até chegar o amanhã…
E isso é tudo o que me resta…

Quando os olhos omitem o ver
E os lábios esquecem o beijar
Todos riem de mim ao saber
Que uivo minhas mágoas ao luar…

LUTAS…

Estou caído no escuro,
Não vejo, mas sinto temor!
Rastejo um solo obscuro,
Inerte, vago, sem cheiro ou sabor…

Razões que ninguém me diz…
Dói, arde novamente
Os cortes abertos que eu fiz
No coração, na alma, na mente!

Eu sou apenas como tu…
Sinto mais, com mais intensidade?
Será que o meu corpo nu
Poderá ser, junto ao teu, realidade?

Não me amas, apenas sentes
Um corpo que também não ama…
As labaredas são beijos quentes
Que me beijam a cada chama!

As lágrimas não apagam este fogo!
Os sonhos são esperanças que perdi…
No mar ardente da decadência me afogo
Sem luta… não sofro, não amo, já morri!

David Roballo

davi

MULHERES

Mulheres!!!
Deusas disfarçadas na fragilidade.
Com apenas um olhar
São capazes de destruir
E reconstruir a humanidade.

Deve ser por isso
Que os homens recalcados
As prenderam em um livro
Como inventoras
Do pecado.

Desde então está guardada a luz
De todas as estrelas e sois
Longe paira verdadeira felicidade
Que a paz conduz nos braços de
Seus olhos radiantes cheios de vida…

Tantos anos no porão
Da cozinha as fizeram
Diminuídas, escabeladas
Desacreditadas da própria
Divindade inata…

É assim, que os machos as querem
Subjugadas, medrosas e submissas
A uma ordem, a uma ilusão desenhada
Para contê-las presas
Na própria claridade.

Evas contemporâneas;
Mães de cains e abéis desenfreados
Vassalas de adães desmiolados…
Já é hora de iluminar o mundo
Com seus predicados…

CLARIDADE

Vem já aurora cor de rosa
Desfraldar a incansável chama
Astro dispersador de meus medos;
Ampliador de meus olhares;
A contemplarem as cores
Que tingem o horizonte.

Venha aquecer-me luz de minha esperança
Venha acariciar-me as madeixas
E os sonhos que brotam de minha insanidade…
Venha dar-me teus raios, que dás a todos
Sem importar a natureza.

Venha debruçar-se em meu cenho calejado
Senhor incondicional e benévolo
Que repartes os dias que alimentam o tempo
Com a noite, que me açoita com mil tormentos.

Venha imprescindível flamejante
Enxugar-me as lágrimas
Pelo que o tempo comeu distante.

Venha, venha aquecer com tuas centelhas…
Este irmão de Diógenes…

Venha gênio sol, resgatar-me da miragem humana…

NOITE

Noite dama suprema das estrelas
Embebida de claridade em teu longo vestido
Que veste quando o sol se cansa dos humanos.
Ainda bem que existes, princesa da escuridão,
Mãe dos poetas, bálsamo de ilusão.

Noite fiel companheira e silêncio
Respeitosa inclina-te ao som das cachoeiras
E ao vôo da coruja sentinela;
Contemplo-te de meu átrio risonho
Ou do encosto de minha janela.

Noite avatar de minha inspiração
Em teus cabelos negros mergulho
Num mar de paz e contemplação;
A ti espero, a ti quero
Para escrever com alma e coração.

Eloy Franco

eloy

O QUE ADORO EM TI

Não são teus olhos cheios de um amor profundo
Que misturam candor com um quê de mistério.

Por teus olhos, qualquer homem deste Mundo
Daria com prazer o Mais Poderoso Império !
também não são teus seios imponentes,
Maravilhas inigualáveis, esculturais,
Expostos como dois promontórios insolentes,
Promessas arfantes de prazeres sensuais !

Nem é também aquela maravilha tão desejada,
Vistosa, peludinha . . .tão deliciosa como o Sapoti !
Altar do amor. . .De mil delícias a entrada,
Uma das mil razões de minha Paixão por Ti ! !

O que adoro em ti é a tua Alma sem defeitos,
Pura como o sorriso de uma criança,
Alheia ao Mundo, alheia aos preconceitos,

Rica de crenças, Cheia de Esperança !!!

SONHO DE AMOR

Um lindo amor, entre nós nasceu,
Sua Alma você, com avidez me deu.
Encontro que trouxe um feliz ensejo
De eterna delícia e sublime desejo. . .

Um lindo amor, muito bem cuidado
Não vai virar em um triste passado!
Bendigo contrito nossa união Divinal
E a beijo assim com um amor sensual,
Pois amor como o seu não tem outro igual…

HORA DERRADEIRA

Deus está pedindo estrita conta do meu tempo
E é preciso do tempo já dar conta.

Mas, como dar sem tempo tanta conta ?
Eu, que perdi sem conta tanto tempo ?
Para ter minha conta feito a tempo
Dado me foi bom tempo e não fiz conta.

Não quis, sobrando tempo fazer alguma conta.
Quero agora fazer conta e não tenho mais tempo.
Oh ! vos que tendes tempo sem conta
Não passeis vosso tempo ignorando vossa conta.
Cuidai, enquanto há tempo, de fazer conta.

Se aqueles que contam com tempo sem conta,
Fizessem desse tempo alguma conta,
Não chorariam agora por não terem mais tempo!!

Francisco Simões

francisco

ARDENTE DESEJO

Vem dormir nos meus sonhos,
Traz promessas aos meus desejos.

Sem pejo, despudoradamente,
Pressente meus anseios,
Me banha com teus beijos,
Me inunda de paixão,
Conduz a minha mão
Ao encontro dos teus seios
E, sem pressa, devagarinho,
Ensina-lhe o caminho,
E deixa que meus dedos,
Na avidez da ansiedade,
No roçar de mil meneios,
Te incendeiem de emoção o peito.

Flutuarás então na excitação,
A mesma que todas as noites
Me põe na tua direção,
Vagando em pensamentos
Buscando nossos momentos,
Esperando que de repente, num açoite,
Saltem do imaginário pro real
E nos atirem do sonho para o leito.

AMANTE GUERREIRO

Se sou poeta? Sei lá se sou,
Só sei que penso com o coração
E que quando escrevo me dou
Por uma paixão incontida
Que faz do meu peito a guarida
Dos sentimentos do mundo.

Sou amante, mas sou guerreiro
Diante da flor e diante da dor,
Por amor até morro primeiro,
Contra a injustiça miro meu brado,
Armo o soldado com as palavras
Com a indignação ao meu lado.

Cavalgo na trilha dos versos,
Com a poesia eu batalho
Sem pejorar, mas acusando,
Não recuando, apenas avanço,
Sopeando sempre o perverso
Universo de iniqüidades
Onde verdades são grandes mentiras,
Onde o perfeito se revela falho,
Onde a fome é um atalho
Pelo qual a morte encurta a vida,
Onde essa vida tem senhores,
Onde a hipocrisia, com favores,
Limpa a ferida, mas deixa as dores.

Se sou poeta é meu verso que diz,
Falando de amor para além dos desejos,
Talvez até uma imensa utopia,
Mas enquanto houver uma vida vazia
Eu não serei um poeta feliz.

MURO DO SILÊNCIO

Cala-te coração,
Eu te reprovo, te censuro.
Não derrubes o muro
Do silêncio,
Disfarça a amargura,
Num sorriso que não cura,
Mas te fantasia de não.

O sim não te traz proveito,
Tem algo de proibido,
Hostilizado no preconceito,
Desrespeitado e invadido
Na força da tua dor.

É só teu este amor
Então não te exponhas,
Não renuncies, mas não deponhas,
Pois não és réu, és amante.

Cala-te coração,
Mas leva adiante,
Carrega contigo no peito,
Na alma, no olhar,
Num gesto mudo de vida,
O que esta vida que fala
Jamais compreenderá.

Por favor, coração, te cala,
Ninguém te impedirá de sonhar.

José J. Santos

jose

O ESPELHO DA SOLIDÃO

O emaranhado de palavras
São o poema da nossa vida
O espelho na solidão de lavras
A ausência da vontade querida

Um passado que nem é para contar
E tudo o mais é transparente
Um futuro para quando o sol raiar
Como o desejo se torna eminente

Como o branco é alvura
O pensamento a razão atura
E se rende á compaixão

No acto de bem-querer
Dor e sacrifícios á que esquecer
É o espelho da solidão.

SABER DEIXAR

Correr no tempo, sem hesitação
Olhar o passado e esquecer
Os momentos tristes e de desilusão
Pensar no novo dia e saber
Saber amar é saber deixar
Saber deixar é saber amar

Todas as formas de querer
No desejo, na paixão
Os fantasmas são para esquecer
Dar espaço ao coração
Abrir a mente á oportunidade
Até poder amar com saudade.

O MEU RIO ALCABRICHEL

O rio nasce na serra de Montejunto
Vila verde dos Francos fica bem perto
Por Maxial, Ramalhal, ele passa junto
A-Dos-Cunhados é mais que certo

Junto as termas do Vimeiro
Que fica na Maceira
Lá continua sorrateiro
Até Porto Novo é ligeiro

No atlântico desagua
Sua foz é em Santa Rita
O Hotel assoma junto a lua
Campo de golfo todo catita

Ai rio tão imponente
Onde as gaivotas não tem asas
São as que levam gente
Não as que posam nas casas

Da serra e aldeias
Entre vales e escarpas
Tua beleza nos presenteias
Aos olhares não escapas

Nele eu nadava e pescava
Eram horas bem passadas no rio
Enquanto a minha mãe a roupa lavava
Eu ficava até tremer de frio

Agora não passa apenas
De um riacho de esgoto
Era um rio de águas amenas
Agora é um nado morto

A beleza natural
Que o homem consciente
Continua a fazer mal
A ele e a toda agente.

Lobo

lobo

AMAR VOCÊ

Estar com você
Não é apenas ter as estrelas
É ter todo o universo
Em um simples gesto
Em um simples olhar….

Amar você
Não é apenas uma gotinha
de água no mar…

É ter um lindo e imenso
oceano para nadar
E junto com você sempre estar…

Te amando sei
Aonde eu posso chegar!!!!
Te amando, amarei
Para sempre, ate
O mundo acabar!!!!

SONHO

Sua pele era quente
E mais quente a sua boca
Vermelha e carnuda
Sua boca serpente
Beijando com fúria
E tirando o veneno da angústia.

Suas pernas eram grossas
Como árvores da floresta
E negra era a noite
Do seu corpo aceso
Eu que me perdia
Em cada curva da alegria.

Seus seios eram duros
Com os bicos grandes
Eram como frutos
Feitos por um Deus sem nome
E mistério, quando mais se come
Mais se tem fome.

Seu sexo era úmido
Caverna, rio ou vazio
E quanto mais eu mergulhava
Mas eu me perdia
E jurava
Que amando, era amado.

E assim se passaram as horas
E a madrugada se transformou em dia
É quando acordo da doce orgia
Com o peso no pescoço
Os braços e o cheiro
Do amor dormido.

VIDA

Ela fica na janela
Olhando a vida que passa
Passa homens e meninas
Passa a vida e a passarada
E ela, nem feia e nem bela
Espera
Alguém que o diga:

– Sai desta vida
Ama
Até rasgar a ferida !

Passa um pouco mais de vida
E quando ela nota
Sua boca está fechada
E a alma morta
Não fez poesia
Nem ao menos gritou naquele dia
Quando abriram suas costas.

Rodrigo C. Limeira

rodrigo

A VIDA É VAGA

Imaginar uma vaga em alto mar,
É como ver a vida em sua existência,
Se a onda remata quando encontra a praia,
E a areia é o seu destino término.

Ser vivo é se sentir uma vaga,
E ter a certeza do arrebate final,
A vida encontra o seu destino,
Que é virar areia no seio da terra.

DAMA DO MUNDO

Ela veste vestido negro,
E ninguém percebe.

Ninguém vislumbra,
O lado sombrio que oculta,
O peito que lateja por nada,
O frio vazio de sua alma.

Dama dos versos noturnos,
Que perdeu o pranto um dia,
Ao se vê num beco sem saída,
Ao cair nas garras do mundo.

Não tens calor em tua vida,
Não tens a luz do dia,
Não amas ninguém,
Apenas aqueles que o bolso tem.

Tua beleza de longe encanta,
Ao coração do carente um perigo,
Lábios derretendo em batom vermelho,
Coração que não é de ninguém.

Dama de curvas sinuosas,
De coxas por muito deliciosas,
Teu corpo pertence a quem?
A aqueles que o bolso tem.

Dama de pele veludosa,
Macia, doce e cheirosa,
Tua pele pertence a quem?
A aqueles que o bolso tem.

Dama dos dias de hoje,
És comum nos caminhos da vida,
Não tens o amor de ninguém,
Neste mundo em que o bolso é rei.

O amor hoje em dia é loucura,
O casamento sem respeito, sem ternura,
Neste mundo em que o bolso é rei.

MAR DOS MEUS ANSEIOS

Imenso mar de águas escuras,
E temerosas funduras,
Que posso imaginar,
Eu posso buscar,
Em tuas bravuras,
Tamanhas ternuras,
Que estou a sonhar.

Nessas águas de espuma,
Mulheres tão lindas,
Ponho-me a pensar,
E na água salgada,
Eu deixo uma lágrima,
Se misturar.

Para que o mar,
Receba minha dor,
E me dê o amor,
Que quero encontrar.

Nárcisa Amália

rosa071

O LAGO

Calmo, fundo, translúcido, amplo, o lago
longe, trêmulo, trêmulo, morria.
No seu límpido espelho a ramaria,
curva, de um bosque punha sombra e afago.

Terra e céu, ondulando, eram na fria
tela fundidos! O queixume vago
que a água modula, de ambos parecia,
solto, ululante, intérmino, pressago!

– “Trecho vulgar de sítio abstruso e agreste”
talvez; mas todo o encanto que o reveste
sentisses; contemplasses-lhe a beleza;

comigo ouvisses-lhe a mudez, que fala,
e sorverias no frescor que o embala
todo o alento vital da Natureza!

POR QUE SOU FORTE

Dirás que é falso. Não. É certo. Desço
Ao fundo d’alma toda vez que hesito…
Cada vez que uma lágrima ou que um grito
Trai-me a angústia – ao sentir que desfaleço…
E toda assombro, toda amor, confesso,
O limiar desse país bendito
Cruzo: – aguardam-me as festas do infinito!
O horror da vida, deslumbrada, esqueço!
É que há dentro vales, céus, alturas,
Que o olhar do mundo não macula, a terna
Lua, flores, queridas criaturas,
E soa em cada moita, em cada gruta,
A sinfonia da paixão eterna!…
– E eis-me de novo forte para a luta.

RESIGNAÇÃO

No silêncio das noites perfumosas,
Quando a vaga chorando beija a praia,
Aos trêmulos rutilos das estrelas,
Inclino a triste fronte que desmaia.
E vejo o perpassar das sombras castas
Dos delírios da leda mocidade;
Comprimo o coração despedaçado
Pela garra cruenta da saudade.
Como é doce a lembrança desse tempo
Em que o chão da existência era de flores,
Quando entoava o múrmur das esferas
A copla tentadora dos amores!
Eu voava feliz nos ínvios serros
Empós das borboletas matizadas…
Era tão pura a abóbada do elísio
Pendida sobre as veigas rociadas!…
Hoje escalda-me os lábios riso insano,
É febre o brilho ardente de meus olhos:
Minha voz só retumba em ai plangente,
Só juncam minha senda agros abrolhos.
Mas que importa esta dor que me acabrunha,
Que separa-me dos cânticos ruidosos,
Se nas asas gentis da poesia
Eleva-me a outros mundos mais formosos?!…
Do céu azul, da flor, da névoa errante,
De fantásticos seres, de perfumes,
Criou-me regiões cheias de encanto,
Que a luz doura de suaves lumes!
No silêncio das noites perfumosas
Quando a vaga chorando beija a praia,
Ela ensina-me a orar, tímida e crente,
Aquece-me a esperança que desmaia.
Oh! Bendita esta dor que me acabrunha,
Que separa-me dos cânticos ruidosos,
De longe vejo as turbas que deliram,
E perdem-se em desvios tortuosos!…

SANDNESS

Meu anjo inspirador não tem nas faces

As tintas coralíneas da manhã,;

Nem tem nos lábios as canções vivaces

Da cabocla pagã!

Não lhe pesa na fronte deslumbrante

Coroa de esplendor e maravilhas,

Nem rouba ao nevoeiro flutuante

As nítidas mantilhas.

Meu anjo inspirador é frio e triste

Como o sol que enrubesce o céu polar!

Trai-lhe o semblante pálido — do antiste

O acerbo meditar!

Traz na cabeça estema de saudades,

Tem no lânguido olhar a morbideza;

Veste a clâmide eril das tempestades,

E chama-se — Tristeza!…

Públio Ovídio Nasão

rosa105

A ARTE DE AMAR

I
Tal como o povo, tal como o juiz
E o selecto senado se rendem à eloquência,
À arte embaladora das palavras
As mulheres não opõem resistência.
Mas os recursos oculta do teu verbo;
Evite o teu discurso o tom pedante.
Só um pobre de espírito faria
Um pomposo discurso à sua amante
(…) Que o teu estilo seja natural
E as palavras comuns, embora ternas,
À mulher que escreveres procura dar
Naturalmente a impressão de que te está a ouvir falar.

II
É no leito, acredita, que a Concórdia, sem armas, eternamente habita.
A cama é o lugar onde nasce o perdão.
As pombas que ainda há pouco se batiam
Unem os bicos e o seu arrolhar é o amor a falar.
Apressar o termo da volúpia,
Acredita, não é conveniente,
Mas depois de atrasos que a demorem
Chegar à meta insensivelmente.
E antes de encontrares aquela região
Onde as carícias têm melhor acolhimento
Não te impeça o pudor de a afagar.
Como os raios do sol quando são refletidos
No espelho da água transparente,
Nos olhos da amante, esse trémulo brilho tu verás cintilar.
III
Que a meta seja atingida ao mesmo tempo.
São guindados ao cume da volúpia
O homem e a mulher quando vencidos
Ficam na cama, sem forças, estendidos.

CANTOS TRISTES

A soleira da porta, eu toquei,
por três vezes,
e fui chamado de volta,
ah! de volta fui chamado
por três vezes!

O meu próprio pé era lento
indulgente era com meu espírito!
Muitas coisas, muitas vezes,
eu falei… eu falei
e como se me afastasse,
dei-lhe o derradeiro
beijo.

Enfim, por que a pressa?
Roma deixo,
Cítia é para onde sou enviado,
devo deixar
a Cidade:
as duas, justas esperas.

Enfim, por que me apressar?
Sem demora, deixo
do meu discurso,
as palavras inacabadas,
abraçando com meu espírito partido
todas,
todas as pessoas mais amadas.

Sou dividido
tal como se me privassem
dos meus membros!
Pareceu-me que
uma parte de mim mesmo,
do corpo, foi arrancada,
e, neste momento,
explode o gemido,
explode o brado,
o brado e o gemido
dos meus entes
mais queridos!
Meus punhos tristes
feriram o meu peito nu!

Neste momento, partido
e partindo, enlaçando-se
aos meus ombros,
minha esposa misturou
às lágrimas
estas palavras tristes:
“Tu não podes, de mim, ser tirado!
Juntos, ah! sim, juntos
iremos.
Seguirei-te! Seguirei-te!
E serei
a esposa do exilado.

Para mim o caminho
está consumado,
a longínqua terra me tem!
Acrescentar-me-ei
como insignificante bagagem
ao funesto navio
que parte, que se perde
no salgado rio;
a ira de César ordena
que te afastes da pátria,
Piedade de mim! Piedade!
O imperador será pio comigo, amor!”
Tais coisas ela tentava
assim como antes tentara,
mas, com dificuldade,
deu as mãos vencidas pela utilidade
de, em Roma, permanecer,
em busca da imperial piedade.

Permanecer
não me é permitido.
Devo partir.
Parto, mas este sofrimento
deveria ser suportado
sem dor.

OS AMORES

Era intenso o calor, passava do meio dia;
Estava eu em minha cama repousando.
(…) Eis que vem Corina numa túnica ligeira,
Os cabelos lhe ocultando o alvo pescoço;
Assim entrava na alcova a formosa Semiramis,
Dizem, e Laís que amaram tantos homens.
Tirei-lhe a túnica, mas sem empenho de vencer:
Venceu-a, sem mágoa, a sua traição.
Ficou em pé, sem roupa, ali diante de meus olhos.
Em seu corpo não havia um só defeito.
Que ombros e que braços me foi dado ver, tocar!
Os belos seios, que doce comprimi-los!
Que ventre mais polido logo abaixo do peito!
Que primor de ancas, que juvenil a coxa!
Por que pormenorizar? Nada vi não louvável,
E lhe estreitei a nudez contra o meu corpo.
O resto, quem não sabe? Exaustos, repousamos.
Que outros meios-dias me sejam tão prósperos.

 

Marina Colasanti

rosa041

CANÇÃO PARA UM HOMEM

Porque era um homem sincero
eu o levei ao rio entre junquilhos.
Mas sincero não era
era só homem
e deixei nos junquilhos a esperança
de dar à minha espera serventia.

Porque era um homem forte
eu o levei ao rio entre junquilhos.
Mas forte ele não era
era só homem
e entre pedras deixei o meu desejo
de abandonar o arado, a forja, e a lança.

Porque podia me amar
eu o levei ao rio entre junquilhos.
Mas amante não era
era só homem
e na água afoguei a minha sede
de palavras mais doces que ambrosia.

Porque era um homem
só homem
eu o levei ao rio entre junquilhos.

CORPO ADENTRO

Teu corpo é canoa
em que desço
vida abaixo
morte acima
procurando o naufrágio
me entregando à deriva.

Teu corpo é casulo
de infinitas sedas
onde fio
me afio e enfio
invasor recebido
com licores.

Teu corpo é pele exata para o meu
pena de garça
brilho de romã
aurora boreal
do longo inverno.

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz,
aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.

As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães,
a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.

PORTA DO ARMÁRIO ABERTA

Abro a porta do armário
como abro um diário,
a minha vida ali
dependurada
meu frusto cotidiano
sem segredos
intimidade exposta
que os botões não defendem
nem se veda nos bolsos,
espelho mais real que todo espelho
entregando à devassa
as medidas do corpo.

Armário
tabernáculo do quarto
que abro de manhã
como à janela
para sagrar o ritual do dia.
Sala de Barba Azul
coalhada de pingentes
longas saias e véus
emaranhados sem que sangue goteje.
Corpos decapitados
ausentes minhas mãos
dos murchos braços.

Do armário minhas roupas
me perseguem
como baú de herança ou
maldição.
Peles minhas pendentes
em repouso
silenciosas guardiãs
dos meus perfumes
tessituras de mim
mais delicadas
que a luz desbota
que o tempo gasta
que a traça rói
ainda assim durarão nos seus cabides
muito mais do que eu sobre meus ossos.

Nenhuma levarei.
Irei despida
deixando atrás de mim
a porta aberta.

SEXTA-FEIRA À NOITE

Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.

Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.

Sexta-feira à noite
os homens ressonam de borco
enquanto as mulheres no escuro
encaram seu destino
e sonham com o príncipe encantado.

TUA MÃO EM MIM

Você me acorda no meio da noite
e eu que navegava tão distante
cravada a proa em espumas
desfraldados os sonhos
afloro de repente entre as paradas ondas dos lençóis
a boca ainda salgada mas já amarga
molhada a crina
encharcados os pêlos
na maresia que do meu corpo escorre.
Cravam-se ao fundo os dedos do desejo.
A correnteza arrasta.
Só quando o primeiro sopro escapar
entre os lábios da manhã
levantarei âncora.
Mas será tarde demais.
O sol nascente terá trancado o porto
e estarei prisioneira da vigília.